Fundação Maitreya
 
Olhando para a Natureza da Mente - 2ª Parte

de Sakya Trizin

em 24 Ago 2011

  A prática de olhar para a natureza da mente é chamada ‘meditação discernente ’. O primeiro requisito para praticar meditação discernente é que tenhamos uma concentração estável. Sem concentração, não podemos praticar meditação discernente. Primeiro precisamos de praticar concentração de modo a que a nossa mente esteja estável, sem pensamentos. Então, nessa base, podemos construir a prática de meditação discernente.


Há três partes na meditação discernente. A primeira parte é reconhecer a claridade da mente. Primeiro precisamos de analisar esta claridade um pouco mais. De acordo com os ensinamentos do Buda, não há ‘eu’ . Os agregados de forma física e factores mentais, mente e sentimentos, e por aí fora, tudo junto, a tudo isto nós ficamos agarrados como sendo o ‘eu’. Ficamos agarrados a esse ‘eu’ [mim]. Mas onde está esse eu? Se há um eu, tem de ser o nosso nome, o nosso corpo, ou a nossa mente. Mas o nosso nome é vazio, é algo que nos foi dado, poderia ser dado a qualquer outro, a qualquer outra coisa. Portanto o nosso nome é vazio, não é o eu. Dizemos ‘a nossa casa’; a casa não é ‘mim’, a casa não é ‘eu’. Dizemos ‘o meu carro’, ‘a minha casa’; há uma ligação, mas a casa não é ‘eu próprio’. Do mesmo modo, quando dizemos ‘o meu corpo, as minhas mãos, os meus pés’, o eu está noutro lugar, não é o corpo. Se tentarmos encontrar o eu interiormente, exteriormente, em qualquer outro lugar, não o encontraremos.

É o meu corpo, mas onde está o eu [meu] propriamente dito? Podemos olhar para a nossa cabeça, as nossas mãos, o nosso coração, mas o eu [meu] propriamente dito, onde está o eu [meu] propriamente dito? Se não se encontra em lado nenhum este eu ou meu, então onde está o verdadeiro dono, o eu próprio real? O ‘eu’ não é o corpo. Será que é então a mente? Mas se olharmos para a mente, vemos que ela se muda a todos os momentos. A mente no passado já passou, a mente no futuro ainda não surgiu, e a mente no presente, também ela, já passou. A mente presente está a mudar-se a todos os momentos. E mesmo assim dizemos ‘a minha mente’, do mesmo modo como dizemos ‘a minha casa’. A mente propriamente dita não é minha.

Eu próprio [mim], é algo diferente. Dizemos ‘é a minha mente, e é o meu corpo, é a minha casa, é o meu carro’, mas onde está o ‘mim’ propriamente dito? Não o conseguimos encontrar em lado nenhum. O ‘mim’ propriamente dito não é nem corpo, nem nome, nem mente, nem está dentro nem fora da mente, nem é criado por alguém mais. Não conseguimos encontrar o ‘mim’, o ‘eu próprio’.
E depois há os fenómenos que percepcionamos. Eles aparecem por causa das nossas propensões muito fortes. Não há realidade sólida nos objectos exteriores que vemos, nos sons que ouvimos, nas comidas que saboreamos. Todas estas, a nossa vida, as visões ou aparências que experienciamos, todas elas, não são reais. É só devido às nossas propensões muito fortes que estas coisas aparecem, tal como num sonho. Nos nossos sonhos vemos muitas coisas.
Quando vemos coisas bonitas, sentimo-nos muito felizes, como se na vida real. Podemos também ver coisas medonhas nos nossos sonhos, e acordamos assustados. Do mesmo modo, esta vida é como um sonho. Os objectos exteriores não existem verdadeiramente. Não há objectos, não há coisas, não há fenómenos por trás das formas, sons e sabores que experienciamos. Não há sujeito.

Todas estas, a nossa vida, as visões ou aparências que experienciamos, todas elas, não são reais. É só devido às nossas propensões muito fortes que estas coisas aparecem, tal como num sonho.

No que respeita à mente, se existir, onde está? Está dentro do corpo, fora do corpo, por entre o corpo? Qual é a parte do corpo que contém a mente? Se há uma mente, ela tem de ter uma forma. Que forma tem a mente? Redonda ou quadrada? Se existisse mesmo, teria de ter uma forma e uma cor, a nossa mente teria de ser branca, amarela, ou verde ou azul ou outra cor qualquer. Mas não conseguimos encontrar nenhuma cor nem forma. É só claridade.
Claridade no sentido em que não estamos mortos, ou que não estamos inconscientes. Estamos acordados, estamos vivos, e há uma continuidade da mente. A claridade da mente, a corrente da mente, continua, assim como continuámos desde sermos bebés até nos tornarmos adultos, e continuará até que acabar esta vida. Também continuou desde a nossa vida anterior, continua através desta vida, e continuará para a nossa próxima vida.

Poderíamos dizer que a claridade da mente é um aspecto da mente. Cada e todas as coisas têm características especiais que as distinguem das outras coisas. Por exemplo, as características especiais duma flor são que possui pétalas, uma cor particular, uma forma particular. É isso que faz dela uma flor. É diferente das outras coisas, é diferente de um microfone, ou duma mesa. As mesas não têm pétalas, tal como as flores; os microfones não têm a mesma cor ou forma tal como têm as flores.

Do mesmo modo, a característica especial da mente é claridade, a continuidade da claridade. Não podemos dizer que a mente existe, nem podemos dizer que ela não existe, porque há uma mente. É a mente que faz tudo. É a mente que faz as coisas correctas, é a mente que faz as coisas erradas. É a corrente, a continuidade da claridade que é a característica especial da mente. Portanto a primeira parte é reconhecer a claridade da mente.

O segundo aspecto da mente é o vazio. Precisamos de nos perguntar: onde está esta claridade? De onde surge? Para onde vai? De facto, é vazia, nunca surge, nunca está e não tem causa.

Se está, tem de residir dentro do corpo, ou fora do corpo, ou por entre o corpo; tem de ter uma forma ou cor particular, mas não tem. Então a natureza da mente é vácuo, é vazio. O aspecto vácuo é vazio. Vazio é outro aspecto da mente. A natureza da mente é o vazio, e a sua característica especial é claridade. O vazio é inseparável da claridade. A própria claridade é o vazio. O próprio vazio é claridade. Se procurarmos pela mente, não a encontraremos em qualquer local, em qualquer forma, em qualquer cor, em qualquer parte do corpo, portanto é vazio. Mas mesmo assim há uma mente. Não podemos dizer que não existe mente. Se não houver mente, quem é que pensa, quem experiencia a felicidade e o sofrimento?

Assim poderíamos dizer que a mente é uma combinação dos dois, claridade e vazio. Claridade e vazio são inseparáveis. Embora claridade e vazio pareçam contraditórios, são inseparáveis como o fogo e o seu calor. Não podemos separar o fogo do seu calor. O próprio fogo é calor, o calor é fogo, são inseparáveis. Do mesmo modo, claridade e vazio são inseparáveis, e juntos são a verdadeira natureza da mente.

A natureza da mente é o vazio, e a sua característica especial é claridade. O vazio é inseparável da claridade. A própria claridade é o vazio.

A mente tem três aspectos. A claridade é um aspecto, e um outro aspecto é o vazio. A combinação destes dois aspectos, a sua inseparabilidade, é a verdadeira natureza da mente. E assim, na fundação sólida de uma concentração muito clara, tentamos meditar sobre a claridade, vazio e a combinação dos dois. Eventualmente concluiremos que não há meditador, nem método de meditação, nem a própria meditação. Está tudo para além dos nossos conceitos mentais; todas as coisas que vemos, todas as coisas que fazemos, estão ao nível relativo. O nível relativo da mente não consegue compreender o absoluto. O absoluto está distante de todos os extremos, por exemplo, do conceito de existir ou não existir. As pessoas comuns nem sequer se incomodam em procurar o significado da vida, porque é que estamos aqui, porque é que temos de percorrer esta vida. Tomam as coisas como são. Mas as pessoas mais inteligentes, as escolas diferentes de pensamento, escolas budistas, escolas não budistas conceberam muitas, muitas filosofias diferentes.

Muitas culturas diferentes e muitas religiões diferentes tentaram descobrir o que é esta vida, qual o seu significado real, a razão de estarmos aqui, como tudo apareceu. E todas chegaram a conclusões diferentes. Têm todas algo a dizer como: “a vida é isto, é criada deste modo, ou daquele modo, ou o criador fê-lo, ou tudo é mente, projecções mentais”, e por aí fora. Contudo no budismo, há uma filosofia que difere das restantes. Considerada a escola mais elevada dentro da filosofia budista, Madhyamaka foi formulada pelo grande mestre Nagarjuna. O próprio Senhor Buda profetizou que, depois do seu mahaparinirvana, haveria um monge chamado Nagar que seria capaz de explicar a verdadeira filosofia, a verdadeira sabedoria dos ensinamentos do Buda.

A filosofia Madhyamaka de Nagarjuna é diferente das outras escolas, incluindo as escolas budistas, no sentido em que Nagarjuna não oferece uma definição da natureza da realidade. Ele divide a realidade em dois aspectos: a verdade relativa e a verdade absoluta.
Ele descreve como as coisas estão em ambos os aspectos. Ele olha para a verdade relativa, onde as pessoas comuns, que vivem uma vida comum, que experienciam os resultados de causas, que usufruem e que sofrem. E depois, quando o seu raciocínio muito claro examina o que é esta vida, o que são todas estas aparências, ele diferencia-se de todas as outras escolas ao não tirar conclusões.

O nível relativo da mente não consegue compreender o absoluto. O absoluto está distante de todos os extremos, por exemplo, do conceito de existir ou não existir.

Para ele, a verdadeira realidade, a verdade absoluta, está para além de qualquer descrição. Está para além de todos os extremos. Não podemos dizer que nada existe ou que não existe, ou ambos existe e não existe, ou que nem existe nem não existe. Todas estas considerações pertencem à realidade comum, ao nível relativo. Nada disto é aplicável ao nível absoluto. Não nega o nível relativo, e dá uma análise das suas componentes. Ele aceita haver surgimento interdependente , interdependente no sentido de tudo surgir devido a causas e condições. Nada, nem uma única coisa, existe independentemente, sem ser baseada em causas e condições. Tudo e cada coisa tem de ter as suas causas e condições de modo a existir.

Ao nível relativo, há surgimento interdependente. Se qualquer causa falhar, então o objecto não aparecerá. Tudo é dependente de causas e condições. Ao nível absoluto, há vácuo, vazio. Isto não tem o significado num sentido niilista, mas mais num sentido de estar longe de todas as descrições. Neste nível não podemos dizer que é assim, ou assado; são impossíveis de descrever; estão para além da nossa maneira de pensar corrente, para além desta rede dualística aonde estamos presos. Depois de meditar por um tempo, começamos a ter uma compreensão intelectual da verdadeira natureza da realidade e, através de meditação sustentada, obtemos gradualmente mais sabedoria, até que eventualmente realizamos a verdade última. Assim estaremos completamente libertos de todas as nossas propensões kármicas, e por aí fora. Então, como pode isto ser atingido? Como é que meditamos para obter sabedoria? Isto não acontece logo de seguida. É fácil dizer “a verdade última está longe de todos os extremos, está para além do pensamento, e por aí fora”. Mas como é que, na realidade, o experienciamos? De modo a realmente o fazer, nós como pessoas comuns, temos de seguir passo a passo.

Depois de meditar por um tempo, começamos a ter uma compreensão intelectual da verdadeira natureza da realidade e, através de meditação sustentada, obtemos gradualmente mais sabedoria, até que eventualmente realizamos a verdade última.

O primeiro passo é estabelecer todas as aparências exteriores como sendo mente. Como mencionámos anteriormente, tudo é mente. É a mente que cria todas as coisas boas, as coisas más, felicidade, sofrimento, tudo. Precisamos de estabelecer como mente todas as aparências exteriores. Vemos muitas citações nos sutras e nos ensinamentos dos grandes mestres em como a nossa vida actual, tudo o que experienciamos, é a nossa própria mente. E como conseguimos compreender que a nossa vida é mente? Existem muitos exemplos de como o realizar. Um exemplo importante é o do sonho. Nos nossos sonhos, temos muitas experiências e, enquanto sonhamos, parece-nos tudo tão real como nesta vida. Conseguimos ver cores, formas, tudo, e [o sonho] tem um efeito sobre a nossa mente. Se for um sonho feliz, nós apreciamo-lo, e a nossa mente fica feliz. Na verdade, não há diferença entre os nossos sonhos e a vida que vivemos. Somos nós que experienciamos os sonhos, e somos nós que experienciamos esta vida. Não há diferença entre o sonho e a vida actual. A única diferença é que a nossa vida normal é influenciada por propensões muito fortes enquanto os sonhos não são tão fortemente afectados por elas. Mas na realidade é tudo o mesmo. Então o primeiro passo é estabelecer tudo como [sendo] mente.

Assim, tudo é mente, tudo o que vemos, ouvimos, tudo o que saboreamos, tudo o que sentimos, tudo é mente. Quando a nossa mente está feliz, mesmo estando em condições precárias, sentimo-nos felizes. Mas se a nossa mente não está feliz, mesmo se as nossas circunstâncias forem favoráveis, não nos sentiremos felizes. É a mente que determina o modo como nos sentimos. Da mesma forma, um local pode ser um lugar muito feliz para uma pessoa, e pode ser um lugar muito infeliz para uma outra pessoa. Se ela realmente existisse exteriormente, então teria de provocar o mesmo sentimento a todas as pessoas. Se é um lugar feliz, então teria de ser assim para todos, e se é um lugar infeliz, então também devia fazer sentir infelizes a todos. Mas não é assim. As pessoas sentem de modo diferente. Cada pessoa experiencia-o diferentemente.

O segundo passo na descoberta da verdade última é estabelecer que todas as aparências são como um show mágico. Os mágicos usam certos ingredientes, ou certos mantras, para criar um show mágico, e até conjuram muitas coisas. Quando vemos todas estas coisas, parecem tão reais como esta vida. Do mesmo modo, quando as causas e condições apropriadas se satisfazem, as aparências mentais surgem. Se a mais pequena causa ou condição falhar, então a aparência mental não surge.
O terceiro passo é estabelecer que tudo é vazio de natureza própria, tudo é interdependente. Devido a estas causas, a estas condições, as coisas aparecem; mas na realidade tudo está para além de existir ou não existir. E então tentamos estabelecer que tudo é inexprimível. As coisas aparecem, nós experienciamos as coisas, mas é impossível descrever porque é que aparecem, porque é que as experienciamos. Tal como os bebés pequenos quando riem; eles devem ter uma razão para se rirem, de outro modo não o fariam. Mesmo assim a razão do seu riso é indescritível.

Então, para concluir, a verdadeira natureza da mente tem três aspectos: claridade, vazio e inseparabilidade dos dois. Vimos aqui alguns exemplos para cada um, mas há muitos, muitos mais. Ao relembrarmos estes exemplos, ficaremos cada vez mais familiarizados com eles, e a sabedoria surgirá gradualmente na nossa mente. É através desta sabedoria e pelo mérito acumulado pelos nossos esforços que atingiremos a iluminação última.

Tradução de José Carlos Rodrigues

Título original: ‘Looking into the Nature of the Mind’, Part 2, Melody of Dharma, nº6, 2011.

N.T. Insight meditation no original, que também pode ser traduzido por ‘meditação por realização’.
N.T. clarity of mind no original, que também pode ser traduzido por clareza da mente.
N.T. self no original, que também pode ser mantido como ‘self’, um inglesismo, na língua portuguesa.
N.T. ‘I’ no original, que em inglês se diferencia da expressão ‘self’. Mas como se optou por traduzir ‘self’ por ‘eu’, e não manter o inglesismo ‘self’ mesmo na língua portuguesa, causa uma certa dificuldade agora para diferenciar com uma nomenclatura diferente.
   


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