Fundação Maitreya
 
A Moira Encantada

de Almeida Garrett

em 12 Out 2006

  Almeida Garrett, iminente estadista foi também um notável poeta e romancista e de entre as suas obras destaca-se a peça de teatro, “Frei Luís de Sousa”. Nasceu a 4 de Fevereiro de 1799. O poema “Moira Encantada” oferece-nos uma janela de frescura e delicadeza.

Por manhã de San’João,
Que inda a aurora mal raiava,
E as ervas e as flores
Fino orvalho rociava,
Levantou-se o irmão mais velho
Do leito aonde velava:
Eram três todos pastores,
Cada um seu gado guardava.
Levantou-se o irmão mais velho,
Dos outros se recatava;
Foi direito à Fonte Santa,
Por ver que sorte deitava
Na manhã de San’João
Manhã de benta alvorada.

Banhando na fonte pura
Uma donzela se estava,
Seus cabelos de oiro fino
Com seu pente penteava.
Cada vez que corre o pente
Aljôfares desatava;
O seio tem descoberto,
Seio que de alvo cegava;
Cobre-lhe água o mais de corpo,
O mais que se imaginava.
Tem uma chave na mão,
Chave de oiro que brilhava.

- «Que buscais, pastor,
Que buscais nesta alvorada?»
- «Eu me vim à Fonte Santa
A ver que sorte deitava
Que a pobre vida que levo
A tenho almadiçoada».

- «És diligente pastor,
E bom fado te fadava,
Que chegaste à Fonte Santa
Quando eu nela me banhava».
Passam dias, passam meses,
Um ano inteiro passava,
E ninguém na Fonte Santa
Não vê a Moira encantada,
Senão só nesta manhã,
Manhã de benta alvorada.

- «Sejas tu moira ou crosta,
Ou sejas demónio ou fada:
Tira-me da pobre vida
Que trago almadiçoada.»

- «Escolhe por tuas mãos
Escolhe o que mais te agrada,
Ou ser rico – ou se feliz,
Ter poder e nomeada».
- «A riqueza dá ventura,
Dá poder e nomeada:
Quero ser rico, donzela,
Que o mais depois o comprava».

Com sua chave de oiro fino
Na viva rocha tocava,
Abrira-se uma caverna,
O pastor por ela entrava.
‘Té às entradas da terra
A sua vista penetrava;
Quanta riqueza há no mundo,
Toda a riqueza ali estava.
De fina prata os rochedos,
A areia de oiro brilhava,
Os seixos puros diamantes
Que os olhos lhe cegava.
Tomou quanto pôde e quis,
Milhões e milhões tomava.
Nem mais não viu a donzela
Que na fonte se banhava,
Nem mais viu nada no mundo
Do que o oiro que levava.
Não tornou mais à cabana.
Dos irmãos não se lembrava,
Foi-se direito à cidade,
Terra e haveres comprava.

Já o sol vem arraiando
Um silvo a donzela dava,
Nas pedras da Fonte Santa
Uma cobra se enroscava.

Ali dizem estar a moira,
Aquela moira encantada
Que só na manhã bendita
Se mostra pela alvorada:
Vê-la, foi vista por muitos,
Por ninguém desencantada.

Já o sol dá na choupana,
E os dois irmãos acordava,
Saíram com seus rebanhos
Que cada um deles guardava.
Passam horas, passam dias,
Viram que o outro irmão não tornava.
Dizia o irmão segundo
Ao mais novo, que chorava:
- «Fortuna achou nosso irmão
Que à choupana não voltava!».
Ele triste respondia:
- «Pobre de quem não voltava».

Passam meses, passa um ano,
Outra vez que alvorejava
A manhã de San’João
Que ervas e flores regava.
Levantou-se o irmão segundo
Apenas a alva alvejava.
Finge o mais novo que dorme
Mas não dormia, velava:
Contenta da sua sorte,
Mais sorte não cobiçava;
Por manhã de San’João.
Sua sorte não deitava.

Foi-se o outro à Fonte Santa,
A mesma donzela aí estava
Que o seu corpo delicado
Nas puras águas banhava
Mas os seus cabelos de oiro
Agora negros mostrava.
Uma coroa real
Sua cabeça coroava;
Ceptro que tinha na mão
De majestade cegava.
- «Bem-vindo sejas, pastor,
Bem-vindo nesta alvorada,
Que vieste à Fonte Santa
A ver a moira encantada:
A sorte de teu irmão
Em ti será melhorada:
Como ele podes ser rico,
Ou ter mando e nomeada,
Ou podes ser venturoso
Se a ventura mais te agrada».
- «Só uma sorte no mundo,
Uma sorte eu invejava,
Que é senhor e ter mando,
Tudo o mais por isso eu dava».

Sorriu de um triste sorriso
A donzela que o escutava:
Com o seu ceptro de oiro fino
Na viva rocha tocava,
Logo um soberbo castelo
Da rocha se alevantava
E um pendão de nobres armas
Nas ameias tremulava:
De escudeiros e vassalos
A torre se povoava,
Grande pompa de cortejo
À porta da torre estava.
- «Aí tens grandeza e mando,
Tudo o que mais cobiçava
O teu coração, pastor,
Que mais nada desejava».

Entrou na torre o pastor,
Entrou na torre fadada,
Não disse adeus à donzela,
Não se lembrou de mais nada.
Era grande, era senhor,
Aos seus vassalos mandava.
Nem voltou mais à choupana
Nem dos irmãos se lembrava.

Lá vinha o sol arraiando,
Um silvo a donzela dava,
Nas pedras da Fonte Santa
Uma cobra se enroscava:
Era a moira – a pobre moira
Cada vez mais encantada.

Já o sol dá na choupana,
O irmão móis moço espertava,
Leva o seu rebanho ao pasto
Que agora ele só guardava.
Passam dias, passam meses,
Viu que o irmão não voltava;
Triste, dizia consigo
- «Pobre do que não tornava!».

Passam meses, passa um ano,
Outra vez que alvorejava
A manhã de San’João
Que ervas e flores rociava.
Com saudades dos irmãos
O mais moço despertava:
- «Foi por tal manhã como esta
Que um e outro se ausentava.
Esta querida choupana
Que nosso pai fabricava,
Onde ao leite de seu peito
A nossa mãe nos criava,
Nenhum mais cá tornava
Ambos seu fado os levava!
Que sorte seria aquela
Que o coração lhes mudava?
Vou-me eu à Fonte Santa
Vou também nesta alvorada».

À fonte se foi direito
Inda a alva não alvejava,
Deu co’a formosa donzela
Que na fonte se banhava.
Tão bela como os mais anos
E ainda mais bela estava.
Nem de pedras preciosas,
Nem de pérolas se toucava,
Nem ceptro, nem chave de oiro
Na sua mão não brilhava;
Tinha uma c’roa de rosas
Alva, que de alva cegava;
As suas claras madeixas
Pelos ombros debruçava;
Com um sorriso de amor
Os alvos dentes mostrava;
No puro azul de seus olhos
Um céu aberto mostrava.

- «A que vens aqui, pastor,
A que vens nesta alvorada?
Que queres da Fonte Santa
Da sua moira encantada?».

- «Novas quero, buscar novas
De dois irmãos que eu amava,
Que há um ano e dois que se foram,
Que deles não sei mais nada.»

- «Um é rico, à sua porta
Se mede o oiro à rasada;
O outro tem poder e mando,
É senhor de capa e espada».

- «Dize-me tu, ó donzela,
Por esta benta alvorada,
E San’João te dê ventura,
Que sejas desencantada,
Dize-me se são felizes
Co’a sorte que lhes foi dada».

- «A sua sorte neste mundo
A ninguém não é deitada,
De escolher cada um por si
A liberdade lhe é dada:
Feliz o que bem escolhe,
Infeliz quem mal se fada!
Pastor, tu que és tão discreto,
A ti que sorte te agrada,
Ser rico, ou ser venturoso,
Ter poder e nomeada?».

- «Felizes são meus irmãos
Com a sorte que lhes foi dada?».
- «Um é rico, à sua porta
Se mede o oiro à rasada;
O outro tem poder e mando
É senhor de capa e espada».
- «Quer-lhe alguém bem neste mundo?».
- «Seu poder, sua riqueza
De todos é invejada».
- «Adeus formosa donzela,
Adeus moirinha encantada!
Que eu me vou ao meu rebanho,
Que já a manhã é nada».

- Pastor, toma esta capela
Que por ti foi bem ganha.
Do puro orvalho do céu
Nesta manhã foi banhada,
De frescas rosas tecida,
Por San’João abençoada.
Terás por ela a ventura,
A ventura bem fadada,
Que a moira da Fonte Santa
Há mil anos encantada
Tua será de alma e corpo,
Por ti foi desencantada».

Ventura todos a querem
Por todos é desejada:
Não a tem quem a procura,
A quem não a busca é dada.
   


® http://www.fundacaomaitreya.com

Impresso em 28/3/2024 às 14:23

© 2004-2024, Todos os direitos reservados