Fundação Maitreya
 
Conde de Keyserling e Fernando Pessoa...

de Pedro Teixeira da Mota

em 07 Jul 2014

  Em 15 de Abril de 1930, o conde Hermann de Keyserling, convidado pela Junta de Educação Nacional, depois de ter exprimido a Alberto de Oliveira, escritor e ministro (ou embaixador português) em Roma, a vontade de visitar Portugal, chega a Lisboa, para pronunciar três conferências, animadoras de ideias, às quais assistirá grande parte da intelectualidade portuguesa e que os jornais ecoaram em artigos assinados por Simões Dias, Vitorino Nemésio e outros. A primeira conferência foi pronunciada na Sociedade de Geografia, a 16, sob o título A Alma de uma Nação, seguindo-se mais duas, a 21 e 22, tendo depois partido para o Porto, onde o escutariam pensadores da Renascença Portuguesa, tal como Leonardo Coimbra e Sant’Anna Dionísio, como este último me confirmou. Ora também Fernando Pessoa assistiu certamente, pelo menos à primeira das conferências, pois escreveu uma carta dactilografada a Keyserling, com a data de 20 de Abril (e que esteve longo tempo perdida ou inédita antes de eu a publicar), para além de dever ter lido ainda os relatos jornalísticos, alguns bem desenvolvidos.

Na impressiva recepção que lhe foi oferecida na Academia das Ciências de Lisboa, a 15, o insigne professor da Universidade de Coimbra Joaquim de Carvalho proferiu uma notável conferência, na qual realçou a importância da sabedoria, «tensão infatigável, sinónimo de uma qualidade espiritual, onde a inteligência e a vida se fundem, num centro irredutível a todo o exclusivismo, sempre sinónimo de limitação», concordando com Keyserling que «é de uma educação espiritual que o homem do nosso século carece», elogiando a Escola da Sabedoria, que aquele fundara na Alemanha: «nos já vastos tipos de instituições escolares que a cultura europeia tem conhecido, a Escola de Sabedoria é a primeira escola onde se ministra um ensino sem conteúdo. Ninguém a demanda para aprender: sob a influência da personalidade desperta-se e intensifica-se o pensamento, e, acima de tudo, se forma uma orientação espiritual, sem cânones». Elogiará ainda tanto as palavras de Keyserling, vindas de «quem compreende a sua vida como uma missão», inserindo-as nas vozes que se elevam contra «as pretensões do pensamento racional, crítico e analítico, como também a sua visão «do primado da vida, libertada pela compreensão e espiritualizada pelo sentido», lembrando por fim o sentido universal de Portugal e «que se fomos os primeiros a ocidentalizar o Oriente, fomos também os primeiros a compreende-lo sem perder a nossa essência», dando mesmo o exemplo de Wenceslau de Morais, o nosso grande amante do Japão.

Keyserling, ao agradecer as palavras, aceita este enunciado final de Joaquim de Carvalho e afirma, provavelmente pelas suas capacidades psíquicas intuitivas ou de imediata absorção, segundo o relato do Diário de Notícias de 16, que «nas poucas horas da sua presença em Portugal sentia-se já mais português do que suponha. Referindo-se ao pensamento português, afirmou que ele era, sobretudo, realista, apesar do seu romantismo. Assim como ele, orador, viajava, para se ampliar em matéria de conhecimentos, assim os portugueses foram para as descobertas, não por motivos de ordem material, mas sim para dilatarem a sua espiritualidade. E, assim, o português é um verdadeiro criador de almas».

Filósofo alemão, reformador prático do espírito, como se intitulava, fundador em 1919 da Escola de Sabedoria, ou Sociedade de Filosofia Livre, em Darmstaad, figura mundial graças ao sucesso dos seus vários livros de viagens e análises do que observava e compreendia, então com 46 anos, de envergadura avantajada, foi bem recebido em Portugal, encontrando-se com Joaquim de Carvalho, Afonso Lopes Vieira, Agostinho de Campos e outros pensadores. Os seus discursos acentuaram a sua visão ou intuição profética da passagem da humanidade das épocas da crença e da ciência, ambas cegas, para a da compreensão, na qual o homem, conhecendo-se a si próprio, acabará por dar a plenitude espiritual ao desenvolvimento material, «realizando na Terra a nossa missão – essencialmente, fundamentalmente espiritual». O Espírito de um povo é apresentado como tensão, como «associação profunda do sentir, pensar e querer dos homens», que serve o sentido de vida nacional.

Considerado um ecuménico, conhecendo o Oriente e as suas visões e perspectivas, ainda que com as suas limitações bem patentes em algumas apreciações do seu valioso e original Diário de viagem de um Filósofo, Keyserling, contudo, não aceita que a humanidade esteja já num estado de decadência contrapondo antes o de juventude e portanto, de renovação, de criatividade, de novos sentidos. Considerando-se um chefe de orquestra do espírito, queria que os seres humanos «se tornassem «conscientes da sua missão no mundo, capazes de exprimirem pelos seus actos o sentido cósmico que as suas vidas comportam», pois assim «mais ricas serão as culturas que tais homens ajudem a constituir».
Ora da reacção de Fernando Pessoa a Keyserling e à sua pretensa compreensão de Portugal temos então uma carta dactilografada, mas assinada enigmaticamente por um O. S., que tanto poderia ser Ordo Solis ou Sanctissimorum, tal como surge desdobrada em alguns outros fragmentos do seu espólio, mas que mais acertadamente será a Ordem Sebastianista (tanto mais que na mesma altura, a propósito da homenagem em Silves a Al-Motamide, Fernando Pessoa assinava uma nota com O. S., surgindo dentro do texto a referência à Ordem Sebastianista).

Esta carta acabou por ser apenas publicada em 1988, no livro que então escrevi e intitulei A Grande Alma Portuguesa. Nela, Fernando Pessoa não questiona tanto o que o conde de Keyserling disse como antes os seus pressupostos e bases: «Viestes a Portugal para compreender - nós teríamos preferido que fosse para conceber – a alma portuguesa. Muniste-vos da preparação ilógica para o fazer? Seria suficiente que estivesse munido do conceito da alma como tripla – comum aos platonizantes e aos cabalistas, como a outros (...) Que Portugal pensa ter podido ver? Há três e tudo está lá (...) Da terceira alma portuguesa feita de inteligentes e de entendedores, nada há a compreender. Quanto à primeira alma portuguesa, se a vossa intuição é subtil, tê-la-eis adivinhado. Talvez a tenhais mesmo deduzido da paisagem e da luz, mais até do que aprendido nas próprias almas. Nisto tudo, viu bem, mas não tereis visto que o visível. O Portugal essencial – a Grande Alma portuguesa, em toda a sua profundidade aventurosa e trágica – foi-vos velada...». Anote-se que esta tríade anímica surge de modo semelhante em outros textos de Pessoa, tal como os dos três tipos de portugueses, apontando a génese do português essencial, ou «imperial», ao tempo de D. Dinis.
Fernando Pessoa explica, em seguida na carta, quem é, como nasceu, quais as transformações e o futuro da segunda alma, que é a Grande Alma Portuguesa, e que de aventura material e conquista de costas passará a uma aventura supra-religiosa que culminará de então a 200 anos. E termina a missiva (que não sabemos ainda se terá sido enviada ou não..), exprimindo a «nossa simpatia intelectual. O. S.»

Anote-se que, num texto anterior, F. Pessoa aventava mesmo a data de 1924, segundo certas profecias, «para o Grande Regresso, em que a Alma da Pátria se reanimará (...) e se começará a realizar aquela antemanhã ao Quinto Império, justificando-o pelo «sebastianismo, hoje mais vigoroso que nunca, na assombrosa sociedade secreta que o transmite, cada vez mais ocultamente, de geração em geração» (125-2). Quanto à grande Alma Portuguesa, que «nos vinha de mistérios antigos e de sonhos antigos (...) herdeira da divindade da alma helénica» e que urge reavivar ou reassumir é noutros textos significativos invocada, com outras raízes, tal a árabe, «a alma árabe é o fundo da alma portuguesa» (48H-23), ou a cristã: «Que Portugal tome consciência de si mesmo (...) Entregue-se à sua própria alma. Nela encontrará a tradição dos romances de cavalaria, onde passa próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo, a Sucessão Super-Apostólica, a Demanda do Santo Graal (...) Deixemo-nos de importar Deus, porque Deus está em toda a parte» (125A-23).
Fernando Pessoa, tão sensível à Anima Mater, à Pátria (e vejam-se as obras de Dalila Pereira da Costa, ou o ensaio de Eduardo Frias, O Nacionalismo Místico de Fernando Pessoa, Braga, 1971, no qual já compara Keyserling e Fernando Pessoa), tentando-a revivificar pelo Sebastianismo, pelo Quinto Império, pela Rosea Cruz, pela Ordem Templária de Portugal e pela Mensagem, não poderia deixar passar a ignorância de tal veio nacional, tal como em 1935 o faria em relação à proibição das associações secretas, debatida e promulgada pela Assembleia, e que ele rebateu em artigo de jornal e em várias cartas e textos.

De realçar que, em 1932, na revista Descobrimento, dirigida por José de Castro Osório e na qual Fernando Pessoa colaborava, saía a tradução portuguesa das impressões psicológicas recolhidas por Keyserling e que iriam constituir a parte consagrada a Portugal, da 2ª edição do seu livro Analyse Spectral de l’Europe. As reacções não se fizeram esperar (às quais F. Pessoa se tinha antecipado...), o que levou a direcção da revista a publicar uma nota explicativa e uma resposta de Keyserling às críticas ou mesmo insultos recebidos (sobretudo de Agostinho de Campos, autor de um sugestivo livro Jardim da Europa, que o acusava de se prostituir a quem lhe pagava mais, algo então raro), explicando que o espelho pouco lisonjeiro apresentado de cada país era para os obrigar a reagir, saindo finalmente, num número posterior, um ensaio do director da revista intitulado “Portugal visto da Europa”.

O que é um facto, resultante certamente desta oposição lusitana (embora fosse interessante descobrir-se a movimentação psíquica de Keyserling, talvez através de uma investigação nos arquivos de Darmstaad, é que na 2ª edição dessa obra de Keyserling, as últimas vinte linhas do ensaio desapareciam, as mais críticas e que referiam, por exemplo, que os portugueses «viviam de ilusões e de imagens do desejo. Identificam-se como povo, com as grandes individualidades da sua história, que, naturalmente já em vida eram excepções, não tendo nenhum Português de hoje o direito de se comparar com eles. Não querem convencer-se de que o facto de terem grandes possessões coloniais é um simples acaso: se a Inglaterra não tivesse interesse na sua conservação, elas já não existiriam e nenhum português moderno poderia criar um império colonial», afirmações estas que quer para um Portugal tradicional quer para um Estado Novo em formação talvez tivessem impulsionado algumas das reacções mais insultuosas ou das pressões para não ser publicado...

Anote-se por fim que, embora não haja qualquer livro de Keyserling no que restou da biblioteca pessoana, a sua vasta obra original e intuitiva, ainda que com certas limitações, merecia bem a simpatia intelectual expressa por Fernando Pessoa no final da sua carta, tal como aliás sucedera com mestres como Rabindranath Tagore ou Nicolas Berdiaef que muito elogiaram as capacidades e realizações do fundador da Escola de Sabedoria, ainda hoje viva e orientada com fidelidade e verdade pelos seus descendentes...
   


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