Fundação Maitreya
 
Notando o Espaço

de Ajahn Sumedho

em 28 Mai 2006

  A maior parte do nosso sofrimento vem da actividade pensante habitual. Se tentamos pará-la por termos aversão a pensar, não conseguimos, simplesmente continuamos e continuamos pensando. Então o importante não é vermo-nos livres do pensamento, mas compreendê-lo. E nós fazemos isto através da concentração no espaço existente na mente em vez de nos concentrarmos nos pensamentos.

Ajhan Sumedho no Mosteiro dos JerónimosEm meditação podemos estar alerta e com atenção; é como ouvir-estar com o momento tal como ele é – simplesmente ouvir. O que estamos a fazer é trazer à consciência as coisas como elas são, notando o espaço e a forma – o Incondicional e o Condicional.
Por exemplo, podemos estar a notar o espaço numa sala. A maioria das pessoas provavelmente não notaria o espaço; elas notariam as coisas nele – as pessoas, as paredes, o chão, a mobília. Mas, para observar o espaço, o que fazemos? Retiramos a nossa atenção das coisas direccionando-a para o espaço. Isto não significa livrarmo-nos das coisas, ou negar às coisas o direito que elas têm de ali estar. Significa apenas não nos concentrarmos nelas, não estar continuamente a dirigir a nossa atenção de uma coisa para a outra.
O espaço numa sala é pacífico. Os objectos de uma sala podem excitar, repelir ou atrair, mas o espaço não tem qualidades que excitem, repelem ou atraem. Mas mesmo que o espaço não atrai-a a nossa atenção, nós podemos ser completamente conscientes dele, e tornamo-nos conscientes dele quando já não estamos absortos nos objectos da sala. Quando reflectimos no espaço da sala sentimos uma sensação de calma pois todo o espaço é o mesmo: o espaço à tua volta e o espaço à minha volta não são diferentes. Não é meu, não posso dizer “este espaço pertence-me” ou “aquele espaço pertence-te”.

O espaço está sempre presente. Ele torna possível que estejamos juntos, contidos dentro de uma sala, num espaço que é limitado por paredes mas que também existe fora da sala. O espaço contém o edifício inteiro, o mundo inteiro. Então o espaço não é limitado por objectos de qualquer espécie; não é limitado por nada. Se quisermos podemos ver o espaço como limitado dentro de uma sala, mas na realidade o espaço é ilimitado.
Mente “espacial”
Notando o espaço que envolve pessoas e coisas, proporciona uma maneira diferente de olhar para elas e desenvolver esta visão espacial é uma maneira de nós próprios nos abrirmos. Quando se tem uma mente “espaçosa” existe espaço para tudo. Quando temos estreiteza de mente então existe somente espaço para algumas coisas. Tudo tem então de ser manipulado e controlado, para então se ter apenas aquilo que achamos que é certo – aquilo que queremos lá – e tudo o resto tem de ser empurrado para fora.
A vida com uma visão estreita é reprimida e restrita: é sempre uma luta. Existe sempre tensão envolvida uma vez que é necessário uma enorme quantidade de energia para manter tudo em ordem durante todo o tempo. Se tivermos uma visão estreita da vida, a desordem da vida tem de ser ordenada para nós e então vamos estar sempre ocupados, manipulando a mente e rejeitando coisas ou tentando agarrarmo-nos àquelas que não queremos largar. Isto é o dukkha (sofrimento) proveniente da ignorância, que provém de não compreendermos as coisas como elas são. Na verdade nós dizemos “o espaço nesta sala”, mas na realidade a sala está no espaço – todo o edifício está no espaço. Olhando de uma forma, as paredes limitam o espaço na sala, mas olhando de outra forma, vemos que o espaço é ilimitado.

O espaço é algo que tendemos a não notar pois ele por si só, não apela e não capta a nossa atenção. Não é como uma flor muito bonita ou como um desastre terrível; não é algo realmente maravilhoso ou horrível que puxa a nossa atenção directamente na sua direcção. Podemos ficar hipnotizados num instante por algo excitante, fascinante, horrível ou terrível; mas não podemos fazer isso com o espaço, podemos?! Para notar o espaço temos de nos acalmar, temos que o contemplar. Isto é assim porque o espaço não tem nenhuma qualidade extrema; é simplesmente espaço.
Flores podem ser extremamente belas, com pétalas brilhantes vermelhas, cor-de-laranja ou violetas, com maravilhosas formas que vislumbram as nossas mentes. Alguma outra coisa, como o lixo, pode ser feio e repelente. Apesar de não ser muito notório, sem o espaço não haveria nada mais. Não seríamos capazes de ver nada mais. Se enchermos um quarto com coisas de tal forma que ele se torna sólido, ou enchendo-o de cimento, não haverá mais espaço de sobra no quarto. Então, claro, não podemos ter maravilhosas flores ou qualquer outra coisa; seria apenas um grande bloco. Seria inútil, não é? Então precisamos de ambos, precisamos de apreciar a forma e o espaço. Eles são o perfeito casal, o verdadeiro casamento, a perfeita harmonia – espaço e forma. Podemos contemplar espaço e forma e, da perspectiva alargada que então desenvolvemos, surge a sabedoria.
O som do silêncio
Podemos aplicar esta perspectiva à mente utilizando a palavra “Eu” de uma forma consciente para ver o espaço como um objecto. Na mente podemos ver que existem pensamentos e emoções – as condições mentais – que surgem e que desaparecem. Normalmente somos deslumbrados, repelidos ou cercados por esses pensamentos e emoções. Passamos de uma coisa para a outra reagindo, controlando, manipulando ou tentando vermo-nos livres deles. Então nunca temos qualquer perspectiva em nossas vidas. Tornamo-nos obcecados quer com a repressão, quer com a indulgência dessas condições mentais – somos apanhados nesses dois extremos.
Com a meditação temos a oportunidade de contemplar a mente. O silêncio da mente é como o espaço de uma sala. Está lá sempre mas é subtil – não se mostra. Como não tem qualquer qualidade extrema que estimule ou agarre a nossa atenção, temos de ser atentos de forma a notá-lo. Uma forma de focar a atenção no silêncio da mente é reconhecendo o som do silêncio.
Podemos usar o som do silêncio (o som primordial, o som da mente ou qualquer outra coisa que lhe queiram chamar) com grande destreza, trazendo-o à tona e prestando-lhe atenção. Ele tem um tom muito elevado que é bastante difícil de descrever. Mesmo que tapemos os ouvidos ou mesmo se estivermos debaixo de água podemos ouvi-lo. É o som de fundo que é independente do aparelho auditivo. Sabemos que é independente pois podemos ouvi-lo mesmo que tenhamos os ouvidos tapados.

Através de concentrar a nossa atenção no som do silêncio por um período, começamos realmente a conhecê-lo. Desenvolvemos um modo de conhecimento no qual podemos reflectir. Não é um estado concentrado no qual nos absorvemos; não é um tipo supressivo de concentração. A mente está concentrada num estado de equilíbrio e abertura, mais do que absorvida num objecto. Podemos usar essa concentração aberta e equilibrada como uma forma de ver as coisas em perspectiva, uma forma de deixar as coisas seguirem o seu rumo ao invés de as agarrarmos.
Agora, quero realmente que investiguem este modo de conhecimento de forma que comecem a perceber como deixar as coisas fluir, em vez de apenas ter a ideia de que assim deve ser. Vocês podem sair dos ensinamentos budistas com a ideia de que devem soltar as coisas, de que devem deixá-las ir. Então quando descobrirem que não o conseguem fazer muito facilmente, podem pensar: “Oh não, eu não consegui abrir mão das coisas!”. Este tipo de julgamento é outro problema do ego em que se pode cair: “apenas os outros conseguem abrir mão mas eu não consigo. Eu deveria largar as coisas porque o Venerável Sumedho disse que toda a gente deveria largar as coisas”. Este julgamento é outra manifestação do nosso “pequeno eu”, não é? E é apenas um pensamento, uma condição mental que existe temporariamente dentro da capacidade espacial da mente.
Espaço à volta dos pensamentos
Tomemos a simples frase “Eu Sou”, e comecem a reparar, a contemplar, e a reflectir no espaço à volta dessas duas palavras. Em vez Monges budistasde olhar para outra coisa sustenham a vossa atenção no espaço que envolve as palavras. Olhem para o próprio pensamento, examinando-o e investigando-o realmente. Agora vocês já não podem observar-se a vós próprios a pensar habitualmente, pois assim que notarem que estão a pensar o pensamento pára. Vocês podem continuar preocupados, “Pergunto-me se isto irá acontecer. Então se isso acontece... murmurando, murmurando: Oh, estou a pensar! - e então o pensamento pára”.
Para observar o processo dos pensamentos, pensem deliberadamente em algo: simplesmente tomem um pensamento como “Eu sou um ser humano”, e simplesmente olhem para ele. Se olharmos para o princípio dele podemos reparar que imediatamente antes de dizer “ Eu”, existe uma espécie de espaço vazio. Então se pensarem na vossa mente, “Eu - sou - um - ser - humano”, verão o espaço entre as palavras. Nós não estamos a olhar para o pensamento para observarmos se temos pensamentos inteligentes ou estúpidos. Em vez disso estamos a pensar deliberadamente de forma a notar no espaço à volta de cada pensamento. Desta forma começamos a ter uma perspectiva da natureza impermanente dos pensamentos.
Isto é apenas uma maneira de investigar para então poder notar o vazio quando não existem pensamentos na mente. Tentem focar-se nesse espaço, vejam se conseguem realmente concentrar-se nesse espaço antes e depois do pensamento. Por quanto tempo o conseguem fazer? Pensem “Eu sou um ser humano”. E mesmo antes de o começar a pensar fiquem nesse espaço imediatamente antes de o dizerem. Então isso é mente plena, não é? A vossa mente está vazia mas existe também a intenção de pensar um determinado pensamento. Então pensamos; e no fim do pensamento, tentem percorrer o espaço que lhe sucede. A vossa mente continua vazia?
A maior parte do nosso sofrimento vem da actividade pensante habitual. Se tentamos pará-la por termos aversão a pensar, não conseguimos, simplesmente continuamos e continuamos pensando. Então o importante não é vermo-nos livres do pensamento, mas compreendê-lo. E nós fazemos isto através da concentração no espaço existente na mente em vez de nos concentrarmos nos pensamentos.
As nossas mentes tendem a ser apanhadas por pensamentos de atracção ou de aversão aos objectos, mas o espaço circundante a esses pensamentos não é atractivo ou repulsivo. O espaço à volta de um pensamento atractivo e o espaço à volta de um pensamento repulsivo não é diferente, não é?
Concentrando-nos no espaço entre os pensamentos passamos a ser menos apanhados nas nossas preferências no que diz respeito aos pensamentos. Então, se notarem que um pensamento de culpa, auto-compaixão ou paixão continua a surgir, podem trabalhar com isso desta forma – pensando nisso deliberadamente, trazendo-o realmente a um estado consciente e notando o espaço à sua volta.
É como olhar para o espaço numa sala: nós não vamos a uma sala para olhar para o espaço, não é? Estamos simplesmente abertos a ele, porque ele está lá sempre. Não é nada que iremos encontrar dentro do armário ou na próxima sala, ou debaixo do chão – está mesmo aqui e agora. Apenas temos que nos abrir à sua presença: e então começamos a reparar que ele está lá.
Se continuarmos concentrados nas cortinas ou nas janelas ou nas pessoas, não vamos reparar no espaço. Mas não temos de nos livrar de todas as coisas para notarmos o espaço. Em vez disso podemos simplesmente nos abrir à sua presença. Ao invés de concentrarmos a nossa atenção numa coisa abrimos a nossa mente completamente. Não estamos a escolher um objecto condicionado, mas em vez disso estamos conscientes do espaço no qual esse objecto condicionado existe.
A posição de Budha – conhecedor
Com a mente podemos apelar interiormente para a nossa “abertura de atenção”. Quando temos os olhos fechados podemos ouvir as vozes internas que pairam na mente. Elas dizem, “ Eu sou isto...eu não deveria ser assim”. Podemos usar essas vozes para nos levar para o espaço entre os pensamentos. Ao invés de fazer das obsessões e medos que percorrem a nossa mente um grande problema, podemos abrir a nossa atenção e ver essas obsessões e medos como condições mentais que vêm e que vão no espaço. Desta forma, mesmo um mau pensamento pode levar-nos para o vazio. Esta forma de conhecimento é muito útil uma vez que põe fim à luta mental na qual nos tentemos ver livres dos “maus” pensamentos. Podemos ser justos com o “diabo”. Sabemos que ele é algo impermanente. Ele surge e desaparece na mente. Então não teremos de fazer nada dele. Diabos ou anjos – é tudo o mesmo no que se refere à nossa atitude. Antes, ao ter um mau pensamento começamos logo a criar um problema: “O diabo anda atrás de mim. Tenho de me livrar dele”. Agora, quer seja tentar ver-me livre do diabo quer seja tentar agarrar os anjos, tudo é sofrimento (dukkha). Se adquirirmos esta postura de Buddha – conhecedor, conhecendo as coisas como elas são, então tudo se torna dhamma (verdade, ensinamento). Tudo se torna na verdade do caminho que É. Vemos que todas as condições mentais surgem e cessam – o bom juntamente com o mau, o útil com o inútil.
Isto é o que entendemos por reflexão – começamos a notar as coisas como elas são. Ao invés de assumir que deveria ser de qualquer forma específica, começamos simplesmente a contemplar, a notar.
O meu propósito não é dizer-vos como é mas encorajar-vos a saber por vós próprios. Não se ponham por aí a dizer: “O Venerável Sumedho disse-nos como é”. Eu não estou a tentar convencer-vos de um ponto de vista, eu estou a tentar apresentar um caminho para ser por vós considerado, um caminho de reflexão na vossa própria experiência, uma maneira de conhecerem a vossa própria mente.

Pergunta: Algumas pessoas falam há cerca dos janas, estados de absorção na meditação, no Budismo. O que são esses estados e como é que eles se enquadram nos conceitos de plena atenção, insight e reflexão?
Resposta: Os janas ajudam a desenvolver a mente. Cada jana é um refinamento da consciência e, como um conjunto, eles ensinam-nos a concentrar a nossa atenção em objectos cada vez mais refinados. Através da plena atenção e da reflexão, não plena vontade, tornamo-nos bastante conscientes da qualidade e do resultado daquilo que estamos a fazer. Quando se pratica um jana após o outro, desenvolvemos a habilidade de manter a atenção em objectos cada vez mais refinados. Desenvolvemos grande habilidade nesta prática e experimentamos a graça que vem da absorção em estados cada vez mais refinados de consciência.
O Buddha recomendou a prática dos janas como um meio hábil, mas não como um fim em si mesmo. Se deixarmos que se torne um fim em si mesmo, tornamo-nos apegados ao refinamento e sofremos, visto uma parte tão grande da nossa vida humana não ser refinada mas sim bastante grosseira.
Em contraste com a prática dos janas a meditação vipassana (meditação de insight) foca-se na realidade das coisas, a impermanência das condições e o sofrimento que vem com os apegos. A meditação vipassana ensina-nos que o caminho para sair do sofrimento não é através do aumento do refinamento da consciência, mas sim através de não nos agarrarmos a nada – nem mesmo ao desejo de nos absorvermos em qualquer nível de consciência.

Pergunta: Então insight é reflectir na avareza da mente?
Resposta: Sim, o insight leva a que notemos sempre o resultado da avareza e desenvolve a Correcta Compreensão. Por exemplo a contemplação das Quatro Nobres Verdades permite-nos ter a Correcta Compreensão e então essa visão-pessoal e esse conceito-pessoal são penetrados com sabedoria. Quando existe Correcta Compreensão nós não estamos a praticar os janas a partir de uma atenção egoísta; eles representam um meio hábil de cultivar a mente, mais do que uma tentativa de alcançar um resultado pessoal. As pessoas enganam-se quando abordam a meditação com a ideia de alcançar ou realizar algo. Isso vem sempre do problema básico da ignorância e da visão pessoal combinados com o desejo e o tentar agarrar-se a algo. E isso cria sempre sofrimento.
Retirado de uma palestra de Ajhan Sumedho.
Titulo original: Noticing space
Tradução de Vasco (anagárica)
   


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