Fundação Maitreya
 
Sermão no carro de batalha

de K. Sundara Raman

em 28 Mai 2007

  A Bhagavad Gītā é a nata de variados sistemas filosóficos e o culminar do génio espiritual da Índia. Śaṅkara, no começo dos seus comentários à Gītā observa ser ela a «quinta essência de todos os ensinamentos védicos» (samasta vedārtha sāra sangraha). Em nenhuma escritura foi feita tão sublime abordagem para combinar diversas correntes de pensamento filosófico num evangelho de valores humanos coerente e harmonioso. Como diz Swāmi Vivekānanda, «A Gītā é como uma maravilhosa grinalda ou um bouquet de flores seleccionadas». Mostra à humanidade a única forma de acção dinâmica e iluminada sem se deixar influenciar pelos seus resultados.

Um Evangelho de Valores Humanos

A sua mensagem é transcendente e, por consequência, a sua importância para a humanidade é intemporal.
J.W. Hauer, um missionário alemão e especialista em sãoscrito acha a Gītā «um trabalho de significado imperecível... não somos chamados para resolver o significado da vida mas para descobrir a Obra que nos é exigida e trabalhar, e assim, pela acção, dominar o mistério da vida».
A Gītā caracteriza-se por ser uma escritura dramática, o seu cenário coloca-a no meio de um campo de batalha, onde, tal como na vida, ninguém pode prever o que irá acontecer a seguir. O facto de ser narrada no meio do tumulto da batalha ruidosa é em si uma metáfora dos sentidos impetuosos. A mente humana é o epicentro da luta e da disputa (Kurukshetra). Como uma alegoria da luta e contenda interna tem uma relação de significado com as crises práticas da vida.
A camaradagem entre Kṛṣṇa e Arjuna é um nexo simbólico entre o divino e o humano. A alma humana pode exigir familiaridade com Deus espiritualmente falando, num plano transcendental. O homem deverá esforçar-se por obter e descobrir a sua natureza potencialmente elevada e desempenhar o seu dever num estado de mente superior.

Encontramos na secção de abertura, um Arjuna desesperado «um representante da alma humana em grande batalha mundial» (como Śri Aurobindo referiu), com a sua mente iludida, a sua convicção declaradamente despedaçada, a sua mente em total desordem. A cada indivíduo chega uma hora, qualquer que seja o momento, em que se tem de confrontar com este terrível dilema –“ fazer ou não fazer”, “ ser ou não ser”. A depressão tem um efeito devastador na mente. A fraqueza na determinação dissipa a nossa energia.
Kṛṣṇa repreende Arjuna pela sua fraqueza e depressão na hora mais crucial da sua vida e avisa-o que não confunda a sua volubilidade e cobardia com perdão e renúncia. Kṛṣṇa ao invocar a transcendental Lei Superior de Ātman origina uma grande metamorfose na mente de Arjuna, redime-o do desengano e condu-lo a uma acção corajosa e desapegada. Arjuna, o combatente e actor, transmuta-se num profeta da Verdade.

Klaibyam māsma ganah pārtha
Naitat tvayi upapadyate
Ksudram hridayadaurbalyam
Tyaktvottishtha parantapa (Gītā II.3)

«Não te deixes arrastar para a ignimínia,
Oh Partha, pois não se adequa.
Liberta o coração dessa fraqueza mesquinha e ergue-te».

Esta é a mensagem esperançosa e ressoante que é pertinente para cada um e para todos. A vida deveria ser uma afirmação, uma acção e uma realização positiva. Nós como instrumento de um poder maior, deveríamos acreditar firmemente que cada um de nós tem uma missão a cumprir e um destino a preencher.
Cada um está psicologicamente equipado para responder à tragédia e a comédia, às lágrimas e à alegria, melancolia e exuberância que são componentes essenciais da vida. E temos somente que ousar desafiar cada imprevisibilidade. As nossas capacidades são incitadas ao máximo grau e a manifestações vibrantes dos seus fantásticos poderes, quase involuntariamente, graças às correntes adversas com que nos deparamos na vida. Mas a firmeza do propósito é tudo. A mente indecisa, instável, e pouco firme não se fixa na imperturbabilidade. De acordo com a Gītā (II. 62-64), do apego aos objectos dos sentidos nasce o desejo, ao desejo junta-se a cólera, da cólera vem a desorientação, da desorientação a perturbação da memória, da perda da memória a destruição da inteligência causando por fim a ruína total. A Gītā previne-nos contra este desencadear de catástrofe desmoralizante e diz: Prepara-te para a batalha (da vida) tratando de forma igual o prazer e a dôr, o ganho e a perca, a vitória e a derrota porque samatvam yoga ucyate (II.48) equanimidade da mente é chamada de yoga.

A Gītā desenvolve o Karmayoga com uma estratégia soberba que integra dois opostos, acção versus resignação, de tal forma que é tão convincente quanto prática. Ela aconselha karmayoga em vez de karmasannyāsa, i.e., renúncia na acção e não, renuncia à acção. A libertação da acção não acontece pela abstenção dela. Não somos responsáveis apenas pelo que fazemos, mas também pelo que não fazemos. Quando o karma prende um autor, o karmayoga liberta-o e por isso a Gītā aplaude a renúncia ao fruto das acções, mais ainda que à meditação. (XII. 12). O Karmayoga triunfa sobre a lei do karma ao conseguir separar o autor, das consequências dos seus actos. Assim neutraliza com sucesso a lei do karma. A acção realizada sem desejo nem apego torna-se uma sādhana. O caminho para atingir a iluminação faz-se sem apego e qualquer trabalho honesto é a mais nobre das acções, e é um sacramento tão bom quanto o de um culto religioso. A ausência de paixão implica a cessação de preferências de qualquer tipo. Mesmo uma guerra sangrenta, quando combatida com o sentido de um fim superior em resposta a uma chamada do dever, não avilta (ou desonra) o autor. Assim a Gītā não faz da violência ou da não-violência um credo, apenas sublinha a acção certa na atitude certa.
A Gītā reconhece o poder da vontade humana por causa da divindade potencial que existe na alma humana. Cada um tem a liberdade de se levantar ou de cair. As acções de cada um são o seu amigo ou o seu inimigo. O destino não é irrevogável. É conquistável pela perseverança, diligência e esforço constante.

Uddharet ātmanātmānam
Natmānam avasādayet
Ātmaiva hy-ātmano
bandhur-ātmaiva ripurātmanah (VI.5)

«Que cada um se erga a si próprio por si mesmo
e não se degrade cada um em si mesmo
o seu próprio aliado ou o seu próprio inimigo».

«Sê um lanterna para ti próprio. Trabalha o teu caminho com diligência para a salvação» foi a mensagem final de despedida do Senhor Buddha aos seus monges e para o mundo em geral.
Ninguém está perdido aos olhos de Deus. Todos os pecadores são santos por terminar, assim se resolvam na rectidão e se virem para Deus renunciando totalmente ao seu desejo (vontade). Vālmiki e Tulasidās são exemplos. Como diz Tuladisās: «um pedaço de carvão perde a sua negritude e torna-se brilhante quando o fogo o penetra. A graça da salvação é para todos».

caturvidhā bhajante mām «Quatro tipos de homens virtuosos me adoram, oh Arjuna
janāh sukritino´rjuna - O aflito, o buscador de conhecimento, o que aspira
ārto jijnāsuh arthārthi à riqueza, e o sábio».
jñāni ca bharatarshabha(VII.16)

Entre os quatro tipos de aspirantes à graça Divina, o sábio (jñāni) goza de um especial privilégio de Deus porque ele é como uma imensa quantidade de toros de madeira que, enquanto flutuam pela corrente abaixo vão levar muitos deles ao seu destino, como Śri Rāmakrishna Paramahansa disse. Um sábio permanece em paz e irradia paz. Assim a Gītā (IV.38) diz, na hi jñānena sadrisham pavitram iha vidyate -
«Não há na terra nada igual à pureza da sabedoria».
A Gītā exorta quer bhakti (devoção), quer prapatti (entrega total a Deus). A devoção é a submissão amorosa de um coração devoto. A devoção não é adoração de ostentação ritualística com pompa e fausto. Não é a oferta calculada, mas a atitude do ofertor. Kṛṣṇa diz:

patram pushpam phalam toyam «Quem me oferecer uma folha,
yo me bhaktyā prayacchati uma flôr, um fruto ou água, com devoção,
tadaham bhati upahritam essa oferta de amor, de pureza de coração,
ashnāmi prayatātmanah (IX.26) eu aceito».

O Senhor Kṛṣṇa aceitou uma mão cheia de arroz tostado de Sudāma, do seu amigo pobre e abençoou-o com riqueza abundante. O Senhor Rāma comeu os frutos de Shabari com imensa alegria. O caçador que se tornou o Santo Kannapar é um exemplo que ilustra bem a devoção amorosa à cabeça de Deus.
A Gītā defende (VI. 16-17) moderação, i.e., anulação dos extremos da vida. Nem a indulgência sensual hedonista, nem a mortificação ascética da carne são caminhos para a iluminação. Gautama, o Buddha, também aconselhou o “caminho do meio” tendo realizado por experiência própria a futilidade da observação dos extremos. Aristóteles chamou-lhe “o meio dourado”.
As pessoas vulgares seguem o padrão propostos pelos eleitos. São os criadores de caminhos. Eles apresentam os ideais à sociedade. Assim é sua incumbência viver uma vida impecável merecedora de concorrência do destino comum.

yadyad ācarati shreshthat
tat tat devetaro janah
sa yat pramānam kurute
lokastat anuvartate (III.21)

Em resumo, a Gītā quer que levemos uma vida de rectidão, virtuosa, baseada em valores e desperta, de forma a que essa vida em si se torne uma mensagem eloquente para a geração vindoura. Quando Mahātma Gandhi foi entrevistado por um jornalista estrangeiro no dia anterior ao seu assassínio, sobre qual a sua mensagem para o mundo, Mahātma disse, “ A minha Vida é a minha mensagem”.

Tradução de Helena Gallis
   


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