Fundação Maitreya
 
Os Princípios do Vedanta (Vedānta)

de Swāmi Yuktatmānanda

em 12 Out 2009

  O Vedānta é constituído por duas palavras, nomeadamente Veda e anta. Veda significa conhecimento e anta significa fim ou culminar. Assim Vedānta significa o fim de todo o conhecimento ou a essência de todo o conhecimento. Temos dois tipos de conhecimento. A Mundaka Upaniṣad classifica o conhecimento em dois tipos – aparā vidyā e parā vidyā. Aparā vidyā é o conhecimento empírico – o conhecimento das ciências, das artes, ou qualquer conhecimento que obtenhamos neste mundo.

Por outras palavras, este conhecimento é um conhecimento da relação sujeito - objecto. E o que é Parā vidyā? A Upaniṣad Mundaka diz “atha parā – yayā tadaksharam adhigamyate” (1.1.5). Parā vidyā, o conhecimento superior ou o supremo conhecimento, é aquele pelo qual tudo o resto é conhecido. Assim parā vidyā é o conhecimento de Ātman, conhecimento de nossa verdadeira natureza. Por isso é a essência de todo o conhecimento. É o conhecimento com “C”. O conhecimento empírico é o conhecimento com “c”. O conhecimento de Ātman ou conhecimento de “Deus” é “O Conhecimento”, sabendo que tudo de torna conhecido. Por consequência Vedānta significa a essência de todo o conhecimento, o culminar de todo o conhecimento.

Por “Vedānta” entende-se basicamente as Upaniṣadas que formam a parte final ou a parte do conhecimento dos Vedas. Sabe-se que os Vedas estão divididos em duas secções – a parte ritualista chamada “Karma-Kānda” e a parte do conhecimento chamada “Jñāna-Kānda”. A parte do conhecimento menciona as Upaniṣadas porque trata da natureza do nosso verdadeiro Eu, a natureza de “Deus”, a natureza da Realidade por detrás deste universo manifesto. Por isso esse tipo de conhecimento é referido como Vedānta, i.e.,o fim de todo o conhecimento.

Ora quando estudamos o Vedānta precisamos de estudar profundamente quatro princípios importantes que são universalmente aplicáveis. Estes princípios podem ser praticados por toda a gente indistintamente, independentemente das diferenças de casta, género, nacionalidade, ou de qualquer outra diferença estabelecida pelo ser humano. O primeiro princípio é a não dualidade da Realidade última. A derradeira ou suprema Realidade não é senão uma – advitiya. É não dual. O Vedānta chama a esta Realidade suprem, Brahman. Brahman significa Infinito. O Vedānta não se refere a nenhum deus ou deusa em particular. Apenas se refere a Brahman. Este Brahman diz-se ser Sat-Chit-Ānanda. Sat é o Ser eterno; Chit é a Consciência eterna; Ānanda é a Bem-Aventurança eterna. Por outras palavras, Brahman é a Existência eterna, o Conhecimento eterno, e a Felicidade eterna. As Upaniṣadas dizem que o conhecedor de Brahman torna-se um com Brahman – “Brahma veda brahmaiva bhavati”. Isso é o que encontramos na Upaniṣada Mundaka (3.2.9). Contudo quem conhece Brahman não O conhece tal como o fazemos com um objecto externo.

Quando conhecemos algo, ou vemos algo, ou tocamos, ou saboreamos ou cheiramos algo, os nossos órgãos sensoriais são envolvidos. E obtemos conhecimento dos objectos pelo mundo exterior. Desta forma o conhecimento empírico caracteriza-se pelo conhecedor, o conhecido e processo de conhecimento. Estas características triplas são comuns a todo o conhecimento empírico. O conhecedor é jneia e o processo de conhecimento é jñāna. Esta distinção tripla marca todo o conhecimento empírico, mas esta distinção não está presente no conhecimento de Brahman. Assim quando alguém conhece Brahman, ele ou ela tornam-se um só com Brahman. Brahman é o nome que o Vedānta dá à Realidade espiritual que subjaz ao universo de nomes e de formas. Mas então, cada um de nós é também essencialmente divino, e esta divindade que se oculta por detrás do corpo físico e da mente é chamada Ātman.

O Vedānta diz que esta Realidade espiritual que existe por detrás da moldura humana e a Realidade espiritual por detrás do universo dos nomes e das formas é uma e a mesma. Esta verdade é sugerida na famosa equação Vedānta ou mahāvākya – ayam Ātmā brahma, i.e., este Ātman é Brahman.
Assim este Ātman é não dual. Ātman é o único termo usado para a Realidade espiritual que subjaz à personalidade e Brahman o nome usado para a Realidade espiritual por detrás de todo o universo de nomes e formas. Mas essencialmente, do ponto de vista espiritual, do ponto de vista da divindade presente em todos nós, Ātman iguala Brahman. Esta é a famosa equação Vedānta. Embora Brahman não tenha forma e seja infinito, Ele pode assumir formas divinas, formas de deuses e deusas para se ajustar aos temperamentos espirituais dos aspirantes espirituais. E quando Brahman sem forma nos aparece sob a forma de deuses, chama-se Saguna Brahma, Deus com atributos. Deus pode ter forma, atributos; se não tiver forma nem atributos chama-se Nirguṇa Brahma. Mas se tiver forma e atributos, chamamos-lhe Brahman condicionado ou Saguna Brahma . É este Saguna Brahma que é adorado em todas as religiões como o Deus Pessoal, i.e., Deus como uma pessoa.

Porque adoramos Deus como uma pessoa? Há pessoas que levantam esta questão, a questão da adoração de imagens. Entende-se que o Advaita Vedānta como filosofia é muito estimulante. É muito racional. Intectualmente falando é muito satisfatória. Mas o estudo da Advaita é uma coisa, e a prática da religião é outra. Por consequência temos de partir de onde estamos e daí irmos progredindo gradualmente. Não chega só pensar ‘Eu sou Ātman’ e ficar apegado ao corpo, à mente e ao ego ao mesmo tempo. Isso não nos leva a lugar algum. Por outras palavras, quando nos identificamos com o nosso corpo e mente vemo-nos como seres individuais limitados. Quando o fazemos é-nos constitucionalmente exigido que adoremos Deus com forma. Swāmi Vivekānanda ilustra esta verdade de uma forma belíssima. Ele diz que se os gatos tivessem uma assembleia e tivessem entre si um gato filósofo e alguém perguntasse ao gato filósofo “ O que é Deus?” este diria que Deus é um super-gato habitando para lá das nuvens com abhayahasta (um gesto de bênção com a mão direita erguida), protegendo-nos e punindo-nos com uma vara quando nos desviamos do caminho. Da mesma forma, se as vacas tivessem uma filósofa, uma vaca filósofa, dariam a mesma resposta e diriam que Deus é uma super vaca.

Por isso esta concepção de Deus como um ser super humano é inevitável enquanto nos identificarmos com o nosso corpo e nossa mente, ou, resumindo, com as nossas personalidades limitadas. Portanto a nossa concepção de Deus depende na concepção que temos de nós. Esta é uma importante lei espiritual. Tal como nos vemos, assim vemos Deus. Se estivermos muito ligados à nossa família – marido, mulher, filhos, etc. – é lógico podermos pensar em Deus com mulher, filhos e sermos devotos deles. Está perfeitamente correcto. Assim sendo, consoante muda a nossa concepção de nós próprios, também evolui do mesmo modo a nossa concepção de Deus.

Sri Ramakrishna afirma isto sobre a identidade do Brahman condicionado e sobre Brahman sem atributos. Ele diz que Deus, o Absoluto, e Deus, o Pessoal, são um e o mesmo. A crença num, implica a crença no outro. O fogo não pode ser pensado aparte do poder de queimar, nem o seu poder abrasante pode ser pensado separadamente dele. De novo, os raios de sol não podem ser entendidos separados do sol, nem o sol separado dos seus raios. Não se pode pensar na brancura do leite aparte do leite ou do leite aparte da sua brancura leitosa. Por conseguinte, Deus o Absoluto não pode ser entendido separado das ideias de Deus com atributos. Assim, este Deus com atributos, i.e., Brahman condicionado e Deus sem atributos são um e o mesmo. A mesma Realidade espiritual, que não tem atributos nem forma, aparece como Deus com forma.
Swāmi Vivekānanda dá um exemplo através do qual podemos compreender este conceito do Deus Pessoal. Primeiro de tudo, define Deus Pessoal. Ele diz que Deus Pessoal é “a mais elevada leitura do Absoluto” feita pela finita mente humana. Desta forma, de acordo com a nossa mente, é a nossa leitura do Absoluto e tal explica a razão de ser da adoração de tantos deuses e deusas do Hinduísmo.

Não se trata de uma fraqueza do Hinduísmo. Pelo contrário, é uma força do Hinduísmo capaz de prover às variadas necessidades dos aspirantes de diversos temperamentos. É uma democracia espiritual que o Hinduísmo oferece para que todos possam ter o seu ou a sua própria Ishta-devatā, ou escolha ideal, dependendo do seu temperamento. Suponhamos que olhamos para o sol através de óculos de lentes pretas, ele apresenta-se-nos preto. Também nos parecerá verde, azul ou cinzento, dependendo da cor das lentes dos óculos usados. Sendo assim, se as pessoas começam a lutar e a reivindicar que o sol cinzento é o único sol e que ele é o verdadeiro, ou que o sol verde é o único sol e que esse é o verdadeiro – tudo o mais é falso – isso é estúpido e ridículo. Da mesma forma, seria cómico se eu dissesse que só o meu deus é importante, só o meu deus é supremo, que adorem o meu deus e que só assim terão salvação; se adorarem outro deus, irão parar ao inferno e ficar lá para sempre! Tal conceito de inferno eterno ou de danação eterna é algo completamente alheio ao Vedānta.

É por isso que Sri Ramakrishna disse: “existem tantas fés, quantos os caminhos”. A vida de Sri Ramakrishna é um testemunho resplandecente deste princípio. Ele nunca ensinava oralmente. A sua vida é que nos ensina. Praticou disciplinas espirituais não só de acordo com os diferentes caminhos do Hinduísmo, como também de acordo com o Cristianismo e Islamismo e a sua primeira experiência foi de que todos estes diversos caminhos nos conduzem para o mesmo objectivo espiritual. Por isso, trata-se tudo do primeiro princípio cardinal – a não dualidade da cabeça de Deus. A derradeira Realidade é não dual; seja qual for o nome que lhe for dado. Sri Ramakrishna costumava dizer que o hindu tira água de um reservatório a que chamam “jal”. Um cristão chama-lhe “água”, um muçulmano chama-lhe “paani”. Contudo, os três nomes referem-se à mesma substância – água. De forma semelhante, existem tantos nomes de Deus e tantas formas, mas a essência que subjaz a todos os nomes e formas é a mesma, a mesma última Realidade, a Realidade informe que é a Existência eterna, a Consciência eterna, e a Felicidade eterna.
Divindade da alma

Isto leva-nos ao segundo princípio, que é a divindade da alma. Isto é, cada um de nós, todos os seres são divinos. Não somos apenas o complexo corpo-mente. Apresentamo-nos diferentes exteriormente – homem, mulher, louro, negro, jovem, velho, etc. Mas estas diferenças são apenas físicas. Para além deste corpo, para além destas aparências físicas, temos uma mente. De novo, para lá desta mente temos uma dimensão eterna e tal é chamada de Ātman. Swāmi Vivekānanda diz: “Cada alma é potencialmente divina”. Somos todos divinos. O que acontece é que não estamos conscientes disso todo o tempo. E é só por isso que as diferenças nos parecem tão reais. Quando interagimos com pessoas a sua aparência física tem um papel bastante significativo. É por isso que a mente e o corpo nos parecem tão reais. Mas essencialmente, o Vedānta afirma que não somos meramente um complexo corpo-mente. Somos Ātman. Somos divindades. O Swamiji na sua maravilhosa leitura no Parlamento das Religiões em Chicago disse: «Oh divindades na terra – pecadores! É um pecado chamar tal a um homem; é um constante libelo na natureza humana». Por isso somos divindades na terra – abençoadas, eternas e puras. Este é o importante ensinamento do Vedānta. Encontra-se esta robusta mensagem em cada página das Obras Completas de Swamiji. Pelas suas próprias palavras, diz: «O meu ideal pode ser posto efectivamente em poucas palavras que são: apregoar à humanidade a sua divindade e como manifestá-la em cada movimento de vida».

Esta é a expressão do Swamiji – “apregoar à humanidade a sua divindade e como manifestá-la e a cada movimento da vida”, a divindade inerente a cada um e como manifestá-la em cada dia da sua vida, nas suas actividades diárias. Este é o único tema que o Swāmi repisa a toda a hora nas suas Obras Completas. É esta a verdade. Ele diria: «Temos demasiadas superstições. Não ensinem superstições aos vossos filhos. Não acreditem que são esses corpos limitados, essas mentes limitadas. Vocês são o Ātman». No ocidente alguém lhe perguntou: «Será que esta afirmação “Eu sou o Ātman”, “Eu sou o Espírito” poderá levar a algum tipo de hipnotismo?» O Swāmi respondeu que já estamos hipnotizados porque cremos que somos estes pequenos corpos. Por consequência, quando dizemos que somos o Ātman, não nos estamos a hipnotizar, mas antes a des-hipnotizar. Ao afirmar repetidamente” Eu sou o Ātman” somos conduzidos à verdade. O Swāmi disse que ao dizermos a nós próprio várias vezes “Eu sou fraco” “Eu sou mau”, não nos leva a parte alguma. Se gritarmos “Escuro! Escuro!” num quarto escuro não nos ajuda, não nos resolve o problema. Mas se o abrirmos à luz, a escuridão desaparece imediatamente. Ele disse que a fraqueza não é o remédio para a fraqueza, o remédio é a força. A fraqueza é morte. A força é vida. Por isso nenhum devoto de Swāmi, de Sri Ramakrishna e da Santa Mãe podem permitir-se pensar de forma negativa.

Esta é a lição fundamental. Temos de ser positivos e deveremos pensar “Eu sou o filho de Deus”, “Eu sou Ātman”, “Eu não sou o corpo”, “Não sou a mente”. Assim tenham fé em vós próprios, primeiro de tudo. O Swāmi diz ”Se tiverem fé nos vossos trezentos e trinta milhões de deuses mitológicos…sem terem fé em vocês próprios, não terão salvação”. Isto porque se tiverem fé em Deus e não a tiverem em vocês, não será possível pô-la em Deus. Depositar fé em Deus exige uma luta imensa com a mente, com os vossos samskāras ou tendências e impressões passadas. São precisos esforços heróicos. Por isso precisamos de imensa fé em nós próprios – uma convicção que “Somos capazes disso”. Não se trata de egoísmo. Trata-se de fé no Eu Superior que é diferente da mente, diferente do corpo. Esta fé é indispensável. Por isso tenham fé em vós próprios, primeiro, e depois fé em Deus. Este é o ensinamento importante – somos divinos. Este é um mantra grandioso. Sempre que tivermos problemas, confusão, tensão, ansiedade, Swāmi Vivekānanda diz: «Lembrem-se sempre que são o Ātman; infinitos; não são este corpo; não são este monte de confusão e ansiedade».

Assim sendo, isto fala-nos da nossa divindade. Contudo embora divinos, essa divindade existe em forma potencial. Tal como somos neste momento, não estamos conscientes da nossa divindade. E o resultado é identificarmo-nos com o nosso corpo, mente e objectos exteriores do mundo. O mundo torna-se a nossa única realidade. Começamos a buscar realização nos objectos finitos do mundo. Buscamos felicidade eterna em coisas finitas, o que não é possível. A Upaniṣada Chāndogya diz “yo vai bhumā tat sukham nālpe sukham asti” (7.24.1). Ou seja, a verdadeira felicidade, a Felicidade duradoura só é possível no infinito. Bhumā significa Infinito. Não pode existir Felicidade nas coisas finitas. A Eterna Felicidade só pode ser atingida através da nossa dimensão infinita, i.e., pelo Ātman. Contudo, essa é a ironia, pois por causa da nossa ignorância sobre a verdadeira natureza, procuramos a felicidade no mundo exterior e obtemos vários tipos de experiências no processo. Naturalmente chegará o momento em que reflectimos e nos perguntamos: «Será que este mundo material é tudo o que existe? Serei apenas este complexo corpo-mente arremessado pelas circunstâncias? Ou será que Deus existe?» Todas estas questões começam a perseguir-nos e quando as levamos a sério, começa a verdadeira religião, começa a verdadeira indagação espiritual. Até tais dúvidas começarem a estimular a nossa mente, vamos ganhando experiência.

O Swāmi Vivekānanda diria que precisamos de nos lembrar que somos o Eu, que somos o Ātman, enquanto vamos realizando as nossas actividades. É uma grande ajuda. Assim, de acordo com a Vedānta, vamos continuando a recolher experiências e impressões até realizarmos a unicidade com a nossa natureza divina. A nossa caminhada contínua para lá da morte do nosso corpo físico. Criamos novo karma. Ganhamos novas experiências. Crescemos em discriminação. Crescemos em sabedoria. Tentamos disciplinar os pensamentos e as acções. Tentamos ser mais morais, tentamos avançar na direcção da Divindade. Este é um grande ensinamento da Upaniṣada. Não precisamos de procurar Deus algures para lá das nuvens. Deus está nos nossos corações. E Sri Ramakrishna garante-nos que Deus ouve as nossas orações mais autênticas. O Conhecimento Infinito que vemos erroneamente no exterior existe precisamente dentro de nós, no nosso coração, e não precisamos de qualquer mediador ou padre para actuar entre Deus e nós, tal como a “Tia Lua”` é tia de todos nós.

Este é o ensinamento especial de Sri Ramakrishna. Falem com Deus, rezem a Deus vindo do vosso coração. Sri Krishna também afirma na Gītā, “Īśvara sarva bhutānām hriddeshe arjuna tishthat”, “Ó Arjuna, Deus habita nos corações de todos os seres”. Esse deverá ser o nosso objectivo. Rezar a Deus, pensar em Deus e quando tal acontece nas nossas vidas, começa a verdadeira religião.
Temos estado a tratar do Deus Pessoal, ou Brahman condicionado. O Vedānta tem um nome técnico para tal – Īśvara. Īśvara significa Deus Pessoal. Brahman associado com o Seu poder chamado māyā é Īśvara e Ātman (a mesma Realidade que Brahman) por detrás desta moldura humana associada a māyā é jīva, onde existimos presentemente. Por consequência, somos divindades condicionadas por māyā. Māyā pode ser traduzido por ignorância, o que distingue Īśvara de jīvas. Trata-se de um ponto importante a fixar. Īśvara, ou Deus Pessoal, tem māyā sob o Seu controlo. Um avatāra como Sri Ramakrishna tem māyā sob o seu controlo, enquanto os jīvas estão sob o controlo de māyā. Há um exemplo muito bonito que ilustra este ponto. Uma criança, passeando na rua com a mãe vê alguém escoltado pela polícia. E pergunta à mãe: «Quem é o homem, mãe?» Ela responde: «Um ladrão a ser escoltado por polícias». A criança compreende. Mas passados alguns dias saindo com a mãe, vê de novo alguém escoltado por polícias. A criança pergunta à mãe: «Mãe, aquele é um ladrão?» A mãe manda calar o filho e sussurra-lhe ao ouvido: «Não sejas tonto, não é um ladrão. É o Governador do Estado. É por isso que vai escoltado pela polícia.» Assim, no primeiro caso o ladrão estava sob o controlo da polícia, enquanto no segundo caso, eram os polícias que estavam sujeitos ao serviço do Governador. Esta é precisamente a diferença entre jīva e Īśvara. Jīva está subordinado ao poder de māyā. Somos arremessados pelos nossos samskāras (tendências inerentes), pela nossa ignorância. Mas um avatāra como Sri Ramakrishna está sempre consciente da sua verdadeira natureza. Tais incarnações assumem um corpo humano por infinita compaixão pelo sofrimento da humanidade. Avatāra é aquele que desce da suprema Consciência ao plano relativo da consciência corporizada. Efectivamente Deus torna-se homem para que o homem aprenda a ser Deus. Para que se torne um com Deus.

Em segundo lugar, Īśvara é responsável pela criação, manutenção e dissolução do universo, enquanto jīva é apanhado nas malhas de māyā. Jīva esquece a sua verdadeira natureza e sofre prazeres e dores neste mundo.
A terceira diferença entre Īśvara e Jīva persiste enquanto a última for identificada com o corpo e a mente. Quando nome e forma, ou corpo e mente cessarem de ter significado para nós, tornamo-nos um com a Divindade ou Īśvara. Existe um conhecido exemplo de um elefante de barro e um rato de barro. Do ponto de vista do nome e da forma, um elefante de barro e um rato de barro são completamente diferentes. Mas do ponto de vista do barro, eles são o mesmo. Porém, Sri Ramakrishna diria que seria desastroso para as pessoas que estão ligadas ao corpo e à mente dizerem “Aham brahmāsmi”, (Eu sou Brahman. Existiam uns personagens em Dakshineshwar que se auto intitulavam Vedantinos, mas a quem faltava força e integridade de carácter. Um dia Sri Ramakrishna apontou este defeito no carácter de uma pessoa que costumava mentir, exibindo, contudo, o seu conhecimento não assimilado do Vedānta. De acordo com o Vedānta, tudo no passado, presente e futuro é irreal. Tudo no estado acordado, a sonhar e a dormir é irreal. Referindo-se a essa afirmação, o chamado pseudo-Vedantino tentou defender a sua aberração dizendo: «Como pode atribuir realidade à minha falsidade, quando tudo é irreal?» Ouvindo esta esfarrapada desculpa, Sri Ramakrishna disse: «Eu cuspo no teu Vedānta!» Por consequência, enquanto persistir o apego ao corpo e à mente, a devoção ao Deus Pessoal é lógica. Tal ajudar-nos-á a crescer em devoção e manifesta a nossa natureza divina progressivamente. O que nos leva ao terceiro princípio, que é a unicidade da existência.

Unicidade da existência.
De acordo com a Vedānta, o que quer que exista é uno. Não postula duas realidades – uma Brahman outra māyā, ou Deus e Diabo. Não. Só existe uma. O que existe é Um (a Unidade), chamado Espírito ou matéria. Swāmi Vivekānanda diria: «Sente-se com os olhos fechados e pense por uns momentos que é o Espírito. Quando estiver a pensar que é o Espírito, acha que pode pensar que é ao mesmo tempo o corpo? Não. Quando pensa que é o corpo, não consegue pensar-se como o Espírito. Por isso, o que existe é a Unidade.» Apresenta-se-nos como o mundo. Brahman apresenta-se-nos como o mundo da diversidade de nomes e formas, devido à ignorância da nossa verdadeira natureza. Conhecemos o famoso exemplo do Advaita, o exemplo da corda e da cobra. Quando vemos uma corda no lusco-fusco parece ser uma cobra e vivemos todo o medo e agitação associados com uma cobra. Mas ao projectar luz na corda, ela revela-se. A cobra nem aparece nem desaparece. Não havia cobra nenhuma, apenas uma corda! De forma semelhante, o Vedānta afirma, o que existe é só Brahman –ekam eva advitiyam.

Mas porque é que Brahman se nos apresenta neste mundo de nomes e formas? Por causa da escuridão da ignorância que existe na nossa verdadeira natureza. O Vedānta garante-nos que este mundo de multiplicidade desaparecerá quando a Auto-realização nos despertar.
Qual é a consequência de nos vermos como Espírito e de considerarmos o Espírito a única existência? Quando me firmo na ideia de que sou o Espírito ou Ātman, aprendo a olhar para os outros da mesma maneira. Esta atitude purificar-nos-á gradualmente. Então tentaremos julgar-nos a nós, não aos outros. Esta atitude alimentará o nosso espírito de serviço aos outros. Quando servimos os outros não nos vemos superiores a eles, e erradicamos a tendência que temos de expectativa dos outros. O nosso serviço amoroso e desinteressado tornar-se-á uma verdadeira adoração do Espírito que habita dentro de nós. Sentiremos que somos abençoados por Deus nos ter dado a oportunidade de O servir nos outros.
Por consequência, Swāmi Vivekānanda diria, primeiro banam a palavra ”ajuda” do vosso dicionário. Ninguém pode ajudar, somente servir. Sirvam o Próprio Deus se tiverem o privilégio, e essa atitude é o resultado de nos vermos como o Espírito que é omnipresente. Também tal nos dá a oportunidade de crescer em altruísmo que é sinónimo de divindade. O Swamiji diz: «Existem duas coisas – o mundo e Deus. Tudo o que existe neste mundo é baseado em egoísmo e Deus não é nada mais senão altruísmo». Assim, este conhecimento da unicidade da existência é um grande poder motivador para manifestarmos o altruísmo – olharmos para nós e para os outros como sendo o Espírito.

Esta unicidade de existência também é a base do amor universal que estudamos nas Upaniṣadas. A Upaniṣada Brihadāranyaka ensina-nos este princípio e diz que não é por causa do marido que o marido é amado, mas pelo Ātman; não é por causa da mulher que a mulher é amada, mas pelo Ātman, etc. Esta lista continua e termina com a declaração de que não é por causa de nada que nada ou ninguém é amado, mas por causa de Ātman. Por isso, este amor universal baseia-se no conceito na unicidade da existência. E, finalmente, esta unicidade de existência dá sentido ao ensinamento frequentemente mencionado – ama o teu vizinho como a ti próprio. Porque o teu vizinho és tu próprio. Assim, sempre que magoamos outrem, magoamo-nos efectivamente a nós próprios. Se formos imorais para com alguém, forjamos mais uma ligação que nos ata ao mundo. Por isso o Vedānta diz – pratica a moralidade porque tu és o Ātman. Se fores imoral, essa imoralidade reafirma as tuas más tendências e prende-te mais fortemente ao mundo. Este é o terceiro princípio do Vedānta – a unicidade da existência.
Harmonia das religiões

Os primeiros três princípios, nomeadamente não dualidade da Realidade última, Divindade da alma, e unicidade da existência – conduzem-nos logicamente ao quarto princípio. E qual é ele? A harmonia das religiões. Este é um ensinamento importante de Sri Ramakrishna que diz que cada religião é um caminho válido para a mesma e última Realidade. Por consequência, não há necessidade de lutarmos em nome da religião. O que efectivamente precisamos é de sinceridade, seriedade e aspiração. Sê verdadeiro para ti próprio e determinado no conhecimento da Verdade. Se tiverem estas duas características, Sri Ramakrishna assegura-nos que o Próprio Deus nos porá no caminho certo, mesmo que temporariamente se perca. É uma imensa garantia de Sri Ramakrishna. Swāmi Vivekānanda afirma que existem três aspectos em cada religião – filosofia, mitologia e rituais. A filosofia apresenta a visão global da religião apresentando os seus princípios básicos, os objectivos, e os meios para os atingir. A segunda parte é a mitologia que é a concretização da filosofia. Consiste nas lendas relacionadas com a vida de homens e mulheres ou dos seres sobrenaturais e por aí adiante. A terceira parte é o ritual. Isto é mais concreto e é feito de formas e cerimónias. Existe nestes, uma atitude física – flores e incenso e muitas mais coisas que apelam aos sentidos. Precisamos dos três. Contudo, o problema começa quando os aderentes destas religiões começam a acreditar que a sua filosofia, mitologia e rituais são a única filosofia, a única mitologia e os únicos rituais válidos. É quando surgem as carnificinas, é quando surgem as discórdias. Swāmi Vivekānanda diz que nunca conseguiremos a unidade ou universalidade em assuntos relacionados com estes três aspectos.

A Universalidade só é possível relativamente à Verdade espiritual que é o fim de cada religião. Se cada religião for praticada com sinceridade, será um caminho válido para atingir a mesma e última Verdade. Dá-nos um exemplo e diz-nos: «Imaginem um círculo com uma circunferência infinita. Nós estamos na periferia da circunferência do círculo. Há números infinitos de pontos na circunferência e, enquanto estivermos na periferia, – vós no topo da periferia e eu no ponto dramaticamente oposto – começaremos a debater qual é o melhor local. Sempre que começamos, o meu ponto de vista é que é o certo! Naturalmente que os vossos estarão errados! Enquanto estivermos na periferia e pensarmos que o nosso local é que é o certo não acabará a discórdia nem a harmonia. Mas logo que escolhamos mover-nos em direcção ao centro seguindo qualquer raio, as diferenças diminuem. Começamos então a concordar mais, a ganhar mais unidade, e a ser mais espirituais, começamos a viver a religião e por fim quando atingirmos o centro, sabemos que todos os raios conduzem ao mesmo centro». Por isso Sri Ramakrishna afirmou, “Jata mat, tata path”. Quer dizer, liga-te à tua fé, mas não penses que os outros caminhos estão errados e são inúteis. É preciso ter uma devoção adequada ao ideal de cada um ou Ishta. E assim, esse é o “teu” caminho, não o de toda a humanidade. Este é o quarto importante princípio do Vedānta. A todos os que se interessam sinceramente por religião, estes princípios fornecem-lhes um enquadramento maravilhoso para a manifestação da divindade que já existe no homem.

Boletim de Março 2009 do Ramakrishna Mission Institute of Culture.
Este artigo é baseado na dissertação de Swāmi Yuktatmānanda, Ministro em cargo no Centro Ramakrishna-Vivekananda, Nova York, em memória de Bhupendra Nath Ghose, apresentado a 7de Julho 2008.

Tradução de Helena Gallis
   


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