Fundação Maitreya
 
Ser Ninguém

de Ajahn Sumedho

em 01 Mar 2014

  Tentem reparar nos pequenos fins da vida dando particular atenção ao fim da expiração. Desta maneira, na vida diária, podemos reparar nos pequenos fins tão comuns, que ninguém nota. Tenho descoberto que esta prática é uma mais-valia, pois é uma forma de reparar na natureza mutável do reino condicionado no qual vivemos o nosso dia-a-dia. Tanto quanto percebo, estes são os estados mentais normais que o Buddha apontava e não os estados de concentração sobre-desenvolvidos.No primeiro ano da minha prática, estava por minha conta e conseguia alcançar estados mentais de concentração elevada, dos quais gostava muito. Depois fui para Wat Pah Pong (Tailândia), onde a ênfase era baseada em rotinas e viver de acordo com a disciplina do Vinaya. Ali tínhamos de ir à ronda da mendicância todas as manhãs, e fazer os cânticos da manhã e os cânticos da noite todos os dias. Se somos novos e saudáveis, então é esperado que se vá a muitas e longas rondas da mendicância - havia também pequenos percursos que os monges mais velhos e frágeis podiam fazer.

Nesses dias, eu era muito vigoroso, e então participava sempre nessas extensas rondas da mendicância, regressando assim cansado. Ao chegarmos tínhamos então a refeição e à tarde havia tarefas para fazer. Não era possível, sob essas condições, permanecer num estado concentrado. A maior parte do dia ficava tomada pelas rotinas diárias.

Cansei-me de tudo isso e fui procurar o Luang Por Chah (Ajahn Chah) e disse-lhe: “Não consigo meditar aqui!” e ele começou a rir-se de mim e a dizer a todos que “o Sumedho não consegue meditar aqui!” Eu estava a ver a meditação como sendo essa experiência muito especial que tive e gostei muito; Luang Por Chah estava obviamente a mostrar-me que as rotinas diárias - o acordar, a ronda da mendicância e as tarefas - tudo isto servia para praticar a plena atenção. Ele não me pareceu, de todo, preocupado em apoiar a minha vontade de não fazer todas as pequenas tarefas diárias, motivado pela privação das fortes experiências sensoriais e, portanto, acabei por me conformar e aprender a meditar na comum e rotineira vida diária. Porém, a médio prazo, isso tornou-se muito útil.

A vida nem sempre era como eu queria, pois normalmente queremos algo especial: adoramos ter fantásticas experiências de cor, maravilhosas realizações multicoloridas e incríveis momentos de felicidade, êxtase e arrebatamento – não apenas estar feliz e calmo mas sim estar para lá do céu!

Mas, reflectindo na vida nesta forma humana - é assim mesmo - trata-se de termos a capacidade de nos sentarmos pacificamente e ficarmos contentes com aquilo que temos; é isso que faz com que a nossa vida seja uma experiência quotidiana alegre e não de sofrimento. E é deste modo que a maior parte da nossa vida pode ser vivida – não se pode viver em estados de euforia e êxtase a lavar pratos, não é? Costumava ler sobre as vidas dos santos que ficavam tão arrebatados em êxtases que não podiam fazer nada num nível mais prático. Ainda que o sangue fluísse das suas palmas e pudessem fazer as façanhas que fariam com que as pessoas de fé ficassem pasmadas só de olhar, no que toca a coisas práticas ou realistas, eram bastante incapazes.

E apesar de tudo, quando contemplamos a disciplina do Vinaya em si mesma, vemos que ela é um treino em vigilância. É a vigilância que deve estar presente quando fabricamos os mantos, recolhemos as ofertas de alimentos, comemos ou tomamos conta do kuti (abrigo), e que nos indica o que fazer nesta ou naquela situação. É um conselho muito prático sobre a vida diária de um bhikkhu. Um dia vulgar na vida de Bhikkhu Sumedho não é explodir em êxtase mas sim acordar e ir à casa-de-banho, tomar banho, colocar o manto, fazer isto e aquilo; é somente estar vigilante enquanto estamos vivos nesta forma e aprender a despertar para o modo natural das coisas, despertar para o Dhamma.

É por isso que quando contemplamos a cessação não procuramos o fim do universo, mas apenas a exalação da respiração, ou o final do dia, ou o fim do pensamento, ou o fim do sentimento. Dar atenção a isto significa que prestamos atenção ao fluxo da vida – temos mesmo que reparar na maneira como este fluxo é, em vez de esperar por uma fantástica experiência de luzes maravilhosas descendo sobre nós, fazendo zapping ou outra coisa do género.

Agora, contemplem apenas a respiração normal do corpo. Irão reparar se estão a inspirar; é fácil concentrarmo-nos nisso. Quando enchemos os pulmões, temos uma sensação de crescimento, desenvolvimento e força. Quando dizemos que alguém está “inchado de orgulho” então provavelmente está a inspirar. É difícil sentir-se inchado enquanto se expira. Expanda o seu peito e terá a sensação de ser alguém grandioso e poderoso. Quando comecei a prestar atenção à expiração, a minha mente vagueava; expirar não me pareceu tão importante como inalar – exalamos só para chegar à próxima inspiração.

Reflictamos: podemos observar a respiração, mas o que é aquele que observa? O que é isso que observa e conhece a inspiração e a expiração – não é a respiração, pois não? Podemos observar o pânico que surge quando tentamos respirar e não conseguimos; mas o observador, aquele que sabe, não é uma emoção, não é o ataque de pânico, não é expiração ou inspiração. Então, o nosso refúgio no Buddha é ser esse saber; ser a testemunha em vez de ser a emoção, a respiração ou o corpo.

Com o som do silêncio, algumas pessoas ouvem flutuações de um som ou um som de fundo contínuo. Então podemos contemplar esse som - dar-lhe atenção - conseguem reparar nele se puserem os dedos nos ouvidos? Conseguem ouvi-lo num lugar onde alguém está a usar uma moto-serra? E enquanto fazem exercícios? Ou quando se encontram num estado emocional frágil? Podem usar este som do silêncio como algo que vos recorda que devem voltar a vossa atenção e reparar nele – porque está sempre presente aqui e agora. E aí está “aquilo que” presta atenção.

Existe na mente o desejo de lhe chamar algo, de ter um nome para isso, tê-lo listado como uma realização ou projectar algo sobre isso. Reparem na tendência em querer torná-lo em algo. Alguém disse que é provavelmente o som do sangue a circular no ouvido, outros chamam-lhe o “som cósmico”, “a ponte com o Divino.” Isto soa melhor que “o sangue no ouvido.” Pode ser o som do Cosmos ou até pode ser que tenha uma doença no ouvido. Mas não tem que ser nada; é aquilo que é, é “como é.” O que quer que seja, pode ser usado como reflexão porque quando está presente, não existe o sentido de si próprio, existe vigilância, existe a capacidade de reflectir.

É mais como um caminho a direito sobre o qual podemos andar, e que não nos deixa desequilibrar. É algo que pode ser usado para o nosso estado consciente na vida diária, enquanto vestimos o manto, escovamos os dentes, fechamos uma porta, quando entramos na sala de meditação ou quando nos sentamos. Muito da vida diária é apenas “normal” porque ansiamos por aquilo que consideramos serem as coisas importantes da vida - como por exemplo a meditação. Assim, caminhar de onde se vive até à sala de meditação pode ser uma experiência completamente descuidada – apenas um hábito – clop, clop, clop, pum bang! Então sentamo-nos por uma hora, tentando ser vigilantes.

Deste modo, começamos a perceber uma maneira de estar vigilante, de trazer a vigilância para as actividades rotineiras e para as experiências da vida. Tenho uma pequena imagem no meu quarto - à qual sou muito afeiçoado - de um velho homem com uma caneca de café na sua mão, olhando pela janela para um jardim inglês, enquanto chove. O título da imagem é “Esperando.” É assim que penso em mim: um velho homem com a caneca do café, sentado na janela, esperando, esperando... observando a chuva, o sol ou outra coisa. Não vejo uma imagem depressiva mas antes uma imagem pacífica. Esta vida é apenas sobre esperar, não é? Esperamos o tempo todo – e então reparamos nisso. Não esperamos por alguma coisa em particular mas podemos simplesmente esperar. Então respondemos às coisas da vida, ao momento do dia, aos deveres, às coisas em movimento e mudando, como a sociedade em que estamos. Essa resposta não vem da força do hábito, da ganância, ódio ou ilusão mas é a resposta da sabedoria e atenção.

Quantos de vós sentem que têm uma missão na vida? Algo que têm que realizar, um certo tipo de tarefa importante que vos foi atribuída por Deus, pelo destino ou algo. As pessoas são frequentemente apanhadas nesse ponto de vista de serem alguém com uma missão. Quem consegue estar presente com as coisas como elas são, tal como o corpo que cresce, fica velho e morre, respira e é consciente? Podemos praticar, viver dentro dos preceitos morais, fazer o bem, responder às necessidades da vida com plena atenção e sabedoria – mas não existe alguém que tenha que fazer alguma coisa. Não existe alguém com uma missão, ninguém especial; não estamos a fazer uma pessoa, ou um santo, ou um avatar, um tulku ou um messias, ou Maitreya. Mesmo que pensemos: “não sou ninguém”, mesmo “sendo ninguém” é ser alguém nesta vida, não é? Podemos sentir-nos orgulhosos de “sermos ninguém” tal como “sermos alguém” e estar ilusoriamente apegados a “ser ninguém”. Mas independentemente daquilo em que acreditamos, que somos ninguém ou alguém, que temos uma missão, que somos um estorvo e um peso para o mundo, ou como nos vemos a nós mesmos, então o saber estará lá para ver a cessação de tal percepção.

As percepções aparecem e desaparecem, não é? “Sou alguém, sou uma pessoa importante na vida”: isso começa e termina na mente. Repare no finalizar de “ser alguém importante,” ou de “não ser ninguém” ou qualquer outra coisa – tudo acaba, não é? Tudo o que surge, cessa e com essa consciência não nos agarramos à ideia de sermos alguém ou ninguém. É o fim de toda essa massa de sofrimento – de ter que desenvolver algo, tornar-se alguém, mudar alguma coisa, fazer com que tudo esteja no sítio certo, livrar-se dos obstáculos interiores ou salvar o mundo. Mesmo os melhores ideais, os melhores pensamentos podem ser vistos como dhammas que surgem e cessam na mente.

Podemos pensar que isto é uma filosofia estéril sobre a vida porque existe muita emoção e sentimento em ser-se alguém que vai salvar todos os seres sencientes. As pessoas com auto-sacrifício, que têm missões, que ajudam os outros e que têm algo importante a realizar, são uma inspiração. Mas quando observamos isso sob o Dhamma, vemos as limitações das aspirações e a sua cessação. Existe o Dhamma de tais aspirações e acções, em vez de alguém que tem que se tornar em algo ou fazer alguma coisa. Toda a ilusão é abandonada e o que sobra é a pureza da mente. Então a resposta à experiência vem da sabedoria e pureza em vez das convicções pessoais e missões com o seu sentido de si mesmo e dos outros, e todas as complicações que advêm de todo esse padrão ilusório.

Podemos confiar nisto? Podemos confiar em largar tudo, cessar, não ser ninguém, não ter qualquer missão, não ter que se tornar em coisa alguma? Conseguimos confiar nisso ou sentimos que é assustador, árido ou depressivo? Talvez queiramos mesmo uma inspiração. “Diga-me que tudo está bem; diga-me que gosta de mim, que o que faço está correcto e que o Budismo não é uma religião egoísta onde nos tornamos iluminados para o nosso próprio proveito; diga-me que o Budismo está aqui para salvar todos os seres vivos. É isso que você vai fazer, Venerável Sumedho? Você é mesmo Mahayana ou é Hinayana?”

O que estou a salientar é que a inspiração é uma experiência. Idealismo: não tentar rejeitá-la ou julgá-la de qualquer maneira, mas reflectir sobre ela, conhecer o que está na mente e como é fácil ficar iludido pelas nossas próprias ideias e opiniões elevadas. Também podemos ver, como podemos ser insensíveis, cruéis e indelicados devido ao apego que temos a pontos de vista sobre ser-se gentil e sensível. É aqui que está a verdadeira investigação do Dhamma.

Recordo-me da minha própria experiência: sempre tive a sensação de que de alguma forma eu era alguém especial. Costumava pensar: “Bem, eu devo ser uma pessoa especial. Há muito tempo, quando eu era criança, era fascinado pela Ásia e assim que pude, estudei chinês na universidade; portanto certamente devo ter sido uma reincarnação de alguém ligado ao Oriente.”

Mas considerem isto como uma reflexão: não interessa quantos sinais de ser alguém especial, ou de vidas passadas das quais nos possamos recordar, ou das vozes de Deus, ou mensagens do Cosmos, o que quer que seja - não para negar que essas coisas não são reais - mas que são impermanentes. Elas são anicca, dukkha, e anatta. Reflectimos sobre elas como elas realmente são – o que surge cessa: uma mensagem de Deus é algo que chega e cessa na mente, não é? Deus não está continuamente a falar com alguém a menos que queira considerar-se o silêncio como voz de Deus. Então, isso não quer dizer muito, pois não? Podemos chamar ao “som do silêncio” o que quisermos – voz de Deus, ou do Divino, chamada do Cosmos, o sangue a passar nos tímpanos, etc. Mas o que quer que seja, poderá ser usado para desenvolver a vigilância e a reflexão – é para isso que estou a apontar, como usar estas coisas sem as tornar em algo.

Assim, as missões que temos são respostas naturais que acontecem na nossa vida – elas deixam de ser pessoais. Já não se trate de mim, Sumedho Bhikkhu, com uma missão, como se eu fosse especialmente escolhido de cima, mais do que qualquer um de vós. Deixa de ser isso. Toda essa percepção e maneira de pensar são abandonadas. E quer eu salve ou não o mundo, ou milhares de seres, ou ajude os pobres nos bairros de Calcutá, ou ajude a curar leprosos, e faça todo o género de bons trabalhos - não é por ter a ilusão de ser uma pessoa, mas como uma resposta natural da sabedoria.

Nisto eu confio; é isto que é saddha – é a fé na palavra do Buddha. Saddha é a real fé e confiança no Dhamma; em esperar “ser ninguém” e não se tornar em algo mas ser capaz de apenas esperar e responder. E não há muito para responder, apenas esperar – caneca de café, observar a chuva, o pôr-do-sol, o envelhecer, testemunhar o envelhecimento, as entradas e saídas do mosteiro – as ordenações e as desistências, as aspirações e depressões, os altos e os baixos, dentro da mente, fora do mundo. E ocorre uma resposta porque temos vigor, inteligência e talento, e então a vida pede-nos para respondermos de forma hábil e com compaixão, algo que somos propensos e capazes de fazer. Gostamos de ajudar os outros. Não nos importamos de ir para uma colónia budista de leprosos – eu iria de bom grado – ou trabalhar nos bairros pobres de Calcutá ou algo assim; eu não teria objecções - esse tipo de coisas, apela bastante ao meu sentido de responsabilidade!

Mas não é uma missão, não sou eu que tenho de fazer algo; é a confiança no Dhamma. Assim, a resposta à vida torna-se clara e benéfica porque não surge de mim como pessoa com as suas ilusões provindas da ignorância condicionando as formações mentais. Assim observamos a inquietação, as obsessões da mente e deixamo-las findar. Permitimos que partam e assim elas cessam.

Tradução de Pedro Cruz
   


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Impresso em 24/4/2024 às 7:47

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