Fundação Maitreya
 
A Realização do Infinito

de Rabindranath Tagore

em 12 Jun 2013

  Na história do homem vemos em todos os lugares que o espírito de renúncia é a mais profunda realidade da alma humana. Quando a alma diz a respeito de qualquer coisa: “Eu não o quero, porque estou acima dela”, a alma está expressando a mais elevada verdade sobre si mesma. Quando a menina se torna grande demais para a sua boneca, quando percebe que em todos os aspectos é mais do que a sua boneca, ela a deixa de lado. Pelo próprio acto de possuir nós reconhecemos que somos maiores do que as coisas que possuímos. É uma total miséria ficarmos presos a coisas menores do que nós mesmos. Foi isso que Maitreyi sentiu quando seu marido lhe entregou suas propriedades na véspera de abandonar o lar. Ela perguntou: “Essas coisas materiais poderiam ajudar alguém a atingir o mais alto?” – ou, em outras palavras, “Elas são mais do que a minha alma é para mim?” Quando o marido lhe respondeu: “Elas a tornarão rica em posses mundanas”, Maitreyī disse imediatamente: “Então o que vou fazer com elas?” Apenas quando o homem de facto percebe o que são as suas posses, ele deixa de ter ilusões sobre elas. Com efeito, aí ele reconhece que a sua alma está muito acima dessas coisas, e torna-se livre da sua alma quando ultrapassa as suas posses. O progresso do homem no caminho da vida eterna passa através de uma série de renúncias.

Diz o Upanishad: “O homem se torna verdadeiro se nesta vida consegue apreender a Deus; caso contrário, sua vida se torna a maior calamidade”.

Todavia, de que natureza é esse alcançar a Deus? É evidente que o infinito não é como um objecto entre outros, um objecto que possa ser definitivamente classificado e conservado entre as nossas propriedades, ou ser usado como aliado que nos traga benefícios especiais na nossa política, nas nossas guerras, nos nossos negócios ou nas nossas competições sociais. Não podemos colocar o nosso Deus na mesma lista em que colocamos nossas casas de verão, nossos automóveis, ou nossa conta bancária, como tantas pessoas parecem desejar fazer.
Devemos procurar compreender o verdadeiro carácter do desejo que o homem sente quando a sua alma anseia por seu Deus. Consistiria esse desejo em acrescentar algo, ainda que de valor, às suas posses? De modo nenhum! Essa contínua acumulação de nossas propriedades é uma fatigante e infindável tarefa. Na realidade, quando a alma procura Deus, está procurando escapar definitivamente a esse contínuo colher e amontoar que jamais chega ao fim. Ela não está procurando um objecto a mais, e sim o nityo nityanam, o permanente em tudo aquilo que não permanece, o rasanam rasatamah, a mais alta e duradoura alegria, que unifica todas as alegrias. Por isso, quando o Upanishad nos ensina a realizar todas as coisas em Brahma, não está pedindo que procuremos algo mais ou que inventamos algo novo.

“Conheçam todas as coisas que existem no universo como envolvidas por Deus. Usufruam tudo o que é dado por ele, e não abriguem na mente a cobiça por riquezas que não vos pertencem”.
Quando perceberem que todas as coisas estão cheias com a sua presença e que tudo o que possuem é dom dele, então perceberão o infinito no finito, o doador nos dons. Aí reconhecerão que todos os factos da realidade encontram o seu verdadeiro significado na manifestação da verdade única, e que todas as suas posses só encontram o seu verdadeiro significado não em si mesmas, mas na relação que elas estabelecem com o infinito.
Não se pode dizer, portanto, que podemos encontrar Brahma da mesma forma que encontramos outros objectos. Não se trata de procurá-lo numa coisa de preferência a outra, ou num lugar em vez de qualquer outro. Não precisamos correr ao mercado para comprar nossa luz matutina; basta abrirmos os olhos e ela aí está. Da mesma forma, basta que nos entreguemos para perceber que Brahma está em todo o lugar.

Essa é a razão pela qual o Buda nos aconselhou que nos libertássemos do confinamento da vida do eu. Se não existisse nada de mais positivamente perfeito e satisfatório que pudesse ocupar o lugar do eu, tal conselho seria absolutamente sem sentido. Ninguém poderia considerar e muito menos se entusiasmar com o conselho de entregar tudo o que possui em troca de não ganhar absolutamente nada.
O nosso culto diário a Deus, portanto, não é realmente o processo em que gradualmente o adquirimos para nós, e sim o processo diário de nos entregarmos a ele, removendo todos os obstáculos à união e estendendo a consciência que dele temos na devoção e no serviço, na bondade e no amor.

Diz o Upanishad: “Percam-se inteiramente em Brahma como flecha que penetrou completamente no seu alvo”.
Assim estar consciente de ser totalmente envolvido por Brahma não é mero acto de concentração da mente. Deve ser a meta de toda da nossa vida. Em todos os nossos pensamentos e acções devemos estar conscientes do infinito. Deixemos que a realização dessa verdade se torne mais fácil em cada dia de nossa vida – a verdade de que ninguém poderia viver ou mover-se, caso a energia da alegria que tudo penetra não preenchesse o céu. Sintamos o ímpeto dessa energia infinita em todas as nossas acções e fiquemos felizes.

Poderia objectar que o infinito está além do nosso alcance, de modo que para nós é como se fosse nada. De facto, se a palavra “alcançar” implica qualquer ideia de posse, então devemos admitir que o infinito é inatingível. Contudo, precisamos ter em mente que o mais elevado prazer do homem não está em ter, mas em alcançar, que é, ao mesmo tempo, não alcançar. Nossos prazeres físicos não deixam margem para o não-realizado. Tal como o satélite morto da terra, eles têm pouca atmosfera ao seu redor. Quando tomamos alimento satisfazemos a nossa fome, realizamos um acto de posse completo. Enquanto a fome não é satisfeita, comer é um prazer, pois então o nosso gosto em comer toca o infinito em cada ponto. Todavia, quando o nosso apetite é satisfeito ou, noutras palavras, quando o nosso desejo de comer atinge o fim do estágio da sua não realização, ele também atinge o fim do seu prazer.

Em todos os nossos prazeres intelectuais a margem é mais larga e o limite fica mais distante. Em todo nosso amor mais profundo alcançar e não alcançar sempre correm em paralelo. Numa das nossas canções vishnavas a amante diz ao amado: “sinto-me como se tivesse contemplado a beleza do seu rosto desde o meu nascimento, e ainda assim meus olhos continuam famintos; sinto-me como se o tivesse estreitado junto ao meu coração durante milhões de anos, e ainda assim o meu coração não está satisfeito” Isto deixa claro que o que procuramos nos nossos prazeres é realmente o infinito. Nosso desejo de sermos ricos não é um desejo de obter determinada soma de dinheiro, mas é indefinido, e os nossos mais fugazes prazeres são apenas momentâneos toques do eterno. A tragédia humana da vida humana reside nas nossas vãs tentativas de esticar os limites das coisas que nunca se podem tornar ilimitadas, de alcançar o infinito absurdamente acrescentando degraus e degraus na escadaria do infinito.

A partir disso torna-se evidente que o real desejo da nossa alma é ir além de todas as nossas posses. Cercada de coisas que pode tocar e sentir, ela grita: “Estou cansada de alcançar! Ah, onde se encontra aquele que jamais pode ser alcançado?”

Na história do homem vemos em todos os lugares que o espírito de renúncia é a mais profunda realidade da alma humana. Quando a alma diz a respeito de qualquer coisa: “Eu não o quero, porque estou acima dela”, a lama está expressando a mais elevada verdade sobre si mesma. Quando a menina se torna grande demais para a sua boneca, quando percebe que em todos os aspectos é mais do que a sua boneca, ela a deixa de lado. Pelo próprio acto de possuir nós reconhecemos que somos maiores do que as coisas que possuímos. É uma total miséria ficarmos presos a coisas menores do que nós mesmos. Foi isso que Maitreyi sentiu quando seu marido lhe entregou suas propriedades na véspera de abandonar o lar. Ela perguntou: “Essas coisas materiais poderiam ajudar alguém a atingir o mais alto?” – ou, em outras palavras, “Elas são mais do que a minha alma é para mim?” Quando o marido lhe respondeu: “Elas a tornarão rica em posses mundanas”, Maitreyī disse imediatamente: “Então o que vou fazer com elas?” Apenas quando o homem de facto percebe o que são as suas posses, ele deixa de ter ilusões sobre elas. Com efeito, aí ele reconhece que a sua alma está muito acima dessas coisas, e torna-se livre da sua alma quando ultrapassa as suas posses. O progresso do homem no caminho da vida eterna passa através de uma série de renúncias.

Que não possamos absolutamente possuir o ser infinito não é mera proposição intelectual. Isso deve ser experienciado, e tal experiência é êxtase. O pássaro, enquanto voa no céu, a cada batida das asas experimenta que o céu é sem limites e que suas asas jamais podem levá-lo para além do céu. Nisso reside a sua alegria. Na gaiola o céu é limitado? Pode até ser o suficiente para os propósitos da vida do pássaro, mas não mais do que o necessário. O pássaro não pode regozijar-se dentro dos limites do necessário. Ele deve sentir que o que possui é incomensuravelmente mais do que aquilo que nunca poderia desejar ou compreender, e só então pode sentir-se feliz.

Da mesma forma, a nossa alma precisa vagar no infinito, sentindo a cada momento que a sua alegria suprema reside na sensação de jamais poder chegar ao fim da sua realização.
A felicidade duradoura do homem não está em alcançar alguma coisa, mas em entregar-se àquilo que é maior do que ele próprio, a ideias que são mais amplas que a sua vida individual, ao ideal da pátria, da humanidade, de Deus. Esses ideais tornam mais fácil para ele abandonar tudo o que possui, sem exceptuar a sua própria vida. Sua existência é miserável e sórdida até que encontre algum grande ideal que realmente possa requisitá-lo inteiro, que possa libertá-lo de todo o apego às suas posses. O Buda e Jesus, e todos os nossos grandes profetas, representam esses grandes ideais. Eles colocam à nossa frente oportunidades de nos entregarmos inteiramente. Quando estendem a sua divina bandeja para esmolas, nos sentimos que não temos nada para dar, e descobrimos então que a nossa mais verdadeira alegria e libertação está em nos entregarmos, pois isso significa unimo-nos completamente com o infinito.

O homem não é completo; ele ainda está para ser. E ele é pequeno no que ele é, e se pudéssemos concebê-lo detendo-se aí para sempre, teríamos uma ideia do mais terrível inferno que se possa imaginar. No seu estar-para-ser ele é infinito, e aí se encontram o seu céu e a sua libertação. Naquilo que já é, ocupa-se a cada momento com o que pode obter e fazer; naquilo que está-para-ser, acha-se faminto de algo que é mais do que pode ser obtido, algo que nunca pode perder porque jamais o possuiu. O pólo finito da nossa existência encontra-se no mundo da necessidade. Nele o homem vai em busca de alimento para viver e de roupas para se aquecer. Nesse domínio – o domínio da natureza – sua função é obter coisas. O homem natural ocupa-se em aumentar as suas posses.
Esse acto de obter, porém, é parcial, e limita-se às necessidades do homem. Podemos ter uma coisa apenas até ao limite das nossas necessidades, exactamente como o vaso, que só pode conter água dentro dos limites no seu vazio. Nossa relação com o alimento está no comer, e a nossa relação com uma casa está apenas em habitá-la. Dizemos que uma coisa é benéfica quando preenche apenas alguma necessidade especial que temos. O obter, portanto, é sempre um obter parcial, e nunca pode ser de outro modo. A ânsia de adquirir pertence ao nosso ser finito.

Contudo, o lado da nossa existência que se direcciona ao infinito não procura riqueza, mas liberdade e alegria. Nele cessa o reino da necessidade, e nele a nossa função não é a de obter, mas ser. Ser o quê? Ser uno com Brahma, pois o domínio do infinito é o domínio da unidade. É por isso que diz o Upanishad: “Se o homem apreende a Deus, torna-se verdadeiro”. Aqui se trata de tornar-se, e não de ter mais. As palavras não se avolumam quando conhecemos o seu significado; elas se tornam verdadeiras, tornando-se unas com a ideia.

Embora o Ocidente tenha aceite como seu mestre aquele que audaciosamente proclamou a sua unidade com o Pai – e que exortou os seus seguidores a serem perfeitos como Deus -, nunca se reconciliou com essa ideia da nossa unidade com o ser infinito. O Ocidente condena, como algo blasfemo, qualquer insinuação de que o homem se torne Deus. A ideia de uma transcendência absoluta não foi certamente o que Cristo anunciou, nem é essa a ideia dos místicos cristãos, mas parece ser a ideia que se tornou popular no Ocidente cristão.

A mais elevada sabedoria do Oriente, contudo, sustenta que a função da nossa alma não é a de ganhar a Deus ou de utilizá-lo para qualquer propósito material específico. Tudo a que podemos aspirar é tão-somente nos tornarmos cada vez mais unos com Deus. No domínio da natureza, que é o domínio da diversidade, crescemos por meio da aquisição; no mundo espiritual, que é o domínio da unidade, crescemos através da perda de nós mesmos, através da união. Ganhar uma coisa, como já dissemos, é por sua natureza algo de parcial, algo que se limita apenas à satisfação de uma determinada necessidade; mas ser é algo de completo: pertence à nossa totalidade, e brota não de uma necessidade qualquer, mas da nossa afinidade com o infinito, que é o princípio de perfeição que trazemos na nossa alma.

Sim, nós devemo-nos tornar Brahma. Não devemos voltar atrás nessa afirmação. Nossa existência fica sem sentido se não podemos esperar consumar a mais alta perfeição que existe. Se temos uma meta que jamais possa ser alcançada, então de modo nenhum ela é uma meta.
Todavia, podemos então dizer que não há diferença entre Brahma e a nossa alma individual? Ao contrário, a diferença é óbvia. Ela existe, ainda que possamos chamá-la de ilusão ou de ignorância, ou de qualquer outro nome que lhe queiramos dar. Podemos oferecer explicações, mas não podemos explicá-la completamente. Até mesmo a ilusão é verdade como ilusão.
Brahma é Brahma. Ele é o infinito ideal da perfeição. Nós porém, não somos o que realmente somos; estamos sempre para nos tornar verdadeiros, até nos tornarmos Brahma. Existe o eterno jogo do amor na relação entre o ser e o tornar-se, e na profundidade desse mistério está a fonte de toda a verdade e beleza que sustenta a interminável marcha da criação.

Na música da torrente que se precipita ressoa a alegre certeza: “Eu me tornarei o mar”. Isso não é vã presunção, mas a verdadeira humildade, porque é a verdade. O rio não tem outra alternativa. De ambos os lados de suas margens ele passa por numerosos campos e florestas, aldeias e cidades: pode servi-los de vários modos, lavando-os, alimentando-os e carregando os seus produtos de um lugar para outro. Contudo, o rio pode ter apenas um relacionamento parcial com eles e, por mais tempo que se detenha entre eles, permanece separado, pois não pode transformar-se em cidade ou floresta.

O rio, todavia, pode a acaba tornando-se o mar. A água menor que se move tem a sua afinidade com a grande e imóvel água do oceano. Precipitando-se sempre para a frente, ela move-se através de mil objectos, e seu movimento encontra a sua finalidade quando alcança o mar.
O rio pode tornar-se o mar, mas nunca pode fazer com que o mar se torne uma parte ou parcela de si próprio. Se, por algum acaso, ele cerca alguma extensão de água e pretende ter transformado o mar numa parte de si próprio, sabemos logo que não é assim, pois percebemos que a sua corrente ainda continua procurando repouso no grande oceano, ao qual jamais pode impor fronteiras.

Igualmente acontece com a nossa alma: ela só pode tornar-se Brahma, assim como o rio só pode tornar-se o mar. A alma toca todas as coisas num de seus pontos, e logo as abandona para seguir em frente, mas jamais pode abandonar Brahma para seguir mais além dele. Uma vez que a nossa alma perceba que o seu objectivo último é repousar em Brahma, todos os seus movimentos adquirem propósito. É esse oceano de repouso infinito que proporciona significado para as infindáveis actividades. É essa perfeição de ser que empresta à imperfeição do tornar-se a qualidade da beleza que encontra a sua expressão em toda poesia, drama e arte.

É preciso haver uma ideia completa para animar um poema. Cada sentença do poema toca essa ideia. Quando o leitor percebe essa ideia que tudo penetra à medida que vai lendo, então a leitura do poema se enche de alegria para ele. Então cada parte do poema se torna radiantemente significativa a partir da luz do conjunto. Contudo, se o poema continua interminavelmente, sem jamais expressar a ideia do conjunto, apenas lançando imagens desconexas, ainda que belas, o poema se torna extremamente cansativo e sem proveito. O progresso da nossa alma é como um poema perfeito. Ela tem uma ideia infinita que, uma vez percebida, torna todos os movimentos cheios de significado e alegria. Todavia, se destacamos seus movimentos dessa ideia última, se não vemos o repouso infinito, mas apenas o infindável movimento, então a existência se apresenta como mal monstruoso, que se precipita impetuosamente em direcção a uma infindável falta de objectivo.

Lembro-me de que em nossa infância tivemos um professor que nos fazia aprender de cor todo o livro de gramática do sânscrito, que é escrito em símbolos, mas não nos explicava o que significavam. A cada dia labutávamos em frente, sem a menor noção da meta a que chegaríamos. Assim, em relação a nossas lições, ficávamos na posição do pessimista que só conta as fatigantes actividades do mundo, mas não é capaz de ver o infinito repouso da perfeição, do qual essas actividades ganham o seu equilíbrio a cada momento, em absoluta adequação e harmonia. Quando contemplamos a existência desse modo, perdemos toda a alegria, porque assim não vemos a verdade. Vemos as gesticulações do dançarino e imaginamos que elas são governadas pela implacável tirania do acaso, pois estamos surdos à música eterna que torna cada um desses gestos inevitavelmente espontâneo e belo. Esses movimentos estão sempre crescendo em meio a essa música perfeita, tornando-se unos com ela, a cada passo dedicando a essa melodia as multidões de formas que eles continuam criando.

Esta é a verdade da nossa alma, e também a sua alegria: ela deve estar sempre crescendo dentro de Brahma; todos os seus movimentos deveriam ser modelados por essa ideia última, e todas as suas criações deveriam ser entregues como oferendas ao supremo espírito da perfeição.
Há uma passagem notável nos Upanishads: “Eu não penso que o conheça bem, ou que o conheça, ou mesmo que não o conheça”.
Jamais podemos conhecer o ser infinito através do processo do conhecimento. Contudo, se ele estiver completamente além do nosso alcance, então será absolutamente nada para nós. A verdade é que nós não o conhecemos, embora o conheçamos. Isto é explicado noutra passagem dos Upanishads: “De Brahma as palavras voltam confundidas, e também o pensamento, mas aquele que o conhece pela alegria que dele provém, fica livre de todos os medos”.
O conhecimento intelectual é parcial, porque o nosso intelecto é instrumento, apenas uma parte de nós; pode dar-nos informação sobre coisas que podem ser divididas e analisadas, e cujas propriedades podem ser classificadas, parte por parte. Brahma, porém, é perfeito, e o conhecimento, que é parcial, jamais pode ser um conhecimento dele.

Mas Brahma pode ser conhecido pela alegria e pelo amor. Com efeito, a alegria é conhecimento na sua plenitude, é conhecer com a totalidade do nosso ser. O intelecto nos matem à parte das coisas que devem ser conhecidas, enquanto o amor conhece o seu objecto através da fusão. Tal conhecimento é imediato e não admite dúvida. É o mesmo que conhecermo-nos a nós mesmos, embora mais intensamente. Portanto, como dizem os Upanishads, a mente não consegue jamais conhecer Brahma, nem as palavras podem jamais descrevê-lo. Brahma só pode ser conhecido por nossa alma, por meio da sua alegria nele, por meio do seu amor. Ou, noutras palavras, só podemos entrar em relação com Brahma por meio da união – união de todo o nosso ser. Precisamos estar unidos com o nosso Pai, e precisamos ser perfeitos como ele é.

Todavia, como pode isso acontecer? Não pode haver graus de perfeição infinita. Não podemos crescer pouco a pouco em Brahma. Ele é o uno absoluto, e nele não pode haver mais ou menos.
Na verdade, a realização da paramātman, a alma suprema, dentro da nossa antarātman, a nossa alma individual interior, reside num estado de absoluta completude. Não podemos pensá-la como não-existente e como se dependesse dos nossos limitados poderes para a sua gradual construção. Se a nossa relação com o divino fosse apenas uma coisa feita por nós mesmos, como poderíamos confiara nele como verdadeira, e como poderia ela nos fornecer sustentação?

Sim, devemos reconhecer que temos dentro de nós aquilo que o tempo e o espaço deixam de governar e onde os elos da evolução imergem na unidade. Nessa perpétua moradia do ātman, a alma, a revelação de paramātman, a alma suprema, já está completa. Por isso dizem os Upanishads: “Aquele que conhece Brahma, o verdadeiro, o oniconsciente e o infinito como que escondido nas profundidades da alma, que é o supremo céu (o céu interior da consciência), frui de todos os objectos do desejo em união com Brahma, que tudo conhece”.

A união já está consumada. Paramātman, a alma suprema, escolheu essa alma como sua, como noiva, e o matrimónio já foi consumado. O solene mantram já foi pronunciado: “Que o teu coração seja exactamente como o meu coração”. Nesse matrimónio não há lugar para que a evolução actue como mestre de cerimónia. O eshah, que só pode ser descrito como Este, a presença imediata e sem nome, está sempre aqui, no nosso mais íntimo ser. “Esse eshah, ou Este, é o supremo fim do outro este”; “esse Este é o supremo tesouro do outro este”; “esse Este é a suprema habitação do outro este”; “esse Este é a suprema alegria do outro este”. Tudo isso porque o matrimónio do amor supremo foi consumado no tempo sem tempo. Agora se realiza o infindável lila, o jogo do amor. Aquele que foi ganho na eternidade agora é perseguido no tempo e no espaço, em meio a alegrias e tristezas, neste mundo e nos mundos do além. Quando a alma-noiva compreende bem isso, o seu coração fica cheio de felicidade e permanece em repouso.

Como um rio, ela sabe que já alcançou o oceano da sua plenitude num extremo do seu ser, e no outro ela sempre o está alcançando; num extremo há o eterno repouso e plenitude, no outro incessante movimento e mudança. Quando ela reconhece que ambos os extremos estão inseparavelmente ligados, então reconhece o mundo como o seu próprio lar, pelo facto de reconhecer o senhor do mundo como o seu próprio senhor. Então todos os seus serviços de amor, todos os sofrimentos e tribulações da vida vêm a ela como desafios triunfalmente suportados para demonstrar a força do seu amor, sorridente para ganhar a aposta feita pelo seu amante. Todavia, enquanto permanece obstinadamente no escuro, enquanto não levanta o seu véu, ela não reconhece o seu amante e apenas conhece o mundo dissociado dele, servindo apenas como serviçal, quando por direito poderia reinar como rainha; ela se agita em dúvidas e chora de tristeza e desânimo. Caminha de fome, em fome, de sofrimento em sofrimento, de medo em medo.

Jamais poderei esquecer o trecho de uma canção que certa vez escutei ao raiar da aurora, no meio do vozerio da multidão reunida na véspera de uma festa. “Barqueiro, atravessa-me até à outra margem!”

Na azáfama de todo o nosso trabalho ergue-se a súplica: “Leva-me até à outra margem!”. Na Índia, enquanto dirige a sua carroça, o carroceiro canta: “Leva-me até à outra margem!” O vendedor ambulante negoceia suas mercadorias com seus clientes e canta: “Leva-me até à outra margem!”
O que significa esta súplica? Nós sentimos que não alcançamos a nossa meta; sabemos que com todos os nossos afãs e fadigas não chegamos ao fim, não atingimos o nosso objectivo. Como a criança insatisfeita com seus brinquedos, o nosso coração grita: Isso não, isso não”. Mas o que seria a outra coisa? Onde fica a outra margem?

Seria alguma coisa diferente daquilo que já temos? Seria algum lugar diferente daquele em que vivemos? Seria descansar de todos os nossos trabalhos, ficarmos livres de todas as responsabilidades da vida?

Não. No próprio coração de nossas actividades estamos procurando o nosso fim. Clamamos pela travessia, mesmo onde nos encontramos. Assim, enquanto os nossos lábios pronunciam a súplica para sermos levados à outra margem, as nossas mãos laboriosas jamais se entregam à preguiça.
Na verdade, oh tu, oceano de alegria, em ti esta margem e a outra margem são uma só e a mesma coisa. Quando chamo esta margem de minha, a outra permanece distante; quando se me escapa o senso dessa plenitude que está em mim, o meu coração incessantemente clama pela outra margem. Esta minha margem e aquela outra esperam reconciliar-se plenamente no teu amor.
Este meu “eu” se afadiga noite e dia, suspirando por um lar que ele reconheça como seu. Ah, seus sofrimentos não chegarão ao fim enquanto ele não for capaz de dizer que este lar é teu.

Entrementes, continuará lutando, e o seu coração estará sempre clamando: “Barqueiro, atravessa-me até à outra margem!” Quando este meu lar se tornar teu, no mesmo instante ele será levado à outra margem, ainda que seus antigos muros o envolvam. Este “eu” não descansa. Ele trabalha por um ganho que jamais poderá ser assimilado ao seu espírito, que jamais poderá conter e reter. Nos seus esforços para estreitar nos seus próprios braços aquilo que é para todos, ele fere os outros. Fere-se a si mesmo, e clama: “Leva-me até à outra margem!” Todavia, logo que consegue dizer: “Todo o meu trabalho te pertence”, embora tudo permaneça igual, ele é levado para a outra margem.

Onde posso encontrar-me contigo, senão neste meu lar entregue a ti? Onde me poderei unir a ti, senão neste meu trabalho transformado em teu trabalho? Se eu abandonar o meu lar, jamais, jamais alcançarei o teu lar; se eu parar o meu trabalho, jamais poderei unir-me a ti em teu trabalho. Sim, porque tu habitas em mim e eu em ti. Tu sem mim e eu sem ti nada somos.
Por isso, dentro do nosso lar e em meio ao nosso trabalho eleva-se a súplica: “leva-me até à outra margem!” Pois aqui se agita o mar, e aqui mesmo se encontra a outra margem, esperando ser alcançada. Sim, aqui se encontra este presente eterno, e não longe, nem em qualquer outro lugar.
Excerto do livro Sadhana - O Caminho da Realização
   


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Impresso em 25/4/2024 às 5:07

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