Fundação Maitreya
 
O Jardim do Silêncio

de Ana Maria Coelho de Sousa

em 22 Set 2022

  Conta-se a história verdadeira de que um erudito foi convidado para falar sobre o silêncio. Entrou na sala, sentou-se, mirou a assistência e ficou calado. Gerou-se um mal-estar palpável entre a assistência, as pessoas mexiam-se nas cadeiras, tossiam, não sabiam que atitude tomar. Assim se passou mais de meia hora até que o orador se levantou e disse: “Meus senhores, acabastes de ouvir falar sobre o silêncio”. Quando o orador se levantou já reinava absoluto silêncio na sala. Quer isto dizer que a maior parte de nós não está preparada para ouvir o silêncio; que não estamos atentos à beleza do silêncio. Para além de que o poder do silêncio é colossal, é avassalador e nem todos estamos preparados para o seu embate, para o conseguirmos suportar.

“Quanto mais silencioso eu ficava, mais ouvia …”

Erling Kagge, “Silêncio na era do ruído”, Quetzal, 2017

Dito isto pode parecer um grande atrevimento vir falar do silêncio. Haverá, então, palavras mais belas que o silêncio? Talvez aquelas que não são expressas pela voz, naquele olhar cheio de amor, de ternura e compreensão, no abraço apertado que diz “estou aqui, ao teu lado”, “estou aqui para ti”, ou naqueles momentos de vivência espiritual e do sagrado, naquele arroubo da alma até ao divino de que nos falam os místicos. São gestos ou momentos sublimes de silêncio, compartilhado ou não. São momentos de comunhão e, neste silêncio de comunhão, qualquer palavra está a mais.

O silêncio é uma qualidade da Presença.
Em momentos de quietude, em movimentos de proximidade com a natureza, em períodos em que o nosso estilo de vida se torna mais lento com isolamento ou semi isolamento, ou em tempos de crise, podemos notar uma presença no centro de nós. Com o tempo também reconhecemos que essa presença está para além de nós. É transcendente e, como tal, nunca conseguimos agarrá-la por completo.

À medida que vamos crescendo nesta caminhada interior, desenvolvemos a disciplina do silêncio para aprofundarmos esta relação íntima com o transcendente. Há quem lhe chame Deus, o Divino, o Eu Superior ou outros nomes. Essa Presença fala-nos em silêncio e os contemplativos desenvolvem a disciplina do silêncio para crescerem na atenção consciente da divina presença interior.
No silêncio crescente da contemplação são recordados os nossos erros passados, as nossas fraquezas e oportunidades perdidas para amar, para servir; as mágoas e feridas emocionais que todos temos. Talvez as coisas não tenham corrido na vida como desejávamos; outros feriram-nos e infligiram-nos feridas emocionais; as muitas injustiças da vida deixam a sua marca. Temos de lidar com estas recordações e feridas e pedir ajuda superior para que elas sejam curadas para podermos prosseguir com as nossas vidas. Não têm de ser um fardo durante o tempo que nos resta.
Para aprofundar esta disciplina do silêncio e avançarmos na nossa caminhada interior é útil socorrermo-nos da natureza.

Os místicos das várias tradições salientam a importância do silêncio e encorajam-nos a estarmos em quietude e perseverarmos nesta viagem interior. Quando estamos na quietude não temos de nos justificar, pedir desculpa ou impressionar os outros. Pelo contrário, na quietude encontraremos a Realidade na qual temos o nosso ser.

O silêncio enquanto som
Krishnamurti, filósofo, perguntava: “Alguma vez escutámos o silêncio? Se fazemos esta pergunta, então é porque o silêncio não está separado do som, ambos vão juntos. Mas não percebemos isto porque não sabemos escutar o som. O universo está cheio de som. A terra está cheia de som. E nós procuramos o silêncio. Meditamos para encontrar alguma paz e algum silêncio. Mas se compreendêssemos o som, veríamos que no próprio escutar do som há silêncio. Se não houvesse silêncio, não haveria som”.

O silêncio é, provavelmente, o mais elevado refinamento do som. Aceitamos passivamente o ruído como um modo de vida. Para muitos ele abafa, muito convenientemente, o clamor interior que afecta e confunde o nosso pensar.

“Procura pela flor que desabrocha durante o silêncio que se segue à tormenta, não antes … E no silêncio profundo ocorrerá o misterioso acontecimento que comprovará que o Caminho foi encontrado … é uma voz que fala onde não há ninguém para falar ”Luz no Caminho”, M.C.

“Quando orares, não faças como os hipócritas … mas entra no teu quarto interior e, fechada a porta, reza em segredo ao teu Pai” (Mateus, VI,5-6). Quarto interior = coração; fecha a porta aos sentidos).

“Quando houver cessado de ouvir os muitos, poderá discernir o UM, o som interior que mata o exterior … a Voz que tudo enche, a Voz do teu Mestre” (“A Voz do Silêncio”, HPB).

“Quando todas as coisas repousavam num profundo silêncio, descia sobre mim, do mais alto do Trono Real, uma palavra secreta”, Meister Eckart, grande místico cristão.

Todos os dias, logo que abrimos os olhos, o nosso mental desperta. Os nossos sentidos orientam-no para as coisas deste mundo e monopolizam-no. Estamos continuamente distraídos com aquilo que vemos, ouvimos e tocamos … Todas estas coisas mobilizam a integridade da nossa atenção. Os pensamentos aparecem, encadeiam-se, pressionam-se, empurram-se no mental. Esquecemos quem somos, esquecemo-nos muito simplesmente de Ser, absorvidos no parecer. A fim de parecer ainda melhor, misturamos a nossa voz à cacofonia geral, falamos excessivamente e de coisas insignificantes.

A Disciplina espiritual repousa em primeiro lugar no silêncio vocal, que impede as palavras supérfluas, e em seguida no silêncio mental que pára a onda incessante dos pensamentos. O silêncio mental absoluto depende da experiência mística e muito poucos de nós possuem suficiente maturidade espiritual para vivê-la. O nosso espírito deve concentrar-se no interior, em direcção ao centro e à fonte do nosso ser. A partir de então, todas as coisas, tanto interiores como exteriores, são percebidas num silêncio cada vez mais profundo.

Segundo os místicos, quando atingimos esse estado, torna-se possível sentir a Presença divina, como se descesse sobre nós de um Trono Real, revelando-nos uma palavra justa até aí ignorada. O silêncio interior faz-nos entrar na presença íntima do divino, pelo menos poderá ser esta a sensação.

Para concluir direi que os grandes sábios têm afirmado a possibilidade de se permanecer neste estado de silêncio enquanto se está também empenhado em actividade exterior – uma possibilidade que está para além da nossa compreensão vulgar. É dito que o silêncio de um homem santo é muito mais valioso do que muitas palestras. Houve um santo e sábio no sul da Índia, nosso contemporâneo, chamado Ramana Maharshi, que ilustra este facto. Eram muitos os que chegavam até ele com dúvidas que queriam ver esclarecidas e dificuldades a resolver. Sentados a seu lado, em silêncio, este mesmo silêncio esclarecia as dúvidas e questões e as dificuldades viam-se dissolvidas. É este o poder do silêncio do sábio, daquele que vive na Verdade e assim a Verdade e a Luz são automaticamente partilhadas. É bom acrescentar aqui que esta partilha existe desde que o receptor esteja preparado para a receber, isto é, se tenha esforçado por a merecer.

Assim, “Conhecer, ousar, querer e ficar em silêncio” pode ser resumido como as virtudes primárias que todo o aspirante ao Caminho deve esforçar-se por praticar. Aprendamos, então, a mergulhar no mais profundo de nós mesmos, a recolhermo-nos e aí encontrar o abrigo ou refúgio que nos proporciona paz e silêncio.

Cortesia da autora, Ana Maria Coelho de Sousa
Magazine de Filosofia Esotérica nº 12 - (Sociedade Teosófica Portuguesa)
   


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