Fundação Maitreya
 
Experiências de Retiro na Arrábida

de Ana Maria Cordeiro

em 08 Fev 2011

  O tempo de retiro traz-nos sempre uma disposição interior mais sublime, mais expansiva, repleta de alegrias profundas e realizações interiores gratificantes. A serra em si, com o seu passado e todas as suas energias purificadas, vivenciadas por tantos seres ao longo da sua existência, auxilia em muito a nossa predisposição e o espirito com que para lá nos dirigimos.


Já na partida para Vila Nova de Azeitão, todo o ser se agita, na ansiedade da vivência em silêncio, sozinho, mas com a confiança de que há outros que de nós tomam conta, desde os preparativos mais básicos que tenham a ver com as refeições ou a dormida, até à orientação espiritual dos tempos de meditação em si mesmos. E depois há a meditação a andar, pela serra acima, a olhar o céu ou o mar, como que, efectivamente, da natureza fizéssemos parte integrante.

Sobe-se a serra a caminho do porto de abrigo. Curvas de contra curvas fazem-nos aumentar o cuidado com a condução, ao mesmo tempo que nos ajudam desde logo a tomar parte da essência, da morfologia da área que nos abriga durante esses dias, sem podermos também deixar logo de lembrar a irmandade Franciscana que lá habitou durante tantos anos. Ao chegarmos ao portão da propriedade, sentimo-nos uma espécie de privilégio: a mata da serra guardada por um portão largo de ferro. Ninguém à vista, mas um sino que, tocado, fá-lo abrir automaticamente como que por magia. A partir daí desce-se por uma estrada de calçada portuguesa. O zelador com grande sorriso, recebe-nos e encaminha-nos para a ala de aposentos. Entre a beleza da serra, o cuidado da propriedade e o conforto das instalações, fica-se dividido, embora nos lembremos imediatamente do objectivo primeiro da nossa viagem: parar, meditar e ouvir os ensinamentos dos monges.

No 1º dia até à hora do repouso, pode-se falar. Há o reencontro de conhecidos, a gratidão do encontro com os mestres ou os monges portugueses que os acompanham, as boas-vindas do pessoal da estalagem, sempre alguma benéfica agitação provocada pelas emoções ainda não dominadas. A refeição ligeira, a visita à sala de meditação, a palestra da noite e as recomendações práticas. Por vezes, na tarde, pode haver visita ao Conventinho, com as explicações do zelador, profundo conhecedor da história e dos pormenores da quinta. E o coração abre-se a novas e profundas experiências interiores e começamos a espaçar o lugar do nosso eu mais profundo. Como que um regresso à essência mais pura de cada um a que a vibração do Monte Sacro dará sem dúvida grande ajuda. E a pergunta forte que sempre se impõe: que se levará deste retiro? A noite será curta porque o despertar é pedido às 05h30, de modo a que façamos a oração da manhã antes das 6 horas.

Quase não se sente que se dormiu, tal é a alegria de se começar o trabalho! Entre as orações, a meditação e alguma explicação do orientador de retiro, passamos uma hora. Tempo livre antes da refeição da manhã. Aí já o Sol nasceu: cada um de nós, procura tirar o maior partido da natureza selvagem, prolongando desde logo o estado meditativo. Uma vez, corri serra cima e encontrei, já perto da saída da propriedade, uma espécie de gruta escavada na rocha, consequente da construção do caminho. Dava para sentar e ficar abrigada da chuva, e desde então passou a ser o meu local de refúgio. Nem os pássaros nem os coelhos davam por mim e de lá tem-se a vista sobre o mar que se confunde com o céu, onde navegam grandes petroleiros e cargueiros mas que, dali, parecem barquinhos de papel à mercê do vento e do estado do mar. Quanto a nós, observadores, a atitude é de grande comunhão com a natureza, na sua importância e na sua insignificância, tal como as formigas que, debaixo dos arbustos àquela hora já trabalham afincadamente.

Entrámos portanto já no 1º dia de silêncio, quando aumenta o diálogo interior e começamos a ter consciência dele e da necessidade de, cada vez mais, aquietar o mental. ”As coisas são como são” – a frase é insistentemente afirmada por Ajhan Sumedho, durante os seus tempos de ensinamentos. O seu discurso é tão moderno e as suas ideias tão certas, que quase nos custa a crer que sejam ensinamentos do Buda. “É preciso estar atento ao Aqui e Agora”..... e vamos criando o silêncio também interior com mais ou menos facilidade e que nos vai indicando o “Caminho”.

A comida é sempre muito boa e muito bem confeccionada. Depois dos monges se servirem, podemos nós então dar início à nossa refeição. Mas a presença da Mãe Natureza é tão forte, que, por vezes, nos esquecemos de confortar o estômago, tal é a beleza aos nossos olhos. O Céu, o mar, o Sol a Vegetação...e a comida vai ficando no prato para a vista se deleitar com tudo ao que está em seu redor. Difícil será descrever as emoções, as sensações, os estados de espírito...

Durante o dia, entre os tempos de meditação, faz-se meditação a andar pelos caminhos da quinta, exercitando a plena atenção. Difícil será no entanto abstermo-nos de tanta beleza. Nos tempos de descanso é quase inevitável termos de ir descansar os pés e as pernas por não estarmos treinados a sentarmo-nos em lótus...a dor física por vezes ainda se sobrepõe ao trabalho de abstracção...muito ainda que há para trabalhar...e logo o ensinamento da Impermanência: “o que é agora, não é logo”...

Numa dessas noites, o ar estava morno, era Junho e, como à noite não há refeição, tínhamos muito tempo livre até à oração da noite...levanta-se um vento forte, sonoro, fantasmagórico, que é muito conhecido nas encostas da serra e que “mete medo”...naqueles minutos não sabemos mais nada a não ser que se está “ por conta do Vento”: vai amainar? Como já está calor pode provocar algum incêndio na floresta? Afinal onde está a nossa quietude, a nossa confiança??? Tanto que há para trabalhar... Como que por magia, da mesma forma que veio, parte o vento deixando com a noite a serra bem serena e a vegetação tranquila...
Nós, depois do nosso encontro da noite e dos cânticos ao Iluminado, também nos recolhemos para um repouso de algumas horas.

Num dos retiros mais longos, Sumedho veio acompanhado por um grupo de pessoas inglesas. Com eles viajou um jovem que, pelos vistos morava perto de Amaravati, mas não frequentava o mosteiro. Todas as manhãs, cada um de nós quase corria para, cada um por si chegar ao seu local de eleição para contemplar. Não nos cruzávamos, mas sentíamos a presença do outro no percurso, querendo nos isolar ao máximo. Só que, de súbito, olho para cima, para as guaritas da encosta, onde os antigos monges franciscanos tinham construído uma Via Sacra, e ele já lá estava: dentro da construção, uma boas dezenas de metros encosta acima. A cabeleira loira dava para o reconhecer a boa distância, e o seu ar feliz também. Ainda hoje estou para saber como lá chegou tão rápido e como conseguiu encontrar o caminho... e logo, na minha imaginação (ou consciência) surgiu uma imagem muito bem definida de todas as construções da Via Sacra tomarem a forma de grandes cabeças do Buda, espalhadas por toda a serra! Impressionei-me até hoje. O Monte Sacro!!!

Passámos lá o dia que guardamos no Portugal cristão como o dia de Santo António...na véspera esteve lua cheia, tão cheia que, quando acabou a oração e o Dana da noite, ao sairmos da sala, quase parecia dia outra vez. A lua reflectia-se no mar, fazendo o famoso mar de prata e nós, não tendo nada que nos impedisse ou tirasse a visão de todo aquele maravilhoso espectáculo, tivemos grande dificuldade entre optar pelo descanso ou por nos mantermos a admirar a lua cheia. Mas o silêncio mantinha-se, sentindo todos nós o riso interior da alegria de cada um. De outra vez aconteceu o oposto e nossos grandes amigos foram os pirilampos, que aos milhares, enfeitavam árvores e pequenas plantas e, estando frio, corríamos pela noite embrulhados nas mantas em busca de mais aquela maravilha, depois de um dia de contemplação e meditação...e de compreensões muito profundas. Os propósitos maiores às vezes não têm caminhos muito simples...há que compreender isso e aceitar. Tudo é de grande e profunda impermanência e às vezes o que queremos que sejam coisas palpáveis, acabem por ser bem subtis e não ficam “assim” ao nosso alcance como no mundo físico.

Nesse espírito, terminámos de certa vez um retiro com uma benção especial atribuída por Sumedho e Dhammiko, a água, a luz e a floresta, numa espécie de unção a todos os que participaram...comovente e significativo o acto que marcou pela surpresa e como um gesto de boa vontade. Saímos da sala comovidos, abençoados e muito, muito felizes com tão simples e tão tocante cerimónia. A partir dali, já todos tinham vontade de permanecer, continuar o retiro (talvez mais uma semana?) esquecer as dores nas pernas e nos pés...Mantermo-nos naquela vibração de amor e fraternidade, continuando a nossa simples vida, como se monges fossemos todos...
   


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