Fundação Maitreya
 
Viver em Amarāvatī

de Rosário Simões

em 06 Ago 2008

  Havia em mim a suspeita de que este ano, nas férias de Julho, faria um retiro num centro budista. Simultaneamente não acreditava que o conseguisse. A acontecer, imaginava que seria em França, único local que conhecia com romagem de portugueses. Até que um dia, em Junho, dois monges do Mosteiro de Amarāvatī – Inglaterra – foram à União Budista Portuguesa. Tinham acabado de fazer um Tudong (peregrinação mendicante) pelo Sul de Portugal e vinham felizes e inspiradores. Dhammiko, português, Vinita do Sri Lanka.

O Stūpa“Venham, venham visitar-nos. Podem vir e ficar por uns tempos.”

Meditaram connosco e contaram-nos como tinha sido o encontro com as populações de Portugal, que nunca tinham assistido a este tipo de iniciativa. Também para eles esse contacto fora inspirador. Encontraram o bom coração português. No final, com largo sorriso no rosto, Vinita deixou o convite: “Venham, venham visitar-nos. Podem vir e ficar por uns tempos.”

Sei lá porquê, resolvi visitar o site – www.amaravati.org – e vendo que os retiros estavam esgotados perguntar como poderia ir. Em resposta disseram-me quando poderia ir e o que era pressuposto fazer.

_ E agora? Vou?! Não vou?! Claro que vou!

Menos de um mês depois aí estava eu, à porta do Amarāvatī Buddhist Centre. A cerca de uma hora do centro de Londres, no meio de um imenso verde de quintas, ergue-se este espaço de tranquilidade, paz e imenso coração.
Como figura central, o mosteiro agiganta-se em direcção ao despertar. É nele que o dia começa e acaba, com meditação e cânticos em conjunto (pūja). Do seu lado direito fica a Sala, onde as refeições são tomadas também em conjunto. Em redor, diversas pequenas casas, com diferentes serviços – multimédia, biblioteca, crianças, etc. Mais isolados ficam as zonas residenciais dos homens – monges e leigos – e das mulheres, também monjas e leigas. Igualmente recolhidos, os centros de retiros.

Toda a construção é em madeira e a decoração simples e acolhedora. Por todo o lado há jardins, atapetados de relva e ornados das mais variadas árvores e plantas, que se fundem e emaranham, fazendo-me lembrar o emaranhado das minhas próprias emoções.
Mais afastado fica um imenso campo verde, adornado de árvores, com um Stūpa bem no centro. É este o ponto privilegiado para um dos tipos de meditação desta tradição “meditação a andar”. Pés descalços, como que num regresso à minha própria natureza, eis-me a andar em volta do Stūpa, sentido o que é ter corpo, como é que os meus pés sentem o contacto com o chão, qual o sabor do vento no rosto, como as pernas suportam o ventre ou como fragmentada é esta massa que me constitui.
Um pouco por todo o lado surgem figuras do Buddha – pequenas, grandes, em madeira, em pedra, em talha dourada. Os templos e a sala estão especialmente decorados com esculturas belíssimas.

Comunhão estreita entre monásticos e leigos

Aqui vivem meia centena de monges em estreita comunhão com a comunidade vizinha.
Diariamente vêm pessoas dos arredores oferecer alimentos, almoçar e participar nas actividades do centro. Para ficar por alguns dias, semanas ou meses, chegam também todos os dias novas pessoas, de todas as partes do mundo, que se inserem nas actividades quotidianas da comunidaO Buddhade.
E foi assim que vivi durante 10 dias. Às cinco horas é o pūja da manhã (meditação e cânticos). Às 6h30 pequenas tarefas de manutenção diária do espaço. Às 7h15 o pequeno-almoço e às 8h15 a reunião de trabalho. Nesta reunião são distribuídas as tarefas para realizar até à hora de almoço: ajudar na cozinha, jardinagem, pintura, etc. É o período da meditação a trabalhar.
Participei nos trabalhos da cozinha, onde pude sentir a generosidade das pessoas, que chegavam trazendo alimentos preparados, outros por fazer e que ajudavam depois na limpeza. Fiz jardinagem, onde entendi como funcionam as minhas emoções, os sentimentos e a própria personalidade: posso ir aparando as pontas que surgem desalinhadas, às vezes preciso de fazer vários cortes, pois atrás de uma ponta vem outra e mais outra; outras, estrago um pouco aqui ou ali, mas logo encontro alternativa para embelezar; no final o resultado é lindo e fica uma grande satisfação por contribuir para melhorar algo que é comum; um final apenas transitório, porque pouco depois as pontas desalinhadas voltam a crescer e preciso de as aparar de novo.

Às 11,30h é a hora do almoço. De um lado sentam-se os monges, do outro as monjas e de frente para ambos a comunidade leiga. Em cima de um balcão estendem-se os diversos alimentos, que os leigos, em ritual simbólico, oferecem aos monges.
Depois, às cinco, é a hora do chá e às 19,30 o pūja da noite.
Aos fins-de-semana há actividades durante a tarde – palestras de Dhamma, workshops de meditação, encontros. Durante a semana todo o período da tarde é inteiramente livre, ocupando-o cada um como entende. Além de meditar no templo ou andar pelo Stūpa, aconselham-se as caminhadas pelos campos e bosques em volta. É essa a Tradição da Floresta tailandesa, que Ajhan Sumedho levou para Inglaterra depois de praticar vários anos na Tailândia com Ajhan Chah.

Viver aqui e agora

Seja o que for que se faça, em Amarāvatī está-se sempre a meditar. O convite é a que vivamos “aqui e agora”, com consciência plena daquilo que estamos a fazer e a sentir. Que observemos o que se está a passar em nós, sem nos envolvermos, aceitando o que vem.
É tão simples. Hoje não consigo perceber como nunca tinha entendido esse convite. Há quatro anos que faço meditação, não acredito que nunca me tivessem dito que o mais importante a fazer é observar, de forma atenta, o que se passa em mim, para poder ter a liberdade de dizer que sim ou que não aos meus impulsos, para poder sentir sem me deixar envolver e levar, para descobrir quem sou, para me aceitar e, por aí, vir a aceitar o mundo em volta, e para um dia, lá mais para a frente, alcançar um nível estável de paz e felicidade interior. Foi necessário viajar mais de duas horas de avião e respirar o ar puro de Amarāvatī para Ala masculinaperceber que não tenho que fazer nada de estranho nem de difícil, tenho só que me centrar em mim – em vez de me centrar nos outros –, no que está de facto a acontecer aqui e agora e deixar fluir, livremente; deixar-me ser. Depois, ajudada pelos cinco preceitos – não retirar a vida a nenhum ser sensível, não tirar aquilo que não me é dado, não praticar conduta sexual imprópria, abster-me de consumir bebidas ou drogas intoxicantes, não usar a fala incorrectamente – decidir o que devo e não devo fazer, ou muito simplesmente ver o que acontece às emoções, aos sentimentos, às sensações: ver que tudo passa, que tudo é impermanente - “anitcha”!

As pessoas são fantásticas. Todas. São lindas, sorriem, são boas, abertas, receptivas, amigas.

O Nobre Silêncio é um preceito de conduta. Não é obrigatório o silêncio mas sugere-se que só falemos quando temos algo de útil para dizer. Esse silêncio auxilia preciosamente a esse virar para o interior, que acaba por ser o veículo para a abertura para o exterior, já que através desse amor nascente por nós próprios e dessa abertura para nós, acabamos por nos abrir também ao mundo. Então, as palavras são as necessárias, mas sempre ornadas por um sorriso e pelo coração aberto, pela disponibilidade para ouvir.
Sempre que precisei ouvi as palavras certas. Nunca as pedi, mas elas vieram ter comigo. Sempre que precisei tive com quem falar e quando achei que precisava mas não houve a conversa, descobri por mim o caminho. E é disso que se trata: a nossa não dependência dos outros; a felicidade, a paz, o amor, a auto-estima, o caminho residem dentro de nós, é preciso que os encontremos e temos que ser nós a encontrá-los, ninguém o pode fazer por nós próprios.
Tudo em Amarāvatī é oferecido (dana). Os leigos oferecem alimentos, dinheiro, trabalho. Os monges oferecem Dhamma – através das palestras, dos livros, dos CDs, do site, das newsletters, do espaço e da sua própria presença inspiradora. A única moeda que existe chama-se amor.

Portugueses em Amarāvatī

No mosteiro há um imenso leque de nacionalidades e uma das mais representadas é a portuguesa, através de três monges e de uma noviça. À boa (mesmo boa) maneira de Portugal, fizeram tudo para que me sentisse bem, e senti!
Quem já os viu, sabe que são jovens, alegres, gentis, cheios de bom coração. São pessoas excepcionais (e normais, como não me canso de espantadamente perceber, já que devo ter resolvido que os monges são uns chatos ou coisa que o valha). São de facto inspiradores. À sua gentileza amorosa juntou-se a de Vinita, que ficou muito contente quando lhe disse que tinha ido na sequência do Tudong. “És a primeira a chegar depois do Tudong! Diz aos outros para virem também.”
Senti que estava em casa, na minha segunda casa (a primeira é a mente, aprendi, finalmente, ali).
Depois, o lado negro: vir-me embora. Não queria vir, queria ser também um deles. Mas não posso… ainda não posso. Vítima dos meus apegos, vim de coração partido mas conhecendo o caminho e disposta a continuar a prática diária para ser mais feliz, mais liberta, melhor e… porque o mosteiro e as pessoas continuam lá…

Até breve, Amarāvatī.
   


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