Frei Luís de Granada
de Pedro Teixeira da Mota em 28 Dez 2006 Quando se comemora o V centenário do nascimento dum varão religioso que, embora não beatificado, foi reconhecido ao longo dos séculos como guia espiritual, pelo menos para milhares de leitores das suas múltiplas edições, nas mais diversas línguas e locais (1), há que realçar, para falar ao nosso tempo, alguns núcleos fulcrais da sua vida e do seu ensinamento, ainda hoje suficientemente fortes para inspirar, guiar, fortalecer.
Frei Luís de Granada, mestre da via espiritual I Sua vida Entre eles, destacaremos na sua vida, a exemplaridade de conduta (com o pequeno senão de no início da ocupação espanhola talvez não ter sido suficientemente defensor dos dominicanos portugueses “danados” por Filipe II, terem sido apoiantes de D. António, Prior do Crato) e o reconhecimento dos erros de apreciação (caso da Soror Maria da Anunciação, que afinal não recebera os estigmas de Jesus). E também a sua adesão e entusiasmo com as novas formas de dinamização da espiritualidade e do apostolado (tal as correntes místicas do Norte da Europa e da Itália, o Humanismo e o Erasmismo, e a Companhia de Jesus), manifestadas na aceitação do valor da tradição greco-romana, sobretudo como subsidiária a um cristianismo mais profundo, crítico e evangélico (livre da escolástica e de excessivos formalismos), na adopção nos livros religiosos da língua vulgar de cada nação, na valorização (a par da vida activa de amor ao próximo) da oração mental e contemplativa, bem como da comunhão frequente. Realce final para a sua grande devoção à oração e à escrita espiritual (está considerado, desde Quevedo, como um dos grandes prosadores do castelhano), pautada por uma vida de renúncia aos bens e grandezas do mundo (tal o convite de Bartolomeu Carranza para catedrático em Valhadolide, tal da rainha D. Catarina (2), para o arcebispado de Braga, e que passou ao seu amigo, Bartolomeu dos Mártires, curiosamente santificado recentemente, e para o qual terá também contribuído a biografia que lhe escreveu), vivendo para rezar, escrever, confessar e pregar, a partir do convento de S. Domingos, em Lisboa. Mas relembremos, de fugida, a sua vida: nascido em 1504 em Granada, na Andaluzia, como Luís Sarria, pobre, e desde os 5 anos órfão de pai, recebe aos 20 anos o hábito dominicano, estudando no Colégio de S. Gregório em Valhadolide de forma aberta e humanista (aluno de Bartolomeu Carranza, Melchor Cano e Diego de Austudillo), mas com o tempo prefere a pregação e o chamamento à vida de oração e contemplação, inspirado pelos primeiros padres do deserto e da Igreja, os místicos alemães e italianos, e em especial Savonarola e S. João de Ávila. Em 1543 é eleito prior do convento de S. Domingos em Badajoz, mas recebe autorização do geral da ordem Dominicana para andar a pregar (3) em regiões até então pouco visitadas e a sua fama chegará a Portugal, sendo convidado em 1550 pelo cardeal D. Henrique para seu confessor, e para vir pastorear em Évora, provavelmente também para lhe evitar problemas com a Inquisição espanhola, que já perseguia os seus amigos Bartolomeu Carranza e S. João de Ávila, como ele propugnadores dum a cristianismo mais evangélico e interior. Após uns anos em Évora (onde se torna amigo de Bartolomeu dos Mártires e Francisco Foreiro), é transferido em 1556 definitivamente para Portugal. Em 1557 é eleito provincial dos Dominicanos e desenvolve o convento de Nª Senhora da Luz em Pedrógão Grande como local de noviciado, onde as suas práticas meditativas e orativas entre rochas milenares deram origem à designação dos penedos de Granada, local ainda hoje convidativo aos recolhimentos e anelos místicos. Funda ainda o de S. António, em Montemor-o-Novo. Desde 1562 que está em Lisboa onde viverá até ao fim da sua vida terrena em 1588, escrevendo, confessando e pregando, com algumas perseguições da corrente dominicana favorável à linha dura espanhola. II - Sua obra. Os problemas com a Inquisição. As partidas de Frei Luís. Autor de dezenas de obras, de milhares de páginas de grande sabedoria e devoção, é difícil sintetizar em poucas linhas a sua doutrina que, não se afastando das Fontes tradicionais, quer patrísticas, quer dos grandes teólogos e místicos da Igreja, mesmo assim apresenta as suas peculiaridades, das quais passamos a citar alguns textos, quem sabe mais despertantes da nossa própria espiritualidade, tão adormecida e espartilhada pelos ritmos, conteúdos e modos de vida modernos. A ortodoxia doutrinária das suas obras foi questionada pelos teólogos da Inquisição espanhola, nomeadamente por um certo erasmismo (regresso aos Evangelhos, estudados criticamente nas suas fontes e vulgarizados nas línguas nacionais, reforma do clero, resolução dos conflitos pela concórdia) e por uma valorização excessiva da interioridade e da oração de quietude (4) e por isso foi avisado que poderia ficar incluído no Index dos livros proibidos espanhóis, ordenado pelo Arcebispo de Sevilha Fernando Valdéz. Em 1559 partirá para justificar-se em Valhadolide, e dessa situação perante a Inquisição, ficará o célebre dito, “por Valhadolide nem ao céu quisera ir”. Contudo, o Index já estava a imprimir-se e não se livrou sequer disso. É forçado, pois, a diminuir as suas posições mais entusiásticas sobre o dever de todo o cristão ser chamado ao caminho da perfeição e, portanto, aos graus mais elevados de oração, contemplativos e unitivos, e assim as edições posteriores serão refeitas em alguns pontos, para não alimentarem tendências e grupos de iluminados que não ligavam muito a certos aspectos exteriores da religião, ou mesmo se desviavam errada ou insidiosamente doutros. A comparação detalhada dos textos da sua obra, bem como dos conteúdos em termos de doutrina da oração, nas diferentes edições, ainda não está realizada completamente (apesar de alguns estudos valiosos, como os de Silva Dias e Maria Idalina Resina Rodrigues), para que possamos compreender totalmente o seu magistério e as alterações sofridas decorrentes da repressão inquisitoral espanhola. Pouco depois da promulgação do Index espanhol de 1559, as acusações levadas pelos inquisidores e enviados de Castela ao Concílio de Trento contra os mestres da via mística, em especial o Arcebispo de Toledo, Bartolomeu Carranza, mas também Luís de Granada e S. João de Ávila, foram neutralizadas, pois em 2 de Junho de 1563 os Arcebispo de Praga, Veneza, Lanciano, Palermo e Braga, cinco bispos, o geral da Ordem de S. Agostinho e Frei Francisco Foreiro, assinam a aprovação do decreto que aprova a ortodoxia do catecismo de Bartolomeu Carranza, e portanto dos livros de Frei Luís de Granada. Apesar disso o extremismo dos inquisidores espanhóis, especialmente do rei Filipe II, Fernando Valdéz e Melchor Cano, que nada gostavam da valorização da via mística em detrimento da via intelectualista e escolástica, continuaram a manter Carranza preso na Inquisição (5). De qualquer modo, houve uma aceitação dos ensinamentos de Carranza e de Granada, e logo em seguida o capítulo provincial Dominicano, reunido em Bolonha, conferia a Luís de Granada e a Francisco Foreiro o grau de mestres em Teologia. Na sua vasta obra, entre os livros traduzidos, está a Santa Escada de S. João Clímaco, publicada em 1562, logo após a repressão de que os seus dois livros: (Livro da Oração e da Meditação, e o Guia dos Pecadores) foram alvo dos inquisidores espanhóis, e que me parece ser mesmo uma resposta discreta, até para a posterioridade: “Ah! já que querem tolher o desabrochar da espiritualidade das pessoas, aí vai uma obra dum dos mais antigos santos da Igreja sobre o assunto”. Certamente que ela não sofreu cortes nem alterações, tanto mais que o censor ordinário era o seu amigo Francisco Foreiro, e pode assim inspirar muito gente nos caminhos da interioridade. Impressa em Lisboa por Ioannes Blavio de Colónia aos XXX de Fevereiro de 1562, se não sofreu na altura cortes, já não podemos dizer o mesmo de hoje, e assim temos à vista a edição de 1562 e outra impressa na Argentina em 1988, e onde, embora se diga que seguiram a tradução de Luís de Granada, a versão é, em geral, uma sombra da tradução de Granada (embora saibamos que ele parafraseou frequentemente a obra original). Vejamos os títulos dos últimos capítulos, em Luís de Granada: Cap. e Degrau XXVII. Da Sagrada Quietude do corpo e da alma. De diversas diferenças e graus que tem a Quietude. XXVIII. Da Bem aventurada virtude da Oração, e da maneira que nela assiste o homem ante Deus. XXIX. Do Céu terreal: que é bem aventurada Tranquilidade; e da perfeição e ressurreição espiritual da alma antes da comum ressurreição. XXX. Da união e vínculo das três virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade. Os títulos na versão moderna são mais curtos, começando pelo XXX, Da Caridade, Esperança e Fé. XXIX Da Impassibilidade. XXVIII Da Oração, e XXVII Da Hesychia. O receio da quietude (queimada pelo labéu dos quietistas, de Miguel de Molinos a Fenélon), leva mesmo o responsável da edição na editorial Lumen, esclarecer em nota de rodapé: “No original hésychia, do grego “tranquilidade”, “repouso”. É o estado de tranquilidade espiritual em que se encontram os que se consagram à oração perpétua”. Como se pudessem deter as águas vivas, aquietantes e beatíficas da graça, que chegam a todos os que oram, para estarem só reservadas aos dedicados à oração perpétua. Mas a pobreza da versão actual perante a riqueza da parafraseada por Frei Luís é tão abismal que não resistimos a citar o nosso frade: "A cela (quarto) do verdadeiro solitário é o seu próprio corpo (aonde traz a alma recolhida onde quer que esteja) e dentro dele está a escola da verdadeira sabedoria... Vi alguns amadores desta sagrada Quietude, os quais por meio dela fartaram sem jamais fartar-se o desejo acendidíssimo que tinham de Deus, acrescentando cada dia fogo a fogo, desejo a desejo... Aqueles cuja alma sabe orar de verdade, falam com Deus rosto a rosto, como quem fala com o Rei ao ouvido; mas aqueles cuja boca ora, são semelhantes aqueles que falam ao Rei diante do senado; e os que moram no século, são como os que estão no meio do povo desassossegado, falando com o Rei de muito longe. E se tu estás destro nesta arte de orar, entenderás muito bem isto que dizemos. Assenta-te como uma atalaia no mais alto da tua alma, e daí examina e olha-te a ti mesmo diligentemente (se sabes fazer este ofício) e então entenderás de que maneira, e em que tempo, e por que parte, e quantos e quais são os ladrões que querem entrar em tua vinha e furtar os frutos dela...". III - Ensinamentos. Oração ao Espírito Santo. Quem ler a obra tão viva e ardente de Frei Luís de Granada espantar-se-á, mas certamente a atribuirá à grande devoção, trato e amor que o mestre tinha com Deus, o Espírito, a Tradição cristã, e aos frequentes exemplos de aspectos e casos da vida quotidiana, bem como as belas analogias extraídas do grande livro da natureza, nomeadamente do majestoso Cabril, que ele tão sabiamente sentia e conhecia. É equilibrada a sua concepção do caminho espiritual: há que exercer as virtudes numa vida justa, fazer certas austeridades e mortificações dos instintos, oral e contemplar com devoção, confiar e pedir a Deus, pela graça justificante de Jesus, e realizar o estado unitivo de amor com Deus. Tem-se dito que a sua teologia e marcadamente cristocêntrica, mas parece-nos antes que está bastante equilibrada entre o Pai, o Filho e o Espírito, e se são muitas as páginas de considerações e meditações dedicadas a Jesus também muitas há dedicadas pura e simplesmente a Deus, e algumas outras ao Espírito Santo, como por exemplo esta oração que extraímos do Memorial da Vida Cristã, da edição impressa em 1583 em Salamanca: “Ó Espírito Santo consolador, que no dia santo do Pentecostes desceste sobre os apóstolos, e enchestes aqueles peitos sagrados de caridade, de graça e de sabedoria, suplico-te Senhor, por esta inefável largueza e misericórdia enchas a minha alma, da tua graça, e todas as minhas entranhas da doçura inefável do teu amor. Vem, ó Espírito santíssimo, e envia-nos desde o céu um raio da tua luz. Vem, ó Pai dos pobres. Vem, doador dos lumes, e do lume do coração. Vem, consolador muito bom, doce esposo das almas, e doce refrigério delas. Vem a mim, limpeza dos pecados, e medicina das enfermidades. Vem, fortaleza dos fracos, e remédio dos caídos. Vem, mestre dos humildes e destruidor dos soberbos. Vem, singular glória dos que vivem, saúde única dos que morrem. Vem, Deus meu, e prepara-me para ti com a riqueza dos teus dons e misericórdias. Embriaga-me com o dom da sabedoria, ilumina-me com o dom do entendimento, rege-me com o dom do conselho, confirma-me com o dom da fortaleza, ensina-me com o dom da ciência, fere-me com o dom da piedade, e trespassa o meu coração com o dom do temor. Ó dulcíssimo amante dos limpos de coração, acende e abrasa todas as minhas entranhas com aquele suavíssimo e preciosíssimo fogo do teu amor: para que todas elas abrasadas, sejam arrebatadas e levadas a ti, que és o meu último fim, e abismo de todos os bens”. IV - Escola espiritual e denúncias na Inquisição lisboeta. Outra partida de Frei Luís à Inquisição. O Memorial, composto de vários Tratados e das Adições, como as outras obras de Granada, estão cheios de ensinamentos cujo fim é estimular as pessoas rumo a Deus, e tanto apontando os perigos dos desvios e embrutecimentos, como os meios e benefícios da purificação, iluminação e união. Tem-se por vezes acentuado que devido à repressão espanhola dos alumbrados, e à dos iluministas portugueses, que em muitos casos certamente se tinham deixado levar por entusiasmos e egoísmos desvalorizadores das práticas comuns da religião, se travara o ensino da oração e meditação contemplativa e que por tal Frei Luís de Granada voltara atrás e alterara muito a sua obra. Ora se é verdade que teve de cortar muito e modificar, é um facto que continuara a defender a primazia da via afectiva sobre a intelectual e escolástica, e o da oração mental, de quietude ou contemplativa, embora reforçando o valor da ascese ou via purgativa, e salvaguardando o da oração vocal não só evidentemente para os principiantes, mas também para os mais adiantados ou perfeitos, como forma de acender a devoção, em quem a pronuncia com sentimento e consciência (amor). E que pregava estas suas doutrinas sem medos, prova-se pelas denúncias anotadas nos registos da inquisição (6) de 1571 contra Luís de Granada por defender que as pessoas deveriam andar sempre conscientes da presença divina nelas (seria como luz no coração, ou como consciência a todo o momento, quer da proximidade de Deus quer do seu olhar benigno sobre nós?) (7). Sabemos que Frei Luís de Granada animava reuniões de padres e leigos que se juntariam, quer para conversas, quer para oração, e em que participaram Bartolomeu dos Mártires, os irmãos Paiva Andrade, frades agostinhos como Tomé de Jesus, Fr. António da Encarnação, Valentim da Luz (que veio a ser queimado pela Inquisição em 1562), e Sebastião Toscano (autor do livrinho Mística Teologia), entre outros, como franciscanos e capuchos, dialogando-se então sobre os pontos difíceis do caminho e da literatura espiritual e, disso, podendo resultarem tanto fortificações interiores como repulsões e delações. (8). A fidelidade ao valor da oração interior comprova-se bem no Memorial da Vida Cristã, nomeadamente nos dois tratados dedicados a oração vocal e a oração mental, no qual o primeiro tem várias páginas que tanto servem para a oração vocal como para a mental, e o segundo continua com exemplos dos estados elevados de recolhimento interior obtidos por santos, e que todos poderiam ou deveriam alcançar, sendo para isso dados exemplos e conselhos. (9). Deste modo Frei Luís de Granada escapava aos mais feros atacantes da religiosidade devota e interiorizante, generalizável em princípio a todos, pois a sua obra, ainda por cima escrita em várias línguas vulgares, andava acendendo braseiros directos nas almas cristãs, bem perto dos sentimentos e necessidades dos que ansiavam por avançarem no caminho do conhecimento e do amor de Deus. E que Frei Luís de Granada era mesmo capaz de pregar partidas está o facto descoberto pelo Prof. José de Pina Martins (10) de ele ter incluído duas orações poéticas de Erasmo e de Pico della Mirandola no final do seu livro de Sermões, sem referir o nome do primeiro, então a ser vítima da desconfiança dos sectores mais extremistas ou conservadores do pensamento católico (entre os quais os inquisidores espanhóis, estando o seu nome e obra em vários Index) (11). Assim foi com duas orações poéticas, escolhidas certamente pela sua beleza e por provirem de dois dos mais altos espíritos humanos de sempre (e curiosamente tendo tido os dois problemas de censura com os seus livros), que Frei Luís de Granada quis coroar a sua obra de transmissor do Verbo, ou seja, os três volumes dos seus Sermões (12). V - A arte de Orar. Ensinamentos ainda actuais. Podemos sem hesitações considerar Frei Luís de Granada como um dos grandes mestres da arte de orar, na história da espiritualidade mundial, pois são centenas as páginas ainda hoje exemplares dedicadas a clarificar a devoção e a oração. No princípio do prólogo ao Libro de la Oracion, y Meditacion (e citamos na edição de Salamanca, 1575, já portanto corrigida, pois a primeira era de 1554), Frei Luís de Granada resume o livro deste modo: “Oração propriamente falando, e uma petição que fazemos a Deus das coisas que convém para a nossa saúde. Mas toma-se também Oração noutro sentido mais largo, por qualquer levantamento do coração a Deus e segundo isto a meditação, e a contemplação e qualquer outro bom pensamento se chama Oração. E desta maneira usamos aqui deste vocábulo, porque a principal matéria deste tratado é a meditação e consideração das coisas divinas, e dos mistérios principais da nossa fé. O que me moveu a tratar esta matéria foi, ter entendido, que uma das principais causas de todos os males que há no mundo, e falta de consideração, como significou o profeta Jeremias quando disse: “Assolada e destruída está toda a Terra: porque não há quem pare a pensar com atenção as coisas de Deus”. “Assim como dizem os médicos, que para os medicamentos aproveitem é necessário primeiro que sejam actuados e digeridos no estômago com o calor natural (porque de outra maneira nenhuma coisa aproveitariam) assim também para que os mistérios da nossa fé nos sejam proveitosos e salutares convém que primeiro sejam actuados e digeridos no nosso coração com o calor da devoção e da meditação, porque de outra maneira muito pouco aproveitam”. O exercício da consideração e meditação dos mistérios de Deus, que é o estudo da verdadeira sabedoria, e constantemente exemplificado Frei Luís de Granada, citando por exemplo Moisés: “ouvi estas minhas palavras nos vossos corações, e trazei-as atadas como por sinal nas vossas mãos, e ensinai aos vossos filhos, para que pensem nelas. Quando estiveres assentado na tua casa, ou andares pelo caminho, quando te deitares, e levantares, pensarás e ruminarás nelas, e escrevê-las-ás nos umbrais e portas da tua casa, para que sempre as tragas diante dos teus olhos. Com que palavras se podia mais encomendar a continua meditação e consideração das coisas divinas, que com estas?”(13). Contudo, para Luís de Granada esta consideração ou meditação (ora usando a imaginação visualizadora, tal sobre a vida de Jesus, ora intelectual ou de entendimento, sobre o que não é do domínio dos sentidos), é apenas uma das partes da Oração, sendo as duas primeiras a preparação (aparelhar o nosso coração, quer lembrando-nos e pedindo desculpa pelos nossos erros, quer, pensando na grandeza infinita de Deus) e a lição (leitura de algum texto sagrado), e as últimas a acção de graças (pelos benefícios recebidos) e a petição (do que é necessário a nós e aos outros). “A consideração desencerra o encerrado, desprega o encolhido, e aclara o escuro: e assim esclarecendo o nosso entendimento com a grandeza dos mistérios, inclina a nossa vontade (quanto é de sua parte) a viver conforme ele. Este ofício figurou Deus na lei singularmente, quando entre as condições do animal limpo pôs uma, que foi ruminar o que comia. Pois claro está que pouco fazia isto ao caso de ser o animal limpo, ou não limpo; e pouco cuidado disto tinha Deus. Mas quis representar-nos nisto a condição e o ofício dos animais espiritualmente limpos (que são os justos) os quais não se contentassem com comer as coisas de Deus, crendo-as pela fé, senão ruminando-as também depois de comidas pela consideração, e esquadrinhando os mistérios que creram, e entendo o tamanho e a grandeza deles, repartindo logo este manjar por todos os membros espirituais da alma para sustento e reparo dela”(14). Noutro passo explica Frei Luís de Granada que o amor de Deus só pode crescer com a prática, com o exercício, e para movermos a vontade a amar é necessário estarmos sempre considerando os benefícios de Deus e as suas perfeições “porque cada uma destas coisas bem considerada é como um pedaço de lenha, ou um tição que atiça e acende nos nossos corações este fogo do amor. Pelo que nos convém alimentar muitas vezes este fogo com esta lenha, para que assim nunca desfaleça nele esta chama divina: como o figurou Deus na lei quando disse: No meu altar (que é o coração do justo) sempre haverá fogo. E para isto se terá cuidado cada dia pela manhã de alimentá-lo com lenha (que e a consideração de todas estas coisas), que assim se pode sempre conservar. E assim diz o Salmo, com a minha meditação e consideração se acenderá mais este fogo, ou seja, a caridade”. Esta valorização da consideração e meditação constante prende-se com a questão do mal: porque não discernimos nós o bem e o mal, porque fazemos por vezes o mal sabendo-o? Para Luís de Granada não é tanto uma questão de entendimento mas mais de vontade: são os nossos apetites que obscurecem a luz natural do entendimento e nos levam para comportamentos incorrectos (15). E portanto trata-se de recuperar a vontade ao serviço do que há de mais elevado em nós, pelo que se deve abordar a oração “mais com afectos e sentimentos de vontade, que com discursos e especulações do entendimento”, reafirmando em seguida “não acertam com este caminho os que de tal maneira se põem na oração a meditar os mistérios divinos, como se os estudassem para pregar, o que é mais derramar o espírito, que recolhê-lo; e andar mais fora de si, que dentro de si. De onde nasce, que acabada a sua oração ficam secas e sem suco de devoção, e tão fáceis e ligeiros para qualquer leviandade, como estavam antes. Porque de facto tais não oraram mas falaram e estudaram, que é um negócio bem diferente da Oração. Deveriam esses tais considerar que neste exercício mais chegamos a escutar de que a falar, pois (como disse o Profeta) os que se chegam aos pés do Senhor, receberão da sua doutrina, como a recebia (aquele que dizia, “ouvirei o que fala dentro de mim o meu Senhor”. De que não é fácil, e sobretudo nos nossos dias, conseguir rapidamente o silêncio interior e receber a inspiração do espírito, ou vivenciar os estados unitivos, estava bem clarividente Frei Luís, explicando-o num dos Avisos do Livro da Oração e da Meditação (f. 238), com uma bela imagem (aliás utilizada por mestres de várias religiões ou tradições), da nossa condição de meditantes ou orantes: “na verdade o coração humano é muito semelhante à água turva, a qual não se pode subitamente aclarar por muitas diligências que para isto se fizessem, senão dando tempo e espaço para que pouco a pouco se vá aclarando e assentando”, e mais à frente aconselha “que tomemos para este santo exercício o espaço de tempo mais largo que possamos, e melhor será um espaço largo que dois curtos; porque se o espaço é breve, todo ele se gasta em sossegar a imaginação, e aquietar o coração; e depois de já quieta, levantamo-nos do exercício ao tempo que o deveríamos começar. Qual é o cavador que buscando ouro numa mina, salta a enxada quando encontrou o veio?”, sugerindo então por fim, “descendo mais em particular a limitar este tempo, parece-me, que tudo o que é menos de hora e meia, ou duas horas, é prazo curto para a oração... mas o que for pobre de tempo pelas suas muitas ocupações, não deixe de oferecer a sua moedinha com a pobre viúva no templo (S. Lucas 21)” Qual o culminar da oração-meditação: (f. 431, do Livro da Oração e da Meditação) “Oração é um levantamento do nosso coração a Deus: mediante o qual nos chegamos a Ele, e nos fazemos uma coisa com Ele. Oração e subir a alma acima de si e sobre todo o criado, e juntar-se com Deus, e engolfar-se naquele pélago de suavidade e amor infinito. Oração é sair a alma a receber a Deus, quando vem a ela, e trazê-lo a si, como a seu ninho, e aposentá-lo em si, como em seu templo, e ali possui-lo, e amá-lo e gozá-lo. Oração é estar a alma em presença de Deus, e Deus em presença dela, olhando-a com olhos da misericórdia e ela a Ele com olhos de humildade: aquela vista é de maior virtude e fecundidade, que a de todos os aspectos das estrelas e planetas do céu. Oração é uma cátedra espiritual, onde a alma assentada aos pés de Deus ouve a sua doutrina, e recebe as influências da sua misericórdia, e diz com a Esposa nos seus Cânticos: A minha alma derreteu-se, depois que ouvi a voz do Amado. Porque (como disse S. Boaventura), ali acende Deus a alma com o seu amor, e a unge com a sua graça, a qual assim ungida, e levantada em espírito: e levantada contempla, e contemplando, ama, e amando, gosta; e gostando, repousa; e neste repouso tem toda a glória que neste mundo se pode alcançar”. Acrescentemos, para finalizar esta homenagem àquele do qual um cronista da sua ordem, Frei Fernando de Carrilho (citado na História de S. Domingos, de Frei Luís de Sousa), dizia “que iluminava e ensinava o mundo com os seus muitos livros e tratados cheios de espírito e erudição: por quem se renovou nos nossos tempos o santo exercício da Oração, e se fez uma reforma geral dos costumes no povo cristão”, dois últimos contributos de Frei Luís para a difícil arte de estar na presença divina: “quando se trabalha com as mãos, e também quando se fala, estuda ou negoceia, pode-se furtar muitas vezes o coração ao que se faz, e entrar dentro do templo do seu coração e adorar a Deus”, usando-se até as jaculatórias (orações curtas) intensas e que: acendem o fogo da alma, tais algumas das transmitidas no Livro da Oração e da Meditação: "Eu amo-te Senhor fortaleza minha; - Cria em mim, ó Deus, um coração limpo, e renova nas minhas entranhas, um espírito recto; - Como o veado deseja as fontes das águas, assim deseja a minha alma a ti, ó Deus…“ Porque o que de verdade ama a Deus em todas as coisas vê a Deus... pois Deus é causa do ser de todas as coisas, que está junto com elas, dando-lhes o ser que tem... E como o ser das coisas, é o mais íntimo que há nelas, segue-se que Ele está mais dentro de elas, que elas estão dentro de si mesmas. Então será demasiado trazer sempre diante dos olhos Aquele que te traz em seus braços, e te sustenta com seus pés e te rege com a sua providência, e Aquele em quem e por quem vives e és? Faz pois de conta que Ele está sempre assistindo a tua alma como criador e conservador, que a conserva no ser que tem, e não contente com assistir como criador e conservador, assiste também como justificador, dando-lhe graça, amor e muitas inspirações e desejos santos". 1 - "Chegaram aos Turcos, passaram aos Persas, e até aos últimos Chins.,. A todos espantam e a muitos convertem”, Frei Luís de Sousa. História de S. Domingos, Lisboa, 1767. I 2 - José de Pina Martins refere no seu monumental estudo Humanisme et Renaissance. De L 'Italie au Portugal, Les deux regards de Janus. Lisboa, 1989, o erasmismo inicial de D. Catarina, a rainha espanhola mulher de D. João III, lembrando ainda que em Espanha entre 1516 e 1531 tinham sido publicadas 15 obras de Erasmo. 3 – “Já nesta primeira idade era conhecido por recolhimento, oração e penitência; e como subia ao púlpito a persuadir o que fazia, saía a linguagem ardendo em fogo, e tão viva, e afervorada que fazia maravilhosos efeitos." Frei Luís de Sousa. História de S. Domingos. 4 Marcel Bataillon, no seu incontornável Erasme et L´Espagne (Paris,1937, e aqui citado na edição espanhola, aumentada, de 1966) diz: “A Luís de Granada estava reservado fundir de maneira mais decisiva a herança de interioridade do erasmismo com muitas outras tradições, antigas ou recentes, mas, sobretudo, com uma tradição dominicana de oração mental que vinha de Savonarola. Ninguém foi mais ecléctico, mais hábil para soldar, em uma só, jóias de proveniências muito diversas”. 5 - Preso em 1559, Frei Bartolomeu Carranza morrerá, mas já transferido para Roma (graças a Pio V), em 1576 ainda em cárcere inquisitorial. As sanhas do seu antigo colega Melchor Cano e de Filipe II tudo fizeram para que as apreciações da Universidade de Alcalá, e as decisões do Concílio e dos sucessivos papas não libertassem o livro da interdição e o sábio arcebispo da prisão. 6 - Conforme a transcrição dos processos que Silva Dias apresenta no seu pioneiro trabalho “Correntes do Sentimento religioso em Portugal”. Universidade de Coimbra, 1960. 7 - Na 2ª parte do Livro da Oração e da Meditação no capítulo III, Da quarta coisa que ajuda a devoção, que é a memória contínua de Deus, diz-nos “para esta guarda do coração atrás referido não há coisa que tanto aproveite como andar sempre na presença de Deus, e tê-Lo sempre diante dos olhos, não só no tempo e oração, mas em todo o lugar e o tempo”, pois “só assim se pode conservar o calor que extraiu da oração, e continuar o santo pensamento que ali se teve; pois esta continuação é a coisa que mais faz subir ao cume da perfeição, pois da outra maneira toda a vida se passa a tecer e a destecer, sem levar nenhuma coisa ao cabo”. 8 - Sobre o tema e o ambiente consultar além das obras de Frei Luís de Granada, as recentes de Silva Dias e Maria Idalina Rodrigues. 9 - Tal S. Catarina que orava apenas com soluços ou lágrimas e outros sem qualquer voz. No tratado quinto, da Oração vocal, cap. IV, do Memorial da Vida Crista, refere Frei Luís a propósito da vida de S. Domingos nove “modos de orar para despertar mais com alguns actos exteriores a devoção interior. Dos quais o 1º era, inclinando-se profundamente no altar, pressupondo que o altar era figura de Cristo, e lembrando-se de que está escrito: a oração do que se humilha penetra os céus. 2º Prostrando-se todo em terra dizendo: Senhor Deus tem piedade de mim pecador. 3º Disciplinar-se de pé. 4º De joelhos rezar. 5º “Estando em pé diante do altar, as mãos levantadas e um pouco estendidas à maneira de um livro aberto; e assim estava como que diante de Deus, lendo com grande devoção e reverência, e meditando as palavras, divina, e praticando-as docemente consigo”. 6º Pôr-se em cruz. 7º Em pé, mãos estendidas e direitas ao céu, como seta, e recitando o salmo 27: Ouve Senhor a minha voz quando clamo a Ti, quando levanto as minhas mãos ao teu santo templo. 8º Lendo livros após os cantos ou as lições, pensando ouvirei o que fala em mim o Senhor. 9º Orando ao caminhar, fazendo até o sinal da cruz, ou o gesto de afastar de si algo”. 10 - Em comunicação ao Convegno intemazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte di Giovanni Pica della Mirandola (1494-1994). Florencra' Olschki, 1997. 11 - Marcel Bataillon no Erasme et IThpagne, refere outra ousadia de Frei Luís de Granada: publicar em 1554 umas meditações suas, com a Confesion de un pecador penitente, de Constantino Ponce de la Fuente, um erasmista que se encontrava então preso na Inquisição. E em 1556 em Lisboa no seu livro Guia dos Pecadores lá vinha um sermão de D. Constantino, sem indicação da autoria… 12 - Já na edição plantiniana do 3º e último tomo das Concionum de Tempore, impressa em Antuérpia a poucos meses da morte de Frei Luís de Granada, só vem o poema de Erasmo, ainda sem seu nome. E anote-se que as ressonâncias da obra e ensinamentos de Erasmo em Frei Luís de Granada têm sido apontadas por Marcel Bataillon, Damaso Alonso, José V. de Pina Martins, Maria Idalina Resina Rodrigues e Cadafaz de Matos. 13 - Este passo presta-se a uma possível interpretação do filo-judaísmo de Frei Luís de Granada. Segundo investigações (Alvaro Huerga, na revista Hispania, IX, 1949. Fray Luis de Granada em Escalaceli. Nuevos datos para el conocimiento espiritual de su vida) parece mesmo que Frei Luís de Granada tinha ascendência de cristão-novo, o que o impossibilitara até de realizar a intenção de se tornar missionário. Nada então mais natural do que o seu amor pelos judeus enquanto potenciais conversos e que, por isso, tentasse estabelecer pontes para que eles saíssem do entendimento da letra do Antigo Testamento para a plenitude da Graça de Jesus Cristo e do Espírito Santo. Neste sentido corre o texto citado, pois sabemos como os judeus ainda hoje usam orações presas aos braços e as têm nos portais de suas casas. 14 - Nova interpretação simbólica do Antigo Testamento, a limpeza dos animais: os ruminantes são os meditantes; a pureza e da alma e não das cerimónias e preceitos exteriores. O que vai também num sentido erasmiano, e dos espirituais da época: passar do invólucro exterior para o significado espiritual. 15 – “Não pecam os homens tanto por falta de entendimento quanta de vontade; quero dizer, pecam tanto por ignorância do bem quanto pela desgana que tem dele”, o que nasce da corrupção e sendo o modo de a corrigir a devoção, que “é uma habilidade e dom celestial, que inclina a nossa vontade a querer com grande ânimo e desejo tudo aquilo que pertence ao serviço de Deus”, acrescentando ainda a seguir que ela “é um refresco do céu, e um sopro e alento do Espírito Santo, o qual rompe por todas estas dificuldades, sacode esse peso, cura este desgosto (desgana) da nossa vontade, e põe sabor no insípido, e assim nos faz prontos e ligeiros para todo o bem”. No caminho há pois que vencer o nosso apetite e os seus maus desejos, e eis uma das funções da purgação, mortificação ou controle dos sentidos (na parte ou estação ascética), para que a repetição diária de actos de devoção ou oração o inflame o afecto e permita as iluminações e, finalmente, na estação ou via unitiva a ligação com Deus, que é Amor sabedoria. Livro comemorativo do 5º centenário do nascimento de Frei Luís de Granada. extraído da “O Cabril do Granada”: Local de Mística e Poesia Editado: Casa de Pedrógão Grande – Lisboa 2004 |
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