Fundação Maitreya
 
Tradição Espiritual Portuguesa

de Pedro Teixeira da Mota

em 09 Mai 2011

  Ora hoje ainda que sejam poucas tais almas, capazes de colher no passado as raízes «para dar à nova luz do futuro a sua flor espiritual», pois «renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com ele», há ainda assim que tentar chamar a sociedade portuguesa ou, já alargada, a lusófona «desperta à sua própria realidade essencial, ao sentido da sua própria vida, para que ela saiba quem é e o que deseja. E então poderá realizar a sua obra de perfeição social, de amor, de justiça, e poderá gritar entre os povos: Renasci!» Há que lutar por «esta obra sagrada», que compete sobretudo aos «portugueses que encerrem no seu ser uma parcela viva da alma da nossa Pátria». Mas haverá ainda muitos e capazes de se unirem criativa e libertadoramente? Quantos já não se desiludiram dela pelas caricaturas ou mentirosas figuras que os diversos representantes nacionais têm feito?

Da Tradição Espiritual Portuguesa

Presente nas Sementes e Claridade da Revista a Águia


Quando contemplamos a claridade da revista A Águia, publicada sobretudo no Porto entre 1910 e 1932, e a qualidade dos seus intervenientes, discernimos que muitas das sementes colhidas e lançadas então no húmus das almas e das páginas estão ainda hoje prontas a frutificar...

Tal como na agricultura as sementes, sobretudo dos cereais, têm um ciclo longo para germinarem, também a Logocultura detém em si e permite que, passados tantos anos do aparecimento da Águia (com os seus 205 números), não só outras revistas e projectos se tenham erguido na sua senda, tal como a Seara Nova (1921), Portucale (1928), Princípio (1930), 57 (1957), Espiral (1964), Nova Renascença (1980), Leonardo (1988), Teoremas de Filosofia (2000) e Nova Águia (2008), mas que, sobretudo, nós seres do 3º milénio possamos levar mais adiante algumas das intuições e impulsões dos mestres da Águia, que nos contemplam agora da Terra Lúcida e esperam animicamente aperfeiçoamentos e finalizações.

É em verdade na comunhão com a história criativa portuguesa, com o Espírito Divino e a sua Teologia ou Filosofia Perene, e com os que já partiram e os espíritos angélicos, que se consubstancia a Tradição Espiritual Portuguesa e a sua grande Alma e Ordem. É neste sentido que ideias, intuições, interrogações e desafios lançados por mestres ou discípulos como Leonardo Coimbra, Pascoaes, Jaime Cortesão, António Carneiro, Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Junqueiro, Jaime Magalhães de Lima, Gomes Leal, Teixeira Rêgo, Rafael Ângelo, António Sérgio, Sant'Anna Dionísio e Agostinho da Silva permanecem, no corpo místico de Portugal e da Humanidade, abertos ao aprofundamento e à realização que cada um de nós lhes pode dar libertadoramente...
As linhas que se seguem são também uma homenagem aos principais animadores da centenária revista (entre os quais, Álvaro Pinto, o fundador, director e proprietário da 1ª série) e que, dando o que deram, merecem a nossa gratidão e evocação divina, onde quer que estejam...

Como sabemos, as vicissitudes do movimento da Renascença Portuguesa e da sua revista foram muitas, marcadas pelas cinco séries e respectivas direcções, destacando-se as dificuldades causadas pela Grande Guerra e a instabilidade política, passando mesmo a impressão e edição para o Brasil, de 1920 a 1921, iniciando-se a 3ª série em 1922, no Porto, dirigida já não por Teixeira Pascoaes e Álvaro Pinto mas pelo filósofo ígneo Leonardo Coimbra.
Ao lermos os primeiro textos, e sobretudo os manifestos fundadores da 2ª Série, observamos uma forte consciência de que a Pátria estava a renascer e que era preciso congregar as energias genésicas de alguns pensadores para darem dignidade, sentidos e orientações. Certamente que no século XXI, com um Portugal cada vez mais empobrecido pelos partidos e dirigente políticos que o têm governado, a ideia de Pátria ou mesmo de grande Alma Portuguesa, inserida na Comunidade Europeia uniformizadora e dissolutora das especificidades culturais ou mesmo salvíficas e realizadoras nacionais, é em muitos aspectos cada vez menos substancial e profunda, pelo que o nosso quotidiano terá de ser o de um esforço permanente contra a grande massificação e manipulação a que estamos sujeitos enquanto cidadãos governados, ou receptores e transmissores de informação ou ainda trabalhadores-consumidores. Dentro do quadro actual de falência do modelo de sociedade, salvaguardado pelo bode expiatório da crise, realcem-se porém as tentativas de resistência, renovamento ou alternativa, entre as quais as da revista Nova Águia, actualmente viva.

Ora se desde logo, na 1ª série da Águia, em 1910, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, entre outros, revelam-se nas suas intensas e profundas virtudes e impulsos, é clara também a inexistência de um forte programa doutrinário veiculado como tal por eles, nesse advento caótico da República e quase espontâneo da revista, que em breve, por ideação de Cortesão e Leonardo (já juntos, com Álvaro Pinto na revista Nova Silva, de 1907) se iria tornar o porta voz da Associação da Renascença Portuguesa.
Recolhamos então algumas dessas sementes centenárias mais valiosas: Leonardo, no nº 1 da Águia, mostrando já o seu forte pendor para a iluminação interior e o dinamismo cósmico do Amor escreve Sobre a Educação, que «deve dar o homem a si mesmo, envolvendo-o de claridade interior; dá-lo à família pelo enternecimento, à humanidade pelo amor, ao Universo pelo deslumbramento e pelo sacrifício. Partindo de si, o homem deve abraçar o Universo».

Jaime Cortesão, no mesmo nº 1, surge como inspirado poeta e luminoso teorizador da Poesia apelando fortemente ao «ver para além, mas muito para além da superfície de cada coisa...», comparando «a nossa alma superficial que balbucia apenas em galreios infantis o que para a Alma imersa, profunda e transcendente é já linguagem calorosa e omnipotente da Verdade (…) Ser poeta é libertar todas as almas, é vê-las com o líquido olhar de enternecidas lágrimas, chorando, falar com elas, fazer Cânticos sublimes desses tácitos colóquios e entregá-las depois ao som de ritmos sugestivos (...) Poeta é o que faz dentro de si as novas experiências do Amor e do Mistério, para depois trazer ao Mundo uma mais alta verdade (...) Poeta é o que reflui sobre si mesmo, e interiorizando-se segue por esses misteriosos caminhos a encontrar-se em fraterna comunidade com tudo quanto na Vida anseia (…) O verdadeiro Poeta é o que nessas abismais imersões vai acender novas estrelas nos recantos da Alma até então obscuros, e volta de lá à superfície, transfigurado, alucinado, com uma centelha de Infinito nos olhos pávidos para cantar a sua visão numa ebriedade divina (...) Quando o meu Deus sobre mim desce na sua sarça de inspiração ardente, meu ser comunga o ritmo dos astros, atravessa-o um arrepio de Infinito e Eternidade, e embebido, encharcado, diluído num luar de sonho, sinto afluir à minha boca numa aluvião tempestuosa de gritos, vozes e hinos formidáveis, todas as vidas do Universo», e eis-nos com alguns ensinamentos germinais do original historiador dos Descobrimentos, adepto do Espírito Santo e da espiritualidade franciscana e que tanta influência teve, por exemplo, em Agostinho da Silva.

Teixeira de Pascoaes é só no nº 2 que lança a sua prodigiosa imaginação e palavra inflamada a propósito da morte de Tolstoi, cuja vida e obra é fortemente comemorada na Águia (nomeadamente por Veiga Simões e Sampaio Bruno), escrevendo: «A pena mística de Tolstoi e a lança heróica de Quixote, presas num abraço, são as extremidades dos últimos raios deste foco imenso de luz espiritual que o sangue e a carne do Homem alimentam, e que explende e brilha, sem um fim, sem um destino talvez, como os lírios florescem e como os astros gravitam...»
No nº 3, Leonardo, escrevendo sobre o Natal e novo ano, valoriza essa expansão de vida nova que é «o Amor cósmico, o amor-perfeito, sem egoísmos nem exclusões. O Reino espiritual existe na virtualidade do nosso poder criador. Ele existirá na efectividade das nossas obras de ternura e bondade. Natal? Natal contínuo e permanente de vida nova a sangrar dedicação, a estremecer de afectos! Novo ano? A Terra em novas paragens do cosmos a aquecer e a iluminar o Universo com as fulgurações do novo homem, intérprete de Deus, fecundador da vida!»

Dos dez números dessa rara e pouco estudada 1ª série realcemos ainda as colaborações bem espiritualistas e utópicas de Rafael Ângelo e Veiga Simões, as teorizações de Leonardo: «ser poeta é eternizar o instante, é fazer da vida um contínuo deslumbramento, um permanente convívio com Deus», ou ainda (no nº 4) os discernimentos e desmascaramentos (tão actuais) de Pascoaes: «é na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc. (…) Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita (...) A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensanguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Boudha, Pascal, Spartacus, Voltaire Rousseau, Hugo Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc, etc...». Um tempo revoluto mas sempre actual, quando o próprio Teixeira Pascoaes (o saudosista e contemplativo para os seus críticos...) desmascarava a mentira política e apelava à revolução popular...
No nº 5, Leonardo escreve a 2ª parte Sobre a Educação, realçando a verdade importantíssima ainda hoje pouco assumida: «A atitude religiosa depende da realidade, isto é, da ciência e da filosofia. Por isso ou se recebe de olhos fechados uma ciência e uma filosofia e então pode cair-se dentro de uma Igreja: ou se procura a verdade, e então cada indivíduo para ser religioso tem de criar a sua religião, porque ela depende dos seus valores e da realidade, cujas últimas hipóteses tem de participar do individualismo. Cada indivíduo é, sob este ponto de vista, uma mónada. Nele actua todo o Universo e ele é um espelho original e inconfundível, onde o Universo se olha... Para ser religioso, isto é, para unir o eu com o Universo, para colocar a consciência no Infinito é preciso ser sábio sem ser escravo da ciência, filósofo sem ser escravo da filosofia, simples sem ser escravo ignorância, bondoso e humilde sem cálculo, regra ou prevenção. E como traduz a religião, esse estado emotivo do eu em contacto com o Infinito? Pelas artes. O primeiro sentimento religioso é o do sublime. O sentimento do sublime é o desvairamento, o assombro perante o infinito...»

De destacar neste texto a afirmação «cada ser para ser religioso tem de criar a sua religião», que podemos aprofundar com a de que Deus tem de renascer em cada um de nós, íntima ou monadicamente, e que a Religião Universal (como já sinalizámos num artigo do nº 3 da Nova Águia) está a desvelar-se nas consciências livres, acima dos escombros e as egrégoras dos fanatismos e exclusivismos das principais religiões e suas seitas.
No nº 6 um belo louvor ao amor da língua portuguesa por Antero de Figueiredo e a intensa homenagem a Victor Hugo, por Pascoaes, destacam-se. Realcemos no nº 7 um novo artigo monadológico de Leonardo e um conto sobre os mistérios desse subtil Japão, a contraparte oriental do Portugal finistérrico, e no nº 8 um valioso retrato psíquico de Pascoaes por Jaime Cortesão, com uma das mais significativas descrições de conversas espirituais portuguesas, que certamente muitos de nós já experimentámos de um modo ou outro, quando vogavam «à beira-mar, numa maré crescente de entusiasmos, ao debater palestras intermináveis.../ Como duas ondas, duas labaredas, ou duas rajadas, que chocando-se, mais se elevam, os nossos pensamentos, à força de embates constantes, tanto se erguiam e volatilizavam que por fim rebatiam apenas espumas, névoas, hálitos de ideias, e chegavam a atingir um tal poder de abstracção, que nos supunha num contacto espiritual directo, para lá das palavras, comunicando só por gritos, gestos, exclamações, a telegrafar tempestades...»

Destas conversas, As Noches Claras, Divinas y Humanas Flores, escritas por Faria e Sousa, e que Sampaio Bruno falava, resplandecem aqui bem vivas, são um exemplo bem antigo, ligado ainda à Ordem de Cristo e aos peregrinos e espirituais portugueses.
No nº 10, o final, para além da homenagem a António Nobre e de mais referências a Antero de Quental, Leonardo Coimbra oferece Aos poetas portugueses religiosos, Uma Monadologia (fragmento) bem merecedora de meditação e vivificação, nos nossos tempos de crescente redução da vida ao trabalho de sobrevivência e a lazeres alienantes, afirmando que «quando classificamos de calhaus certos homens, dizemos mais do que uma metáfora. Quando, respondendo às acções mecânicas, biológicas e sociais, sinto ainda um excedente de actividade, a presença do Ideal, sou um homem livre e superior. Sem esse excedente de actividade nunca se teria pensado na liberdade, na alma e em Deus. Os seres medem, pois, a realidade pela amplitude do seu ritmo, excedente psíquico, alma ou liberdade. Assim compreende-se o conhecimento. Cada ser contém materialmente os outros de menor ritmo ou alma. O homem, compreendendo os outros, conhece a actividade livre e vivendo nessa actividade, sente e concebe Deus. Cada ser tem por limite o gasto de energia a que o obrigam os outros seres, ou o Mundo. Deus seria a perfeita actividade, a omnipresente liberdade»...

E eis-nos com valiosas ideias sobre energias e ritmos (para equacionarmos...) de Leonardo, certamente um dos portugueses que mais acertou no que intuiu, viveu e escreveu sobre a alma humana, o Universo, o Espírito, Deus e o Amor, mas que por erros, má fortuna ou amor ardente prematuramente morreu...
É de novo a Teixeira Pascoaes, a Leonardo Coimbra e a Jaime Cortesão que devemos os textos mais fortes, e agora doutrinários ou programáticos (fundada que foi em 1911 a associação Renascença Portuguesa), expressos na 2ª série da Águia (retomada em 1912), onde logo no nº 1 Pascoaes lança o objectivo de «dar um sentido às energias intelectuais (…) colocá-las em condições de se tornarem fecundas de poderem realizar o ideal que neste momento histórico abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: Criar um novo Portugal, ou melhor ressuscitar a Pátria Portuguesa».
Ora hoje ainda que sejam poucas tais almas, capazes de colher no passado as raízes «para dar à nova luz do futuro a sua flor espiritual», pois «renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com ele», há ainda assim que tentar chamar a sociedade portuguesa ou, já alargada, a lusófona «desperta à sua própria realidade essencial, ao sentido da sua própria vida, para que ela saiba quem é e o que deseja. E então poderá realizar a sua obra de perfeição social, de amor, de justiça, e poderá gritar entre os povos: Renasci!» Há que lutar por «esta obra sagrada», que compete sobretudo aos «portugueses que encerrem no seu ser uma parcela viva da alma da nossa Pátria». Mas haverá ainda muitos e capazes de se unirem criativa e libertadoramente? Quantos já não se desiludiram dela pelas caricaturas ou mentirosas figuras que os diversos representantes nacionais têm feito?

E se Pascoaes apela à união de «um certo número de operários congregados e harmónicos, ligados pelo mesmo sonho» que «vivam, além da sua vida egoísta e individual, a vida mais vasta e profunda, porque é abstracta e transcendente, da Pátria Portuguesa», este chamamento, que ainda hoje ecoa em alguns movimentos ou iniciativas, como os que a Nova Águia ou outras revistas e grupos, até mesmo na Internet, lançam nos nossos dias, tem contudo encontrado sempre a dificuldade das individualidades portuguesas ou lusófonas, necessárias no momento histórico do aqui e agora, saberem congregar-se com pouco ego e em grupos verdadeiramente abertos ao Espírito santo, à busca da verdade, ao eixo cósmico que liga céu e terra e une em fraterna companhia...Se em 1912 Pascoaes podia afirmar tanto sobranceira como clarividente e prometaicamente que «se não existisse uma alma portuguesa, teríamos de evolucionar conforme as almas estranhas, teríamos de nos fundir nessa massa amorfa da Europa; mas a alma portuguesa existe (...) e o seu perfil é eterno e original. Revelemo-la agora a todos os portugueses...»
E o seu objectivo era «um novo Portugal, mas português», hoje isto estará cada vez mais relegado para brumas alcantiladas nas montanhas do Marão ou de outra montanha sagrada, ou remansadas em vales do que vai restando ecológica e antropologicamente do Portugal profundo, se não houver os que continuarem a manter a ligação com a grande Alma Portuguesa, ou a Tradição espiritual, que é intrinsecamente universal, e a consigam efectivar interna, cultural, ecológica, local e internacionalmente, contrapondo à primazia do homem económico, manipulado e sectário, o ser humano espiritual, liberto, criativo, cósmico e solidário...

Contudo, certamente, as sementes da Águia, da Nova Renascença e da Nova Águia frutificarão aqui e acolá, tanto mais que são de qualidade luminosa, como por exemplo, no mesmo nº 1 da 2ª série, de 1912, Jaime Cortesão denunciando os perigos da vida citadina (onde não se contemplam as estrelas nem se pisa a terra) e dando testemunho da teoria da alma-gémea e da Unidade primordial no poema “Esta História é para os Anjos”, diz-nos: «Pois vi-lhe, quando a fitava, /Com os meus olhos nos seus/A parte que me faltava/ Para chegar a Deus. // Oh, olhos extasiados, /Criando um novo sentido,/ Oh, segredos revelados/ No silêncio surpreendido, // Quando as almas estremecem/ à maior profundidade,/Porque enfim se reconhecem/ Na sua eterna Unidade! //(…) Amar é ser a semente,/ Num árido chão sepulta,/ Que germina de repente,/ Transbordando seiva oculta.»
Oiçamos também nesse fundamental nº 1 da 2ª série, Leonardo num diálogo original e unitivo entre Prometeu, o espectro da Terra, e o de Cristo: «a natureza sofre e é impotente, mas o homem possui o fogo do espírito e, com ele, irá acender consciências pelo Espaço. Desperta e luta Natureza! Já não pesa sobre ti a Fatalidade, mas, como amor e o espírito, começa a liberdade, o consentimento mútuo, o auxílio, a fraternidade, a ascensão moral! Deus é o foco invisível das almas, a fonte inesgotável do heroísmo e do amor», ou num Excerto em que nos doa valiosas sementes de meditação e criacionismo, ao considerar as relações das pessoas como mónadas que procuram harmonizar os seus ideais: «ao necessitarismo da matéria é substituído o determinismo moral; e é, de beleza e amor, a atmosfera cósmica. Assim a nossa filosofia será a estética da liberdade e a moral da beleza. A liberdade é o poder do espírito criar beleza, isto é, entendimento, transparência, comunhão, fraternidade. Dominando a matéria, o inerte ou o necessário, pode o espírito afirmar-se com eficácia e valor concreto. A beleza é a graça da transparência, do entendimento entre os seres, o acréscimo contínuo dum novo sol cósmico, que, em luz de amor e recíproca penetração, vai consumindo a matéria. Convém a esta filosofia o nome de criacionismo. Criação de beleza e amor.»

E se ainda sondarmos, por exemplo, o magma do jorro emanado no ano de 1915, encontraremos, para além das críticas ao pangermanismo e à guerra, ou dos muitos artigos de arte e ciência, alguns escritos marcadamente espirituais e perenes, como os de Sampaio Bruno e Teixeira Rêgo, que pensam pioneiramente as opções a uma leitura demasiado conformista e literal da história das religiões e do catolicismo, propondo antes seja a via iniciática seja a da etimologia, gramática e comparativismo mitológico, para que se possa extrair o essencial dos ensinamentos que nos chegaram. Eis-nos com afloramentos da Filosofia Perene, ou da Religião Universal, entre nós...
É significativa a confissão de Sampaio Bruno de tentar executar o que o pai do notável pintor Dante Gabriel Rossetti cumprira em relação à literatura italiana: encontrar o muito que nela respirava de doutrinas ou mesmo agremiações secretas ou não institucionalizadas, tal como já o nosso Faria e Sousa no séc. XVII afirmara nas suas Noches claras, Divinas y Humanas Flores. Nesses artigos, Bruno, algo movido pelo seu pendor maçónico e anti-papal, dá mesmo quanto aos Fiéis do Amor a prevalência do sentido de anti-Roma, anagrama de Amor, preterindo o simples e mais essencial de serem fiéis verdadeiramente do Amor, do Logos, da Unidade fraterna e sábia, sem dúvida a mais viva e perene corrente iniciática ao abrir as portas do coração que dão acesso ao templo, aos mestres, à grande alma ou corpo místico, ao Divino.

É sabido como Fernando Pessoa se dirigiu a Bruno para saber do Sebastianismo, mas não se pode quantificar a influência em Pessoa destes artigos escritos na Águia em 1915, e que só vieram a ser publicados por Joel Serrão em livro em 1960, Os Cavaleiros do Amor, e em 1996, mais completos, por Joaquim Domingues, Plano de um Livro a Fazer. Neles Bruno retoma o dito de Faria e Sousa («Que es noche, y la conveniencia que tiene com el estudio. Para las Academias, y nueva Cavalleria») e entendo-o numa linha que será desenvolvida por Pessoa e que ainda hoje não está clara: a de uma nova Cavalaria com os seus Fiéis do Amor. Aliás, as hesitações de F. Pessoa quanto ao nome a dar-lhe, mostram bem o limiar iniciático potencial: Ordem Templária de Portugal, Ordem de Cristo de Portugal, Ordem Secretíssima, etc., embora assuma em 30 de Março de 1935, no seu famoso testamento, a iniciação nos 3 graus menores da Ordem Templária de Portugal...
Há que aprofundar-se a história das repercussões dos números da Águia nos colaboradores e leitores, na correspondência epistolar e nas páginas da Águia (nomeadamente em polémicas à volta de Sousa Martins e Antero Quental, Saudosismo e Sebastianismo), ou mesmo dos encontros e desenvolvimentos ocorridos entre os que se sentiriam mais da Águia ou da Renascença Portuguesa.

Há memórias que deixam entrever alguns níveis internos, como as reuniões mais íntimas na sede da Renascença Portuguesa e lideradas por Leonardo, que Álvaro Ribeiro referencia e que o Joaquim Domingues me sinalizou, ou as que já citámos entre Cortesão e Pascoaes. Sabemos como Leonardo Coimbra, além das tertúlias de cafés, estava sensível aos movimentos espíritas e psíquicos da época e como tentou usar a força do pensamento seja para induzir transes ou mesmo ressurreições nos outros, como o seu discípulo Sant'Anna Dionísio presenciou e me confidenciou.
Quanto aos muitos artistas que colaboraram na beleza gráfica da Águia relembremos o que Ronaldo Carvalho escreveu então sobre António Carneiro (que foi também director): «Pela sua variedade, pelo modelado místico e torturado dos retratos, pela nostalgia doente da paisagem, pelo aspecto longínquo dalgumas figuras é como se Antero renascesse na alma de Ruysbroeck para perpetuar o ignoto e a distância na sua obra evocadora e isolada.»
Realcemos aqui a evocação de duas linhas de força valiosas em Portugal: a de Antero de Quental, sem dúvida no séc. XIX um dos que mais cristalizou carismaticamente o sentir e o pensar português face ao Absoluto e em magistral epistolografia, mas que deixou apressar o seu término terreno com dois tiros, e a dos místicos europeus – Ruysbroeck -, de grande profundidade e que influenciou não só os Irmãos da Vida Comum onde Erasmo foi educado, como também muitos portugueses que buscavam, acima de Roma ou das cerimónias, obediências e letras que matam, o Amor no coração, no próximo e em Deus, através da oração não só vocal e na consciencialização ou ligação directa ao Espírito.

Quando no Outono de 1980 há um novo afloramento da Renascença Portuguesa e da Águia, com a fundação da revista Nova Renascença (que se alongará por 19 anos e 73 números e que trará, por exemplo, do Brasil, da Índia e do Japão testemunhos vividos e na linha ecuménica e universalista que nos caracteriza), com alguns pensadores a congregarem-se (pelo menos na escrita para a revista) e a lançarem sementes valiosas, destacam-se fazendo a ponte com a Águia, no nº 1, Agostinho da Silva, Sant'Anna Dionísio (estes tendo sido da direcção da Águia, nas suas últimas séries) e Dalila Pereira da Costa, querida amiga e inspirada escritora portuense, ainda hoje viva...

Oiçamos então estes três amigos, que tão bem conheci e convivi: se para Agostinho a primeira Renascença procurara «um centro a Portugal e o encontrado num indefinível vivido, aquele a que José Marinho, em alargamento total, chamou insubstancial substante», e a segunda Renascença como «desejando definir a periferia portuguesa... aquela vida conversável, sempre renovada e aberta», agora confessa-nos um dos seus anseios ou idealismos de completa abolição ou ultrapassagem das fronteiras dos contrários ou opostos «gosto de imaginar uma terceira (...) em que periferia e centro se confundam, (…) em que o Deus que adoremos seja o de Tudo e Nada, sempre em nós, de nós, a nós, por nós, voltando, num perpétuo e momentâneo e parado mover-se de imanência e transcendência, como em simultâneas sístole e diástole: só então Portugal, por já não ser, será.»
Para Sant'Anna Dionísio, talvez o discípulo mais marcado por Leonardo, num texto sugestivamente intitulado "Instantes de mística catálise e de sibilina profecia", a Renascença Portuguesa «foi um movimento, poderemos talvez dizer, de carácter religioso, ao mesmo tempo hermético e ecuménico», no qual «não diremos que todos os que participaram da sua eclosão possuíssem a consciência clara dos imperativos e objectivos, digamos de ordem mística que os concitara a proclamar a certeza no advento de uma espécie de redenção (…) pois muitos seriam simples simpatizantes ou pacatos aderentes (...) Os verdadeiros focos de ardor místico, ou quase místico, seriam dois ou três vultos dotados de incontestável ardor apostólico: o nocturno vidente (...) e perseguidor incansável do fantasma da Saudade [1º Pascoaes], o vulto agigantado e loiro de wiking [2º Jaime Cortesão] (…) [e 3º Leonardo] misto de filósofo e de tribuno, (...) de palavra clara, inspirada, pronta...»

Já Dalila Pereira da Costa, no seu contributo (sobre o poema "Marânus", de Pascoaes), afirma que «o ultrapassamento, ou libertação, dos limites e condicionamentos do positivismo e racionalismo unívocos, realizado pela Renascença Portuguesa, nos mostrará e abrirá para nós, agora, o caminho a uma nova Descoberta portuguesa. A evocação profética e preparação para essa nova aventura, como descoberta no mundo transcendente do espírito, vem ao encontro de um facto dos mais importantes de nossos dias no pensamento ocidental: a valorização da experiência espiritual». Apela então à abertura ao Logos ou Razão Cósmica, para que o poeta profeta e clarividente seja capaz de perscrutar não só o psiquismo como chegar ao nível espiritual, numa vivência interior poética e transcendendo os limites da pessoa. Discerne lucidamente o ideal do progresso e do bem estar ilimitado como causador do círculo fechado delirante e infernal da sociedade em que vivemos, na qual a excessiva usufruição de bem estar material causa «uma atrofia das suas forças espirituais e do seu ideal de perfeição pessoal como auto-realização», forças (detidas «pelos filósofos pré-socráticos, poetas e taumaturgos, chamanes e yoguis dos nossos tempos e pelos santos») que devemos recuperar e nas quais predomina o Amor Conhecimento e que permitem a participação na Supra-Humanidade espiritual.
Realçar hoje esta assunção da experiência e da vivência espiritual interior, da meditação, da revelação interna, e da posterior partilha e colóquio (ao modo erasmiano, e de conversa convergente...) com outros seres e povos nas suas várias dimensões, parece-me então essencial para que as primícias pedagógicas, monadológicas e divinas da Renascença dêem mais frutos de ressurreição nas mulheres e homens que lêem estas florescências da Tradição Espiritual Portuguesa...

Oxalá possam então surgir mais noites claras, o sol a meio da noite (seja ela de injustiça, carência mas que provocam a aspiração, sede e transformação), bem como encontros e partilhas de seres, saberes e haveres que façam crescer a harmonia das pessoas e sociedades, a libertação e o voo de águias e a comunhão com a Verdade, os Mestres e Deus em cada vez mais seres, que se auto-conhecem como mónadas ou estrelas de cinco pontas, quais corpos espirituais ou as formas geométricas estilizadas por Leonardo da Vinci ou Cornélio Agripa, ou entre nós por Francisco de Holanda, Almada Negreiros e Fernando Pessoa.
E que Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo de Coimbra, entre vários outros da "Águia", tão pioneiramente viveram, intuíram e transmitiram, em certos modos que apelam ao nosso continuar e completar.
Assim se melhorará o nosso alinhamento, participação e comunhão na harmoniosa Unidade Cósmica e Divina, e na Tradição Espiritual Portuguesa...
Artigo publicado na Revista Águia
   


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Impresso em 29/3/2024 às 8:42

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