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O Tauísmo - 1ª Parte

de Lubélia Travassos

em 16 Abr 2007

  A Filosofia do Tauísmo, ou seja, a sabedoria do coração, deriva da palavra TAU ou TAO, que é simultaneamente a unidade profunda, indissolúvel, que liga todas as coisas, e o fluxo inapreensível desta realidade global. Também, e de acordo com várias opiniões, embora divergentes sobre a sua tradução, poderá significar “Deus”, “caminho”, “razão”, “verbo”, “Logos”, ainda que alguns tradutores tenham trazido o Tau para as línguas Europeias sem lhe ter atribuído qualquer tradução.


A Sabedoria do Coração

O Significado do Tauísmo

O Tauísmo ou Taoismo é uma das três grandes Religiões da China tal como o Budismo e o Confucionismo. No entanto, deverá considerar-se o Tauísmo mais uma Filosofia do que propriamente uma Religião.
Segundo a história antiga da China existem, em termos gerais, três importantes sistemas de Filosofia a constatar:

1º. O Budismo, que era considerado uma Religião essencialmente transcendental, a roda da existência, em que havia algo que teria de ser desenvencilhado e onde as quatro nobres verdades nos afirmam que a vida é sofrimento, e que a sua causa é o desejo, que pode ser dominado, tendo como forma de o dominar o auto-estágio para o nobre caminho das oito iniciações;

2º. O Confucionismo, que poderia denominar-se uma doutrina mundial de propensão social, e também considerar-se como uma Filosofia relacionada com a primeira parte da vida;

3º. O Tauísmo, a Filosofia que se referia ao homem como indivíduo relacionado com o mundo natural. Aliás, a história antiga Chinesa denomina o Tauísmo de Filosofia da segunda metade da vida, isto é, a altura exacta em que o homem sente, de um modo crescente, vontade de se retirar, libertar-se do mundo, das coisas exteriores, libertar-se de si mesmo, viver com a natureza, para meditar, numa altura em que as suas ambições já foram atingidas ou frustradas; quando existe uma necessidade premente de mudança inadiável, de qualquer espécie; quando questões significativas se tornam importantes e a abertura entre o homem natural e o homem espiritual começa a encerrar-se; quando começa, então, a reintegrar-se a solidariedade que existe entre o homem e o cosmos.
Enquanto o Confucionismo fora denominado como uma Filosofia da primeira metade da vida, e segundo Joseph Needham, como sendo "masculino, directo, difícil, dominador, agressivo, racional, donativo", relacionando-se mais num ajustamento com o mundo, em especial com um mundo feudal e burocrático, processou-se exactamente o contrário com os Tauístas, que romperam com tudo isso, ao enfatizarem tudo o que é "feminino, tolerante, produtivo, permissivo, retraído, místico e receptivo".
Temos como exemplo desta Filosofia de vida Li Po, que estava a sentir esta transformação quando escreveu:
«Perguntais-me porque permaneço nestas montanhas azuis.
Limito-me a sorrir, simplesmente, não tenho resposta.
Ó, a minha mente encontra-se a descansar.
As flores de pessegueiro e a corrente dos rios passam sem deixar qualquer rasto.
Como tudo isso é diferente do mundo profano».

A Origem do Tauísmo

O Tauísmo, que segundo várias definições é para uns uma Filosofia Chinesa, para alguns a Religião dos Chineses, e ainda para outros uma mistura diversificada de práticas ocultas e alquímicas, ter-se-á desenvolvido, no primeiro caso, em paralelo com o Confucionismo e o Neo-Confucionismo; no segundo caso, ter-se-ia substituído à religião antiga, vindo depois a sofrer o acesso repentino do Budismo, que entrou na China por volta do Século. III, d.C. e; no terceiro caso deverá ter remontado a Huang Ti, o Imperador Amarelo, que viveu no 3º. Milénio a.C. Seguindo esta ordem de ideias cronológicas, tornar-se-ia mais exacto se inseríssemos o Tauísmo num sistema Filosófico-esotérico e religioso, que entrou em cena na China há cerca de 5.000 anos, tendo encontrado a sua via mística no Século IV a.C., resistindo durante vinte e cinco séculos, embora esteja presentemente quase em vias de extinção.

Na verdade, poderá considerar-se o Tauísmo como tendo duas origens: Uma proveniente dos Filósofos, do período dos governos que se hostilizavam (entre 480-220 a.C.), que seguiram mais um Tau relacionado com a Natureza do que um Tau relacionado com a sociedade humana. Isto é, em vez de procurarem uma ocupação nas cortes dos príncipes feudais, preferiram retirar-se para a floresta e para as montanhas, para meditarem sobre a ordem da Natureza, assim como observarem as suas inumeráveis manifestações. A outra, proveniente dos Xamãs e dos mágicos que entraram em cena na cultura Chinesa ainda nos seus tempos primórdios.
O Tauísmo define-se por um certo número de princípios, que se dirigem tanto ao coração do homem como ao seu espírito.
A obra principal do Tauísmo denomina-se “Tao Te King” (O livro do Sentido da Vida), do grande Sábio Lao-Tzu, que segundo Joseph Needham é, «sem sombra de dúvida, o trabalho mais profundo e belo da língua Chinesa». Esta obra data de cerca do ano 300 a.C., altura em que Aristóteles já era idoso.

«Tau era a via da sociedade humana. Era a maneira como o Universo funcionava. “A ordem da Natureza” que dava origem a todas as coisas e governava os processos pacíficos de mudança».
Na verdade, o homem superior tem de imitar o Tau, que funciona de maneira invisível e que ele não pode dominar. Através da submissão e da não imposição dos seus preconceitos sobre a natureza, ele é capaz de compreender, assim como governar e controlar. A seguir surgem os benefícios, tanto a nível físico como mental, e deste modo muitos Tauístas viram a sua saúde melhorar, erigindo um corpo subtil, para seu uso depois da morte, assim como prolongando a sua vida através de uma dieta, da respiração controlada e de exercícios de Yoga.
Esta era a faceta mágica do Tauísmo, da qual se desenvolveu a Alquimia e eventualmente a Ciência.
Os Templos Tauístas são conhecidos por “Kuan”, que significa “olhar”, cujo ideograma é um pássaro parecido com uma garça. Por conseguinte “Kuan” está a observar o voo dos pássaros, a olhar para além do que é superficial, para a unidade com a Natureza e o Todo, tarefa que se associa com a segunda metade da vida, onde a auto-realização é uma meta a atingir.

Os Mestres Tauístas e os seus Ensinamentos

O grande Mestre Filósofo LAO-TZU, autor do “Tao-Te King” (a bíblia do Tau) exerceu, indiscutivelmente, uma grande influência na Filosofia Chinesa, assim como em toda a vida da China. Todavia, esta influência deu-se e desenvolveu-se de forma gradual. Foi na verdade considerado por muitos o pai do Tauísmo.
No entanto, se Lao-Tzu pode ser visto como o teórico do Tauísmo, cabe a Chuang-Tzu o mérito de ter tratado da sua vida mística. É evidente o seu génio literário, através de parábolas cheias de malícia e de graça, traçando de maneira existencial a realização do Tau. Podemos assim atribuir a paternidade do Tauísmo a Lao-Tzu e a Chuang-Tzu e, em menor grau, a Lie-Tzu.
Lao-Tzu é citado, por diversas vezes, como sendo o homem que Confúcio procurou para se aconselhar. Na verdade, nas palestras de Confúcio deparamos com discussões de alguns pontos de vista de Lao-Tzu, que são concordantes em parte, e noutras modificadas.
Mong-Tzu representante do Confucionismo, entre o Século IV e o Século III a.C., nunca mencionou o nome de Lao-Tzu, embora tenha discutido de forma crítica, com vários dos seguidores daquele. Porém, mais tarde o mesmo aparece numa colectânea de anotações sobre os costumes da época de “Han”, que provêm de fontes mais antigas e de períodos diferentes, onde Lao-Tzu é citado como tendo exercido uma influência progressiva nos ensinamentos de Confúcio.

No que se refere à literatura Tauísta, como já se disse, a grande obra do Tauismo, de Lao-Tzu, foi o Tao-Te King. Todavia existem outras obras de pretensos discípulos de Lao-Tzu e de Kuan Yin Hsi, o guardião do desfiladeiro de “Hanku”, de quem se diz que Lao-Tzu lhe teria legado o Tao-Te King. No entanto, tais obras foram certamente produto de uma época posterior, tal como muitos outros escritos, por exemplo na forma de “sūtras budistas”, que citam como autores Lao-Tzu ou Lao Kun.
De qualquer modo, Lao-Tzu foi um dos grandes sábios do ocultismo, que tiveram um papel preponderante na história da vida de Confúcio, e em especial no fim desta. Os conceitos de Lao-Tzu foram amplamente difundidos naqueles círculos, embora essas ideias não tivessem surgido pela primeira vez naquela época.
Na verdade, elas consistiam nos ensinamentos secretos, que haviam sido transmitidos desde os tempos antigos, tal como a lenda posterior que venera o Imperador Amarelo Huang Ti, como tendo sido o fundador da Filosofia Tauísta.

No “Tao-Te King” podemos encontrar citações desses aforismos mais antigos. De muitos desses sábios só nos foram transmitidos os nomes, como por exemplo o mestre Hu k'in Lin ou o seu discípulo Po Hun Wu Jen, enquanto que de outros a lenda só regista alguns traços. Foi o que aconteceu com Liã Yu K'on, de quem se conservou uma obra com oito volumes, com o título “Liã Dsi”, sendo o mesmo também citado pelo Filósofo Chuang-Tzu, não como uma figura lendária, mas como uma personalidade real a quem eram atribuídas forças sobrenaturais miraculosas.
Em “Liã Dsi”, o desenvolvimento da doutrina obedece ao sentido dos problemas do Tao-Te King, elaborados no entanto de maneira mais metafísica. Nele o pensamento ocupa-se das antinomias de espaço e tempo, do problema do desenvolvimento dos diferentes tipos de seres vivos e de muitas outras questões. Nota-se no mesmo o naturalismo, que é ainda mais forte e acentuado de uma forma mais unilateral do que no Tao-Te King. O Tau torna-se, cada vez mais, numa substância metafísica, causador de toda a existência e da não existência, projectando-se nas formas sem nunca se manifestar a si mesmo. A sua característica principal está no facto de se contarem sobre ele muitas histórias em forma de parábolas, que divulgam, em parte, o milagre que a força de uma prática de Yoga, orientada para a unificação, deveria demonstrar. Por conseguinte, encontramos em “Liã Dsi” o lado místico paralelo ao desenvolvimento do elemento mágico.

Yang Tchu é outra personalidade histórica que, na época do Confuciano Mong-Tzu, quando os seus ensinamentos já tinham alcançado um grande círculo de discípulos e fiéis, foi considerado um dos seus principais adversários. Mong-Tzu atacou Yang Tchu pelas suas opiniões egoístas, que não só pareciam rejeitar como dissolver todas as relações estatais. O certo é que Yang Tchu não sacrificaria um fio de cabelo para ser útil ao mundo. Isso demonstrava o seu egoísmo, tornando impossível qualquer tipo de vida comunitária entre os homens. Embora Yang Tchu tenha sido discípulo de Lao-Tzu, não compreendeu, de facto, os seus ensinamentos, razão pela qual os desenvolveu de modo unilateral.
Neste sentido Lao-Tzu sofreu do mesmo mal que Confúcio. Tal como os ensinamentos de Confúcio se transformaram, no principal ramo da sua escola, em ritualismos unilaterais, um tanto ou quanto mesquinhos, também os ensinamentos de Lao Tzu se converteram, em Yang Tchu, num naturalismo unilateral, portanto limitado.

Temos o exemplo daquele naturalismo unilateral através de Chuang-Tzu, que conta como certa vez Yang Tchu procurou instrução com Lao-Tzu. Ao procurar saber se um homem trabalhador e forte, com um raciocínio que tudo penetra, com uma clareza omnipresente e incansável na busca do Tau, poderia ser posto em termos de igualdade com os reis sábios da Antiguidade, Lao-Tzu repeliu-o com muita dureza e depois prosseguiu: «A actuação dos reis sábios foi de tal ordem que as suas obras preencheram todo o mundo, mas não pareciam ter saído deles. Eles moldavam todos os seres e presenteava-os e as pessoas nada sabiam. Os nomes dos sábios não foram mencionados, mas satisfaziam, no íntimo, a todos. Eram incomensuráveis e caminhavam na não existência».
Vemos através deste exemplo, que Yang Tchu foi discípulo de Lao-Tzu, mas também podemos notar que na sua orientação, principalmente intelectual, ele representa um desvio da verdadeira perspectiva de Lao-Tzu. Verificamos que esse ponto de vista se coaduna muito bem com as histórias e palestras relacionadas com ele no sétimo livro de "Liã Dsi". As mesmas apresentam-no também como um pensador arguto e pressuroso, que elabora, que sabe dar contornos aos conceitos de Lao-Tzu sobre o "deixar ir", o "não agir", portanto, sobre a harmoniosa adaptação do homem na sua relação com a natureza. Nota-se que lhe falta, todavia, o tom bondoso e amplo de Lao-Tzu, transmitindo, por conseguinte, em tudo uma impressão exagerada.

A Filosofia Tauísta através de Chuang-Tzu

Os ensinamentos de Lao-Tzu foram completamente traduzidos para a Filosofia Chinesa por Chuang-Tzu, um contemporâneo mais jovem de Mong-Tzu e que foi um dos mais notáveis Filósofos Tauístas. Chuang-Tzu foi um fenómeno fulgurante na vida espiritual Chinesa. Foi o Poeta entre os Filósofos Chineses do Século IV, influenciando, de facto, não só a poesia posterior no sul da China, como também a sua Filosofia.
Pouco se sabe sobre a sua vida, e os poucos traços biográficos que se podem coligir através das suas obras são escassos para nos certificarmos de que levou uma vida acentuadamente dedicada à interiorização, em condições de pobreza aparente. Sabemos, porém, que recusou todos os convites de príncipes para ser conselheiro em suas cortes, contrariando até com dureza os mensageiros que lhe traziam essas propostas. Todavia, não se retirou do mundo e foi durante a sua vida um razoável chefe de família, passando por vezes por dificuldades financeiras. Apesar de tudo manteve sempre relações com as correntes espiritualistas do seu tempo. Manteve contacto com a escola de Confúcio, embora não seguisse o ramo ortodoxo, mas sim uma linha que contribuiu para a tradição Confuciana. Porém, venerava o mestre no mais íntimo do seu ser, sobretudo após a grande mutação que Confúcio sofreu aos sessenta anos.

Na verdade, alguns dos dados mais importantes sobre essa mudança, na orientação espiritual de Confúcio, foram conhecidos através de Chuang-Tzu. Também, para além deste relacionamento, ele foi muito amigo do Filósofo Hui-Tzu, que conquistou um certo renome como moralista e político. Consta que Hui-Tzu era muito íntimo da escola chinesa central dos chamados sofistas.
Além destas relações que, naturalmente, não deixaram de influenciar o pensamento de Chuang-Tzu, destacam-se as influências que recebeu de Lao-Tzu. Por conseguinte, Chuang-Tzu não só nos oferece uma sabedoria Tauísta de vida, como uma verdadeira Filosofia Tauísta.
Os seus fundamentos Filosóficos estão contidos na chamada secção interna dos primeiros sete livros, o restante são anexos e suplementos. O seu primeiro livro intitula-se: ”Caminhar com vagar”. É uma exposição do todo, em que a vida terrena, com os seus destinos e influências, é comparada a uma codorniz, que voa pelos arbustos, enquanto a vida, cheia de um vagar feliz, está livre de toda a mesquinhez.

O segundo livro, que tem uma importância especial, denomina-se: “Da compensação das ideologias”. O tema do livro trata de dar solução às questões Filosóficas contemporâneas, a partir da perspectiva Tauísta e passa-se numa época de luta entre as ideologias. Como a velha ideologia de fundo religioso já havia sucumbido há muito, surgiram em seu lugar as concepções mais diversas e muitas vezes opostas, de maneira diametral, que se combatiam dialecticamente. Chuang-Tzu reconheceu, com base no “Tao-Te King”, os limites condicionados de todas essas ideologias antagónicas, que eram autênticas batalhas de lógica contra a lógica. Uma vez que nenhum dos lados podia provar que estava certo, Chuang-Tzu encontrou a resolução na disputa do conhecimento imediato, que atinge o ponto de vista da contemplação unitária do ser.
O seu terceiro livro descreve a aplicação prática desse conhecimento. Isto é, o mesmo trata de descobrir o senhor da vida e não almejar alguma situação individual especial, mas sim seguir os canais principais da vida e aceitar a situação externa em que nos encontramos, visto que não é a mudança das condições externas que nos pode salvar, mas uma atitude nova a partir do Tau, dentro das respectivas condições da vida. É deste modo que se obtém o acesso ao mundo, que se situa para além das diferenças.

No quarto livro a cena leva-nos, da vida individual para o mundo dos homens e mostra-nos o modo como se deve actuar nele. O tema deste livro também procura manter a perspectiva global e não se prender por qualquer particularidade. Na verdade, a particularidade poderá resultar na utilidade, mas esta poderá ser motivo do homem ser usado. Ele poderá ser apanhado na teia do mundo dos fenómenos, como uma peça da grande máquina social e dessa forma transformar-se num “profissional” ou “perito”, enquanto o “inútil”, que está para além dos antagonismos, salva a sua vida exactamente por isso.
O quinto livro intitula-se: “O selo da vida plena”, que revela através de diversas parábolas como o contacto interior com o Tau, que oferece a verdadeira vida desinteressada, exerce uma influência interna sobre os homens, em face da qual é necessário que toda a influência aparente desapareça. São histórias de aleijados e de homens terrivelmente feios, através das quais esta verdade se manifesta de forma mais clara, exactamente devido ao paradoxo da condição exterior. Com essa verdade acentua-se ainda mais o antagonismo entre a jóia interior e a roupagem "rústica" da aparência exterior. Obtém-se aqui um aspecto que conferiu ao Tauísmo, também no seu período posterior, algo de paradoxal. O ponto de vista do Tauísmo é divergente. A humilhação e a fealdade não devem ser encaradas nem como sofrimento nem como uma situação inevitável. O homem, após ter atingido a perspectiva transcendente da contemplação do ser, está para além dos antagonismos, tal como a felicidade ou a infelicidade, ou como a vida ou a morte, onde nenhum deles está próximo do Tau, visto que esses antagonismos são elos de importância semelhante num círculo de movimento eterno.

Certa vez Hui-Tzu perguntou a Chuang-Tzu se haveria realmente seres sem sentimentos humanos, ao que este respondeu categoricamente que sim. Então Hui-Tzu replicou: «Mas, um homem sem sentimentos não pode ser chamado homem». Chuang-Tzu declarou: «Como o Tau eterno do céu lhe conferiu uma figura humana, ele deverá ser chamado homem». Retorquiu Hui-Tzu: «Porém, os sentimentos fazem parte do conceito do homem». Chuang-Tzu acrescentou: «Não são esses os sentimentos a que me refiro. Quando me refiro a alguém sem sentimentos, significa que esse homem não prejudica o seu ser interior, com as suas simpatias ou antipatias. Ele obedece em todas as coisas à natureza e não procura valorizar a própria vida». Hui-Tzu volta a dizer: «Se não procura valorizar a sua vida, como é então que pode existir o seu ser?». Ao que Chuang-Tzu respondeu: «O Tau eterno do céu deu-lhe o corpo e ele não prejudica o seu ser interior com inclinações e aversões. Mas vós ocupais o vosso espírito com coisas que estão fora dele e desperdiçais, em vão, as vossas forças vitais... O céu deu-vos o vosso corpo e nada sabeis fazer melhor do que repetir a lenga-lenga dos vossos sofismas».

O sexto livro é um dos livros mais importantes de Chuang-Tzu e intitula-se "O grande ancestral e mestre". Esta obra trata do problema do homem, que encontrou o acesso ao grande ancestral e mestre, o TAU. A mesma afirma: «Os homens verdadeiros nunca tiveram medo de estar sós. Nunca realizaram actos heróicos e nada planejaram. Desta forma, nunca tiveram motivo de arrependimento ao falharem, nem qualquer razão de orgulho pelo seu êxito. Serão, por isso, capazes de subir às alturas mais elevadas sem sentir qualquer vertigem. Poderão atravessar a água sem se molharem, atravessar o fogo sem se queimarem. Não terão sonhos enquanto dormem, nem preocupações durante a vigília. Será simples o seu alimento e profunda a sua respiração. Não conhecerão a alegria de viver, nem a aversão da morte. Não se queixarão de ter de sair da vida, nem de se rejubilarem ao entrar nela. Chegarão serenamente e serenamente partirão. Não se esquecerão da sua origem, nem almejarão o seu fim. Estarão abertos para o que vier, e para o que se for deixarão passar sem pensar mais». A isso se dá o nome de «não limitar o Tau pelo consciente, nem querer ajudar o celestial com o que é humano».
Neste sentido, todas as questões mais profundas de sofrimento e de morte são tratadas também com grande soberania.

O sétimo livro, intitulado: “Para uso dos reis e dos príncipes” é a conclusão, tratando do domínio pelo não domínio. O livro refere: «O homem mais elevado serve-se do seu coração como se fosse um espelho. Não corre atrás das coisas nem vai ao encontro delas, reflecte-as mas não as detém».
Em conclusão, Chuang-Tzu representa uma continuação do Tauísmo porque introduz, na solução das questões filosóficas da sua época, os métodos deste. Ele envolve os ensinamentos na luminosa exteriorização da linguagem poética e formula parábolas bem alinhavadas, onde o indizível da concepção Tauísta cintila magicamente. Põe a parábola ao lado do paradoxo, a fim de tornar acessível o inexplicável.
Em relação à objectividade, facilmente constataremos que Chuang-Tzu se mantém em directo com a linha de Lao-Tzu. Ele também vive nas profundezas do Tau. Para ele o mundo fenomenal é também um sonho ilusório. Tal como o seu mestre, também ele levou uma vida oculta.

O Sábio Tauísta

Segundo Chuang-Tzu, o sábio Tauísta é indiferentemente chamado santo, homem de Tau, homem de P'o, homem autêntico, homem perfeito, homem de carácter, amigo de Te (que significa virtude, acto ou eficácia do Tau), homem verdadeiro. Chuang-Tzu não pára de nos falar deste homem, de tratar da sua vida mística, das suas alegrias e das suas ciladas, no capítulo intitulado «Torturar-se o espírito», onde ele faz a mais exaustiva descrição daquela figura. Primeiro ele apresenta-nos o sábio como o homem que se conserva em repouso, ou seja, como aquele em que o equilíbrio e a facilidade são assegurados pela acção de “Wu-Wei”. Através da calma mantém a integridade do seu espírito e afasta as preocupações, as desgraças e as influências nefastas.
Diz Chuang-Tzu, o seu desprendimento é de tal ordem que ele não teme a morte, uma vez que nos seus olhos ela não passa de uma metamorfose da acção do céu. Ele vive como quem flutua, por isso não sofre, nem calamidade, nem entrave material, nem crítica dos vivos, nem censura dos mortos. É por conseguinte um homem que conseguiu superar todas as paixões e todo o “ter”, ao ponto de já não resistir a nada e de se nutrir exclusivamente de pureza e de vacuidade. Esta vacuidade é, portanto, a imagem da mais elevada virtude. Quem atinge tal estado preserva o espírito na sua condição original. Ele estende-se a tudo, abraça a terra, irradia sem ofuscar, possui em si a simplicidade mais profunda e procedendo desta forma identifica-se com a ordem do céu.

Através desta descrição pode-se ter uma ideia do homem do Tau, como sendo uma espécie de eremita desencarnado, sentado no alto de uma montanha e já não tendo qualquer contacto com o mundo dos homens. Embora seja uma imagem típica, não reflecte contudo a situação do sábio Tauísta.
O sábio Tauísta busca a simplicidade e a pureza mais extremas, todavia busca-as como um estado interior e não através da mortificação, da ascese, ou forçando a sua vontade. Por isso poderemos considerar o Tauísmo mais como uma Filosofia, uma maneira de ser, do que uma Religião.
Chuang-Tzu diz que o verdadeiro santo conhece a paz interior, regulando a sua actividade pelo movimento do céu e da terra. Por conseguinte, ele não sente qualquer necessidade de fugir do mundo, quer viajando, quer mercê de um retiro solitário ou da ascese ou através de uma concepção ilusória do Universo. Na realidade ele nem mesmo tenta atingir um estado de vazio e de santidade. A sua paisagem mental é completamente tecida de vazio, de sorte que nada lhe resta alcançar, evitar ou aprender; tudo está ali, basta-lhe abrir o seu coração. A sua humildade não tem limites, visto que ela responde ao júbilo e à vitalidade de ser. Da mesma maneira, a força da sua interioridade é tão grande que lhe parece inútil demarcar-se dos outros. Contrariamente a qualquer ideia preconcebida, ele pode viver com toda a gente, no meio dos outros, e em perfeito entendimento com eles.

Na verdade, esta posição encontra-se muito próxima da vivida pelo Indiano dentro da filosofia do Vedānta. Só que há uma diferença importante entre ambos, que provém das suas respectivas realidades. O sábio Indiano é um homem que vive para algo distinto do mundo, é uma personagem que “não está aqui”. O sábio Chinês, inclusive numa doutrina tão extrema como o Tau, "está sempre aqui". A própria forma como ele se exprime é significativa.
Temos como exemplo algumas anedotas, que são parábolas, com os seus laivos de humor tão penetrante, que indicam, na verdade, o grande sentido daquilo a que se chama vulgarmente a vida e a realidade.
O Tauísta é, na prática, um homem que participa totalmente do real. Habita geralmente fora das cidades, no meio da natureza, com a sua família, alguns discípulos, e reparte o seu tempo entre passeios, trabalhos manuais e muitas vezes com a prática de uma arte, tal como a caligrafia, a poesia, música, pintura, etc. Todavia, o seu retiro não se pode comparar ao que existe num mosteiro tradicional, uma vez que não se encontra isolado, nem tem de obedecer a regras ou a ritos. Normalmente os textos Chineses apresentam-no como um homem bastante indigente, ou então não dá a menor importância ao seu aspecto exterior ou aos bens terrestres.
Vejamos algumas histórias que dão um exemplo perspicaz da sua Filosofia, contadas por Chuang-Tzu:

«Numa altura em que Tseu-Kong foi visitar o Mestre Yaun Hien e se compadeceu da sua miséria, este replicou-lhe que «carecer de bens é ser pobre, mas ser miserável é não poder pôr em prática o seu saber». Resposta essa que Chuang-Tzu dera e que também dará Tseng-Tzu do país de Wei. Essa pobreza aparente não o impede de cultivar a amizade. Por que gostando de gracejar, por apreciar a vida, o vinho e a natureza, ele mostra-se sempre pronto a acolher quem quer que bata à sua porta. No entanto, ele estima da mesma forma a companhia e a solidão, preferindo, de qualquer modo, a obscuridade a uma vida pública brilhante.
Chuang-Tzu quando pescava à beira de um ribeiro recusou com determinação um cargo de ministro. No entanto, era um homem que possuía uma enorme largueza de espírito, com uma conduta de exemplar liberalidade. Ele admite nos outros as formas de pensamento, as práticas mais sofisticadas e não receia os turbilhões da vida à sua volta, se bem que ache isto perfeitamente ridículo e não se deixa influenciar.

As suas fábulas e humor são muito imaginativas e poéticas, em que ele está sempre a interrogar e a ridicularizar as atitudes e valores tradicionais. Ele notava que as pessoas tinham tendência para ficarem desnorteadas e irracionais, por vezes, com coisas que são muito semelhantes. Chuang-Tzu chamou a isso a doutrina das “três da manhã”, que é, na realidade, um bom exemplo do humor Tauísta. Conta o sábio que «nos tempos de “Sung” havia um criador de macacos que atravessando uns tempos difíceis, se viu obrigado a reduzir a ração quotidiana dos seus animais. Então disse aos macacos: «Dar-vos-ei três medidas de castanhas de manhã e quatro à tarde». Os macacos ficaram furiosos. «Muito bem, então, terão quatro medidas de castanhas de manhã e três à tarde» retorquiu ele. Os macacos ficaram muito satisfeitos e aceitaram com alegria».
Através desta história o homem poderá aprender que não se deve cingir ao conhecimento “exclusivo” de uma coisa. Verificámos que o entendimento final a que o criador de macacos chegou não diferiu em nada da sua proposta inicial, a não ser na forma. De maneira semelhante, a maioria dos conflitos nascem devido à cegueira do homem, que na sua ignorância não vê que as coisas dotadas de um nome diferente são frequentemente iguais. Tanto para o homem do “Te”, como para o criador de macacos qualquer solução é válida, eles não são indiferentes ao resultado, mas não se importam com a forma que o mesmo tomará, interessa-lhes sim ter o cuidado de anular a discórdia e fazer com que cada um encontre a felicidade seguindo a sua própria verdade.

Chuang-Tzu também conta que certos seres subtraídos pelo despertar de um sonho alegre, sentem-se desolados; outros, libertos pelo despertar de um sonho triste, regozijam-se. Ainda outros, enquanto sonhavam, acreditaram na realidade do seu sonho, e após o seu despertar disseram para si que afinal não passara de um sonho em vão. Os homens, na verdade, deixam-se iludir pelas aparências e atribuem à vida um valor “absoluto”, determinante, que ela não tem, advindo daí a sua aflição e tristeza.
Para Chuang-Tzu a vida e a morte não são mais do que estados diferentes de uma mesma continuidade ou, segundo a sua própria versão, metamorfoses de formas semelhantes. Por isso, não se deve confundir a morte corporal com a extinção da existência. Diz Chuang-Tzu: «A glória do homem é compreender que todos os seres são um único complexo universal; que a vida e a morte são duas modalidades de um mesmo ser... Todas as coisas são uma. Gostamos do que é vivo, mas tememos o que está em decomposição. Todavia, o que neste momento está em vias de apodrecer renascerá para a vida, e esta vida uma vez mais definhará».
A fim de ilustrar semelhante continuidade, ele conta uma história onde compara a "morte" com o estado de "não nascido". «Vivia entre a gente de Wei um homem chamado Wu. Este homem tinha um filho, que amava mais do que tudo no mundo. Acontece que o filho morreu e esta morte não o afligiu de modo nenhum. As pessoas ficaram muito surpreendidas com o seu procedimento e, por fim, alguém fez-lhe notar a sua admiração. Respondeu Wu: «Houve um tempo em que eu não tinha filho; nessa época não sentia qualquer tristeza. Agora o meu filho morreu, voltei de novo à mesma época em que não tinha filho. Porque hei-de então ficar triste?».

Vejamos, a seguir, mais uma história semelhante, que demonstra o humor Tauísta, mas desta vez diz respeito ao próprio Chuang-Tzu, contada por Lie-Tzu: «Quando a sua mulher morreu, o amigo Hui-Tzu foi a casa de Chuang-Tzu, para visitá-lo e tomar parte nas cerimónias fúnebres. Para grande surpresa, Hui-Tzu encontrou Chuang-Tzu sentado no chão, com uma tigela virada ao contrário sobre os seus joelhos a tamborilar nela e a cantar uma canção. Disse-lhe Hui-Tzu: «Afinal de contas ela vivia contigo, educou os teus filhos, envelheceu ao teu lado. Que tu não chores por ela já não é nada bom, mas deixares os teus amigos encontrarem-te a tamborilar e a cantar já é ir demasiado longe». «Estás a julgar-me mal» retorquiu Chuang-Tzu. «Quando ela morreu fiquei desesperado, tal como qualquer homem se poderá sentir. Contudo, depois de ponderar rapidamente no que aconteceu, disse para mim mesmo que na morte nenhum destino novo e estranho nos acontece. No princípio não só precisamos da vida, como também da forma.
Depois não só da forma como também do espírito. Sentimo-nos misturados numa grande massa, sem quaisquer traços característicos indistinguíveis. Então, chegou uma altura em que a massa segregou o espírito, o espírito segregou a forma, a forma segregou a vida. E agora a vida, por sua vez, segregou a morte. Por que, tanto a natureza como também o ser humano têm as suas estações, a sua sequência de primavera e Outono, de verão e Inverno. Sabemos que se alguém estiver cansado e for descansar nós não deveremos perturbá-lo, falando ou gritando. Por conseguinte, aquela que eu perdi foi-se deitar a dormir por um momento na famosa sala secreta. Interromper o seu sono, com barulhos e lamentações, demonstraria que eu não entendo nada da lei suprema da Natureza. Eis a razão por que eu deixei de chorar».
   


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