Fundação Maitreya
 
Edward Burne-Jones

de Ana Sofia de Carvalho

em 29 Fev 2024

  «Burne-Jones imaginava a sua arte como significativa em formas, que não são só apenas o produto do impacto das cores, traço e forma. «Ele não viu nada a partir do ponto de vista puramente pictórico». «A sua pintura de excepcional carácter reflectivo: os trabalhos rodam em círculo à volta deles mesmos, voltando a questionar repetidamente, a razão da sua própria exigência de valor e sentido«. «A criação imaginativa do artista era um veículo que conduzia directamente ao coração da Realidade, colocando de parte as superficialidades do mundo». Edward Coley Burne-Jones, ou simplesmente Ted ou Ned Jones como era conhecido, nasceu a 28 de Agosto de 1833 em II Bennet’s Hill-Birmingham, na casa onde moravam e onde o seu pai também exercia o negócio como produtor de armações, molduras e trabalhos em talha. Com o título de Sir Edward Coley Burne-Jones tornou-se um dos mais bem sucedidos e honrados pintores do final do período Vitoriano, cuja arte foi definida, tanto pela sua contemporaneidade, como posteridade do seu “mundo de sonho”, na filosofia da arte estética de apreciação da beleza dos finais do séc. XIX, e pela função da arte como uma alternativa ao mundo vulgar e inquietante do dia-a-dia.

«É a arte da cultura» escreveu Henry James acerca das pinturas de Burne-Jones, «de reflexão, de luxo intelectual, de uma estética refinada, de pessoas que não olhavam o mundo e a vida directamente como era e em todas as suas acidentadas realidades, mas pela reflexão e através de um ornamentado quadro fornecido pela própria arte». Burne-Jones exigia em ocasiões, que aqueles que contemplassem a sua arte deveriam “passar através do portão dourado dos seus sonhos” ou falava em termos que pareciam implicar, uma certa evasão da realidade. Um dos seus representantes, Comyns Carr, tomou como garantido no seu ensaio introdutório da retrospectiva de 1898, na New Gallery em Londres, que a beleza que ele apresenta nas suas pinturas foi criada para habitar um mundo próprio, longe do mundo actual. Muitos dos observadores do trabalho de Burne-Jones sentiram algo semelhante, e a contemporânea historiadora e crítica de arte Debra Mancoff concorda com Carr, dizendo: «cada quadro que Burne-Jones pintou levou-o em uma jornada através da terra dos seus sonhos».

A intensidade e autoridade da visão de Burne-Jones acerca deste mundo alternativo, dá-lhe uma poderosa qualidade própria que parece irrepetível, tal como muitos dos seus imitadores descobriram: «aqui estava um artista cujas estereotipadas expressões de desaprovação ou aprovação não poderiam ser aplicadas», escreveu Malcolm Bell da participação triunfante de Burne-Jones na sua primeira exibição de Aestheticist “Palácio de arte”, na Grosvenor Gallery em New Bond Street, onde a sua reputação foi confirmada. A originalidade do trabalho de Burne-Jones deu-lhe a segurança, pelo menos a partir desse momento em diante, de um lugar inquestionável no panteão dos pintores Britânicos. A arte de Burne-Jones é imediatamente reconhecível. A sua série de pinturas intituladas, “The Days of Creation” (Os Dias da Criação), produzidas entre 10 em 1876, foi exibida em 1877, na 1ª exposição na Grosvenor Gallery e foram proclamados por alguns, como sendo bem representativas do seu período mais forte e característico (acrescentar respectivas fig. 2 e 3 do livro).

O assunto edifica a fantasia de faces angélicas e corpos envoltos em sumptuosas vestes, saídos directamente, da criação narrativa do Génesis: cada uma destas sete abstractas figuras sem marcada definição de sexo, à medida que surgem em cena, seguram um globo no qual o processo da criação se desenrola, desde o surgimento dos mares e da terra, emergindo do redemoinho da escuridão inicial até ao aparecimento de Adão e Eva. O assunto da criação, o invocar da substância que emergiu do vazio, está também incluído na elaboração e detalhe como Burne-Jones pinta e descreve estas cenas. A textura rica das suas pinturas, provém da combinação de vários materiais e técnicas que criam uma superfície cintilante, onde se une a precisão do pormenor com a capacidade de atrair e seduzir o espectador. O trabalho de Burne-Jones, frequentemente, realiza este duplo processo; por um lado o detalhe e descrição sugestiva de um mundo imaginário, por outro a concreta realização da imaginação por si mesma na forma de pigmento, cor e traço.

Algo similar poderia ser dito acerca de muitos artistas, mas no caso de Burne-Jones, a recorrência e a continuidade deste eixo duplo, ambos em toda a extensão da sua carreira e como tema principal em alguns dos seus mais importantes trabalhos, dá uma particular saliência no compreender da sua arte. A sua pintura de excepcional carácter reflectivo: os trabalhos rodam em círculo à volta deles mesmos, voltando a questionar repetidamente, a razão da sua própria exigência de valor e sentido. O brilho de substâncias raras ou finas, como o ouro e a pérola ou as densas pinturas que Burne-Jones criou em muitos trabalhos, permitiram às suas obras a capacidade de descrever alguma porção da realidade. Eles debatem-se desta forma, com temas que são importantes para todos os pintores e para quem quer que esteja interessado em compreender, como é que funciona a pintura e o que é que esta, pode significar para nós: como isso pode servir à nossa compreensão do mundo.
Esta não é uma arte que ignora a realidade separando-a do seu sonho, mas a que se preocupa ela mesma, com os caminhos, nos quais, a arte e especialmente a pintura, podem gerar o envolvimento com a realidade. A original, literalmente extraordinária qualidade da arte de Burne-Jones é produto, não somente do seu foco no acto e poder da criação, mas também, de uma mente arrojada para um pintor: Burne-Jones imaginava a sua arte como significativa em formas, que não são só apenas o produto do impacto das cores, traço e forma.

«Ele não viu nada a partir do ponto de vista puramente pictórico», relembra W. Graham Robertson que conhecia bem, Burne-Jones:
«Albert Moore chegaria de um passeio preenchido por um deleite quase difícil de ser expressado, pela memória das escuras árvores de Inverno que franjavam o verde jade de Serpentine, ou por algumas ostras abertas caídas num pedaço de papel azul ou pelo cesto de prímulas transportado pela rapariga das flores visto através do nevoeiro de uma manhã de chuva. Burne-Jones teria criado um romance ou contado um divertido conto acerca da rapariga das flores, mas não teria notado as suas prímulas, a combinação das ostras prateadas e o papel azul não o teriam por um só momento prendido com a sua beleza; ele não tem olhos de pintor».

Largamente autodidacta como pintor – num processo que continuou e, que de facto, atingiu o seu apogeu depois de ele se estabelecer e ser bem conhecido – as técnicas de Burne-Jones foram sempre consideradas excêntricas e frequentemente provocavam comentários em seus contemporâneos. Robertson parece atribuir esta particularidade a uma fundamental orientação longe da arte visual. A sua é uma interpretação tentadora, porque é verdade que os primeiros trabalhos públicos de Burne-Jones eram literários e porque ele, subsequentemente, recusou oportunidades de escrever ou falar com o fervor que sugerisse alguma significante repressão. Mas, também é verdade que como estudante, ele “estava sempre a desenhar”: desde a idade dos 15 anos, frequentava a Escola Governamental de Desenho em Birmingham, ao mesmo tempo que continuava com os seus estudos.

Por mais invulgar que fosse a arte que ele produziu na escala e realização técnica das suas ambições, desde cedo Burne-Jones foi dedicado na sua vida e durante toda a sua carreira, ao potencial visual. O mundo que ele via ao seu redor, desde a perspectiva ligeiramente precária de seu pai, era o mundo da industrialização vitoriana, com as suas fábricas, a infeliz classe trabalhadora e o interminável zumbido das maquinarias. Este foi o período em que a Inglaterra era a “oficina do mundo”, e quando as forças condutoras do capitalismo refizeram as paisagens e as cidades, com moinhos, fábricas e máquinas, as cidades transformaram-se e como expressaram alguns de seus contemporâneos, em desertos de modernidade e o preço ambiental e humano a pagar eram bastante evidentes para o jovem Ned Jones. «Eu lembro-me um sábado à noite», recorda mais tarde, «caminhando cerca de 5 milhas em Black Country, e nas últimas 3 milhas eu contei mais de 30 pessoas quase mortas de bêbadas, caídas no chão, sendo mais de metade mulheres».

Julia Cartwright escrevendo acerca da vida e trabalho de Burne-Jones para o anual de arte em1894, começa como depoimento de que, “a arte de Burne-Jones desde o primeiro até ao último trabalho tem sido um silencioso e inconsciente protesto contra as mais chocantes tendências do mundo moderno”.

Numa era onde o espírito científico penetrou em cada departamento da vida, este mestre, quase sozinho entre os seus iguais, revelou uma faculdade imaginativa rara. Num período essencialmente prosaico, quando o realismo havia invadido tanto a arte como a ficção, e a prosperidade material parecia ser o fim de todo o esforço, ele manteve-se um poeta e um idealista. A partir de um presente frio e sombrio ele se volta com toda a sua paixão e ardor para o passado esquecido, e lá, nos mitos e contos de fadas do mundo antigo, encontra o alimento ansiado pela sua alma. Lá, o seu amor pela beleza é satisfeito, a sua imaginação encontra-se em casa.

A arte promove a substância à vida, cujo materialismo vitoriano falha em oferecer. Este alimento necessário era espiritual; definido como aquelas correntes não comerciais da alma humana, que parecem perder todo o seu valor utilitário em termos económicos: idealismo, invenção e imaginação. Em 1908, o crítico de arte J.E. Phythian, ofereceu a sua própria versão, num livro sobre Burne-Jones, argumentando que todas as histórias contadas ou escritas emergiram de experiências de vida, mas que aquelas com um sentido mais profundo, não são aquelas que somente relatam os factos. Foi o importante crítico francês, Robert de la Sizeranne que no seu livro “Arte contemporânea Inglesa”de 1898, proporcionou a melhor exposição deste ponto de vista: «É perfeitamente verdade, que ele não pinta vestidos de valor ou mobília de lojas, e deveria ser congratulado por isso. Mas é um grande erro, cometido por realistas em busca da moderna superficialidade, pensarem que o seu trabalho sugere menos pintura contemporânea, menos interesse existencial, porque eles estão mais afastados da nossa vida diária que as ilustrações do Graphic ou do Ilustrated London News. Isto é provado pela extraordinária e permanente impressão que eles deixam a quem os tenha visto. Para mim eu nunca olhei para os seus trabalhos sem reviver as ansiedades e realidades da impermanência da vida».

Para Sizeranne e Cartwright, a devoção de Burne-Jones aos seus trabalhos imaginários, permite-lhe uma posição de vantagem de onde as verdades da experiência contemporânea são tornadas visíveis. O trabalho de sonho da sua arte, é um meio de oferecer consolo, mas também, análise e crítica, a uma era de realismo e materialismo.

Estes assuntos de industrialismo e materialismo já estavam a receber atenção pública nos tempos de escola de Burne-Jones. Os grandes pensadores Vitorianos, Thomas Carlyle, John Ruskin, John Newman e outros já apontavam o materialismo e a imoralidade do mundo moderno, que o capital industrial tinha construído, oferecendo as suas próprias alternativas. Em particular a imaginação de Burne-Jones e o desejo por renovação moral, pureza e valores espirituais foram inspirados pelos ideais do movimento Tractarian.

Inaugurado em Oxford por Newman, o movimento tentou uma renovação da Igreja Anglicana, buscando a inspiração no passado católico, dando ênfase aos benefícios espirituais dos rituais e da riqueza dos trajes, da decoração e do aparato, e de todo o visual da Igreja. Lidava também com a importância dos valores espirituais que para Burne-Jones e muitos dos seus contemporâneos, haviam sido omitidos da vida moderna: «no tempo dos sofás e almofadas», escreveu Burne-Jones sobre Newman, «ele ensinou-me a ser indiferente ao conforto e numa época de materialismo, ele ensinou-me a confiar mais no desconhecido».

Tractorianism deu a Burne-Jones o caminho para expressar o seu descontentamento com o mundo moderno, e encorajou-o a desenvolver um medievalismo romântico e espiritual como uma alternativa às brutalidades da vida moderna. Compaixão, Amor, Contemplação e uma compreensão meditativa do nosso encontro individual com o mundo, eram aspectos da experiência humana que Burne-Jones procurou na ligação entre o passado medieval e o moderno presente. Foi acima de tudo este intenso compromisso com a recuperação espiritual do passado com a manifestação da bondade humana em oposição a um presente corrupto, mecânico, que Burne-Jones ansiava por descobrir quando, em 1853, foi de Birmingham para o Exeter College em Oxford, com a firme intenção de se tornar padre. O Oxford que Burne-Jones encontrou enquanto estudante no Exeter College não foi o substrato vital para as sementes das novas ideias que o Tractarianism desenvolveu na sua imaginação. O movimento extinguiu-se por si mesmo no seu local original, dando lugar a uma ampla disseminação de outras, talvez menos exigentes, formas de observância e práticas religiosas.

Todo este processo induziu um forte impacto em Burne-Jones e a seu colega William Morris, que acabam por abandonar a via monástica e dedicarem-se às novas vias apresentadas pelas alternativas contemporâneas ao movimento Tractarian. É de salientar que ao lerem Thomas Carlyle e John Ruskin, dois dos mais influentes pensadores visionários cujos diagnósticos da vida contemporânea e experiência abarcavam o todo da sua Cultura, foi-lhes fornecido uma secular, apesar de não fora de religiosidade, versão da moralidade que eles haviam tocado no Tractorianism. Estes visionários viram Burne-Jones, o artista ou o escritor como um “herói”e, usando a noção de Carlyle, um mediador sacerdotal da experiência e realidade para os cidadãos do mundo moderno.
Estas estruturas morais e em muitas formas esta ética puritana de dever garantiram ao artista, a Burne-Jones e a outros, quer a obrigação, quer o poder de acalmar as depravações da modernidade. Os verdadeiros valores da experiência humana eram expressos vividamente e expostos claramente diante de todos nas suas audiências. A criação imaginativa do artista era um veículo que conduzia directamente ao coração da Realidade, colocando de parte as superficialidades do mundo. Pintar para a iluminação da sua audiência, a transformação da fantasmagoria da “vida real” nas realidades espirituais e valores que subjazem por de trás dela, tornou-se o seu propósito e ambição para o resto de sua carreira. Foi neste momento crítico do seu desenvolvimento que Burne-Jones encontrou pela primeira vez, o trabalho de um grupo de artistas e escritores cujas ambições correspondiam com o seu rápido e crescente senso de propósito, os Pré - Rafaelitas, e acima de todos Dante Gabriel Rossetti.

A dedicação de Burne-Jones ao mundo da arte, da contemplação e reflexão como princípios a serem vividos continua a falar às audiências hoje tal como o fez aos seus contemporâneos. A sua arte faz poderosas exigências ao estatuto e autoridade da pintura como um meio de compreender o mundo e de definir e promover valores que o mundo quotidiano raramente tem tempo para reconhecer. É verdade que a sua arte não coage o observador: ele não foi do tipo de artista de querer subir ao pódio: tranquila e persistentemente promoveu os valores que desejava ver estabelecidos na cultura.

A Arte é forte se providencia um espelho, um veículo para contemplação e reflexão, no qual Amor, Amizade, Devoção e Dever podem aparecer e serem proclamados e avaliados. Pela sua arte Burne-Jones inspira e restitui, mesmo ainda no nosso século, esta necessidade de buscar uma compreensão meditativa da vida.
   


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Impresso em 24/4/2024 às 4:26

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