Fundação Maitreya
 
Evangelhos 2005 Comentados

de Firmamento Editora

em 21 Set 2006

  O Livro EVANGELHOS 2005 COMENTADOS, da Firmamento Editora, publicado em Dezembro de 2004 contém os Evangelhos dominicais do ano de 2005, relidos e comentados por 61 pessoas com experiências de fé e de vida. Cada evangelho é comentado por uma pessoa cuja biografia, experiência interior ou religiosa justifique um encontro entre o texto bíblico e a sua experiência pessoal irrepetível e única.Por amável cedência da Firmamento e a autorização dos respectivos autores, congratulamo-nos por esta possibilidade de editar no Spiritus Site alguns desses comentários, sendo este de António Cândido Franco.


Mateus 21, 28-32

«Arrependeu-se e foi.
Os publicanos e as mulheres de má vida
irão adiante de vós para o reino de Deus»


Naquele tempo, disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo: «Que vos parece?
Um homem tinha dois filhos. Foi ter com o primeiro e disse-lhe: “Filho, vai hoje trabalhar na vinha”. Mas ele respondeu-lhe: “Não quero”.
Depois, porém, arrependeu-se e foi. O homem dirigiu-se ao segundo filho e falou-lhe do mesmo modo. Ele respondeu: “Eu vou, Senhor”. Mas de facto não foi.
Qual dos dois fez a vontade ao pai?». Eles responderam-Lhe: «O primeiro».
Jesus disse-lhes:
«Em verdade vos digo: Os publicanos e as mulheres de má vida irão diante de vós para o reino de Deus.
João Baptista veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça, e não acreditastes nele; mas os publicanos e as mulheres de má vida acreditaram.
E vós, que bem o vistes, não vos arrependestes, acreditando nele».

Comentário

Estamos diante de uma parábola (Mateus 21,28-32), a dos dois filhos, e como todas as parábolas esta também conta uma história. A parábola é uma comparação entre duas situações com paralelismo imediato, a da história que se conta, com uma intriga que se pretende concreta, clara, limpa, literal, de sentido acessível a todos, e uma outra, mais obscura e fechada, de sentido enigmático para a maioria, de alcance muito mais abstracto e geral, mas cujas dificuldades acabam por ser esclarecidas pela história contada, que ganha assim um valor de exemplo explicativo. O momento em que se transita do sentido da primeira situação, que é dado sem esforço, para a percepção da significação da segunda parece corresponder ao momento em que se passa do domínio dos acontecimentos para o dos conhecimentos.

A história da parábola contada por Jesus no passo de Mateus resume-se ao seguinte: um pai pede aos seus dois filhos para trabalharem na sua vinha; o primeiro responde que não, mas acaba por ir, o segundo responde que sim, mas, dando o assunto ao esquecimento, não vai. Trata-se de uma história concreta, de sentido alcançável, que se pode traduzir na seguinte máxima: o filho que diz negar é preferível ao que diz afirmar. Que se procura iluminar com esta história? A resposta está naquilo que acontece no Templo de Jerusalém, onde Jesus, algumas horas depois de expulsar os cambistas e os vendedores de pombas, faz o relato desta pequena fábula. O quadro é o de um debate entre Jesus e os chefes dos sacerdotes, a que o povo da cidade assiste. É portanto aí que se encontra a segunda parcela da parábola, aquela que, por ser a mais problemática e confusa, se destina a ser iluminada pela simplicidade luminosa da primeira história.
No seu caroço está a posição espiritual dos interlocutores que Jesus tem no Templo de Jerusalém.

Quem são esses interlocutores? Já sabemos: os sacerdotes, os chefes, os anciãos, os fariseus, quer dizer, a camada mais culta, pia e respeitada da sociedade da época e do lugar. Que pretende dizer Jesus? Que a lógica do Reino de Deus não é a da sociedade dos homens, quer dizer, os excluídos do mundo, os que só merecem a execração dos conterrâneos, os malditos podem tomar a dianteira, no plano espiritual, aos que se comportam segundo as melhores conveniências sociais e religiosas. Trata-se de uma mensagem contraditória, invulgar, chocante; ela põe cruamente em causa os interlocutores de Jesus e alarga a visão do Reino de Deus para lá dos esquemas complacentes da inércia social. Daí a necessidade de enveredar por um discurso feito de comparações, preferindo a linguagem alegórica ao discurso directo. O que está em jogo nessa escolha são os aspectos mais paradoxais e difíceis daquilo que Jesus pretende dizer.

Assim, através de uma fábula simples e imediata, a dos dois filhos, que não apresenta no seu remate qualquer dúvida, Jesus obriga os seus interlocutores a perceberem a distância a que estão de malkut, o Reino dos Céus, e dá a perceber uma doutrina complexa e ousada, em que a negação mostra um valor superior à afirmação. Os excluídos, no caso prostitutas e publicanos, são comparados ao primeiro filho, o que diz não, mas depois reconsidera, enquanto os interlocutores de Jesus, guias espirituais e chefes sociais, são comparados ao segundo filho, o que diz sim, mas depois desampara. Tal como na pequena fábula da parábola se percebe que é preferível dizer não ao pai, também na segunda situação, em que se avalia o avanço espiritual da humanidade, se tira que menos interessa o avanço dos que aparentam obedecer a Deus, ficando-se pelo cumprimento literal dos preceitos, que o atraso dos que parecem desobedecer-lhe, mas dele se aproximam pelo espírito.

Há nesta parábola duas vertentes: a pedagógica e a sófica. A vertente pedagógica é comum a toda a linguagem bíblica das parábolas. Partindo de exemplos factuais e conhecidos, leva-se o interlocutor a perceber o que, se o modo fosse outro, mais espontâneo, não se entenderia. Há, pois, alguma coisa de didáctico nas parábolas a que Jesus recorre nos três evangelhos sinópticos. Nada despropositado aproximar este uso da parábola da argumentação socrática nos diálogos platónicos. Quando Jesus pergunta aos sacerdotes do Templo, depois de contar a história dos dois filhos, qual dos dois cumpriu o pedido do pai, pratica o princípio maiêutico de facultar discretamente ao interlocutor a revelação de um saber que existia nele mas cuja consciência lhe faltava. O parentesco entre o método pedagógico de Sócrates e o método compreensivo de Jesus deixa vislumbrar afinidades estreitas entre o saber hebraico 1e o saber grego, num paralelo que sairia muito enriquecido, caso tentássemos a aproximação dos Evangelhos aos textos platónicos, que têm por tema a morte do Mestre, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon.

O aspecto sófico da parábola dos dois filhos merece vastas considerações. A rede de implicações gnosiológicas que se pode tecer a partir dos aspectos mais doutrinários da parábola é demasiado extensa e cerrada para ser aqui reconstituída. Ainda assim, numa abordagem sumária como esta, não podemos deixar de entrar em linha de conta com uma outra passagem de Mateus (9,10-11), em que Jesus e os apóstolos comungam inocentemente com “publicanos e pecadores” o mesmo alimento. É o momento em que Jesus proclama que não veio chamar os justos, mas os pecadores, tópico doutrinário que nos parece de primeira importância na caracterização do cristianismo e que encontra na parábola do fariseu e do publicano (Lucas 13,9-14) um momento altamente esclarecedor, muito afim aliás das predominâncias que orientam em Mateus a parábola dos dois filhos.

Esta linha, que tanto tem de ousada como de inovadora, deixou depois, em termos de pensamento cristão, uma vasta e por vezes contraditória descendência. Trata-se de uma estirpe colossal, que também não é possível restituir aqui, no todo ou na parte. Adiante-se apenas que uma parcela significativa do pensamento ibérico de inspiração cristã ganha raízes no húmus desta linhagem. É o caso de Unamuno quando fala de um Cristo espanhol, bárbaro e agónico, trágico e africano, e sobretudo o de Pascoaes quando adianta que o pecado é mais fecundo que a virtude e que, no campo religioso, a acção dos ateus é mais criadora que a dos crentes (v. São Paulo, 1934). O pensamento deste escritor português, que ele designou de ateoteísmo, pode aparecer na modernidade como a mais séria actualização dos princípios doutrinários mais genuínos do cristianismo evangélico, mesmo que isso passe, como passa no caso de Pascoaes, pela reabilitação em toda a linha da figura do Anti-Cristo. O que importa, do ponto de vista do ateoteísmo, retomando agora a parábola dos dois filhos, não é dogmatizar o momento da revelação, seja o de João Baptista, seja o de Jesus, mas manter vivo o espírito de frescura irreverente que nessa manifestação se faz presente.
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*Professor de literatura e cultura na Universidade de Évora

(1) O texto de Mateus foi escrito originalmente em língua hebraica, aramaico, e só depois foi traduzido para a língua grega.
   


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