Fundação Maitreya
 
Revisitando a questão “Fé e Razão”

de Adel Sidarus

em 06 Nov 2007

  A relação entre fé e razão é sempre actual! Mal entendida ou assimilada, esta relação se torna conflituosa, como o podemos observar hoje em dia com os “criacionistas” americanos ou os “fundamentalistas” muçulmanos, para falar apenas dos casos graves e mediáticos... A verdade é que as contradições aparentes surgem num horizonte existencial e epistemológico “totalitário”, onde se pretende reduzir a realidade humana e... cósmica (tendencialmente até, a divindade ou a transcendência...) a uma dimensão única e unívoca. E muitos cientistas, desde o Iluminismo europeu até aos nossos dias, têm alimentado esta funesta visão, que tende a minar as nossas sociedades.

(A Propósito duma recente Publicação dum texto de AVERRÓIS)

Vem isso a propósito da recente publicação em Portugal, numa editora nacional e numa colecção de prestígio, dum tratado emblemático de Averróis de Córdova, aliás, Abul-Walid Muhammad Ibn Rushd al-Qurtubi (1126-1198). É o famoso Discurso decisivo (Fasl al-maqal) que fez correr muita tinta desde que foi descoberto no princípio do século XIX na famosa Biblioteca do Escorial em Espanha. É verdade que tinha sido publicado no Brasil um ano antes pela Martins Fontes Editora (São Paulo, 2005), mas temo-lo agora em tradução directa do árabe e por uma especialista de filosofia islâmica: a primeira publicação em espaço lusófono com estas características e, que saibamos, em toda a antiga pátria do autor andalusino, quero dizer, a Península Ibérica...
Averróis foi confrontado no século XII andalusino com uma situação na qual várias forças tentavam impor posições religiosas uniformes, proibindo a actividade filosófica e cerceando a liberdade de pensamento. Até o conseguiram de facto, quando a conjuntura política o permitiu, chegando o grande comentador de Aristóteles a ser suspenso das funções de cadi-mor (era jurista e descendente duma prestigiada casa de jurista cordoveses), ver os seus livros queimados na praça pública e ser exilado para lá do Estreito. Vê-se que a obra aqui em análise, redigida quinze anos antes (1179/80), não surtira efeito, bem como os outros tratados subsidiários ou complementares à volta da mesma questão.

Les Grecs ont-il cru à leurs mythes? perguntava-se Paul Veyne num ensaio de 1983 (Le Seuil, Paris). De facto, parece-nos incrível que esses clássicos da ciência e da filosofia podiam ter mitos religiosos daqueles. Crerem naquelas rocambolescas estórias de deuses e deusas a habitarem um Olímpo onde se comportavam, afinal, como nós, simples mortais. Ao responder à pergunta, o antigo professor do Collège de France explica que a questão não se colocava de modo nenhum aos nossos prestigiados antepassados, sendo a questão antes típica duma disposição nascida precisamente no Século das Luzes. As verdades, na História da humanidade, são como “vasos-programas” pontualmente “criados” em função das dinâmicas sociais, intelectuais e espirituais das diferentes épocas (e civilizações). Mas nenhuma geração investe-se num único programa, enfia-se num único caminho! Tem sempre vários a desenvolverem-se em simultâneo e em conformidade com a multiplicidade das dinâmicas e suas forças criadoras.
Ora, diremos nós, no quadro do “programa” religioso, as verdades são “vivenciais”, tendo um carácter simbólico (e ético) aberto, e não concorrem com as verdades ou os conhecimentos alcançados pelo raciocínio lógico ou a observação-experimentação científica. Observemos o caso emblemático do Japão dos tempos modernos... Trata-se, pois, de “registos” diferentes, adoptados pelas pessoas ou grupos com mais ou menos intensidade, em consonância com as suas preocupações existenciais, sempre dialécticas e mutáveis.

Mas como via o nosso herói essa relação entre fé e razão? Ou, antes, entre a verdade “religiosa”, a xaria revelada no texto sagrado do Corão, e a verdade deduzida por meio da razão filosófica?
Para Averróis, a religião cuida da vida prática e da ética básica, que todos devem seguir, enquanto que a filosofia visa a teoria, à qual tem acesso apenas uma elite com qualidades e competências próprias para a entender e desenvolver. O texto corânico encerra contudo elementos conceituais e objectos de crenças que não são sempre idênticos aos dos “filósofos antigos” (leia-se, gregos), com especial destaque para o grande Aristóteles. Trata-se de oposições apenas aparentes, que obrigam a proceder a uma hermenêutica do texto sagrado (ta’wīl), tarefa que incumbe, até em termos de preceito religioso (!), a sábios ou ulemas para o efeito qualificados. O comum das pessoas terá que aceitar a literalidade textual da mensagem divina, capaz como tal de os levar a aderirem à mesma, o que é essencial. A tal elite deverá ela laborar no sentido de assegurar a “harmonia” entre esse mesmo texto e as verdades desenvolvidas pela lógica filosófica, mas sem divulgar, menos ainda impor, ao conjunto dos crentes, os resultados do seu ijtihad (‘esforço intelectual’). Até porque grande parte desse labor dificilmente poderá alcançar o consenso daqueles sábios (ijma‛), princípio base da coesão social islâmica. De certo modo, o Comentator cordovês defende não tanto uma “dupla verdade” mas dois níveis ou registos de verdade em consonância com as capacidades das pessoas e a sua adequada preparação intelectual.

O curioso nesta apologia do pensamento filosófico é que a argumentação que a sustenta não é de tipo filosófico mas sim jurídico, como se tratasse de uma fatwa ou parecer legal. Manifestamente, o autor sentia a ameaça dum totalitarismo “ortodoxo” e queria consequentemente ilibar as ideias e posições filosóficas de qualquer suspeita de heresia (bid‛a), e até justificar, em termos “islâmicos”, a necessidade objectiva da interpretação apropriada do texto sagrado para não colidir com aquelas, que têm a sua autonomia própria.
Alguns investigadores, incluindo pensadores contemporâneos muçulmanos, querem ver neste discurso averroísta, difuso de resto em toda a sua obra filosófica, os fundamentos do princípio de “laicização” da sociedade, a separação funcional entre a instituição religiosa e as instâncias do Estado. Não sei bem se colocar a questão nestes moldes se coaduna com a visão global da sociedade desse tempo, sela ela islâmica ou cristã. A verdade é que «os dois geniais pensadores de origem peninsular que foram Ibn Rushd e Ibn Khaldun surgiram numa época adversa à sociedade islâmica. A revolução epistemológica que introduziram no panorama da cultura de então não chegou a dar os seus frutos, pelo menos do lado muçulmano. É só neste século [XX], mercê do trabalho de valorização efectuado pelos meios arabistas europeus – convém frisá-lo – que árabes e muçulmanos se confrontaram com esse legado de alcance universal.»

Concluíamos esta afirmação augurando que «esta corrente se afirme e se amplie, rasgando novos horizontes epistemológicos e culturais para os desafios da ‘hora planetária’». Vimos hoje que os tempos não são ainda favoráveis para tal. Mutantis mutandis os muçulmanos de hoje se sentem agredidos e ameaçados, originando em muito deles reacções identitárias contrárias.
Fosse o que fosse, o mal é não vermos a complexidade do nosso ser e até da vida, que pensamos poder dissecar e controlar a todos os níveis, no quadro de uma revolução tecnológica sem par ou de um “pensamento único” impermeável entre povos e culturas. Porém, se nos interrogarmos sem preconceitos, a nós pessoas humanas do século e milénio presentes e à panóplia de culturas e civilizações do planeta, veríamos que convivem de facto em nós vários registos do conhecimento ou da “verdade”, que têm funções diferenciadas e... que se chega a eles por caminhos também diferenciados. De qualquer modo, procedemos por aproximações progressivas, mesmo ao nível dos conhecimentos ditos científicos ou racionais, sejam eles relativos ao mundo físico e material, sejam eles ao nível metafísico e espiritual.

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Concluímos com uma breve apresentação da publicação aqui referida. Ela abre com uma longa introdução (pp. 7-47), onde a autora lembra em grandes linhas a figura de Averróis e de sua obra, convenientemente contextualizadas, antes de apresentar e analisar o Fasl al-maqal. Termina com um glossário dos termos técnicos árabes e a bibliografia. A tradução, abundantemente anotada, é fluida e bem ponderada em função dos leitores lusos. Parte do texto estabelecido por G.F. Hourani (Leiden, Brill, 1959), não sem tomar em consideração as numerosas e qualificadas versões em línguas europeias. Os termos árabes importantes vêm regularmente transcritos e, como se disse, listados e explicados no “glossário” final.
Aguardamos da jovem autora, presentemente professora de filosofia islâmica na Universidade Americana do Cairo, outras publicações do mesmo tipo, pois que a biblioteca lusa, em geral, e os meios universitários, em particular, carecem grandemente delas.

Adel Sidarus
(Universidade de Évora)
   


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