Fundação Maitreya
 
O Renascimento Oriental

de Douglas T. Mcgetchin

em 27 Nov 2014

  Em 1803, em Paris, o escritor alemão Friedrich Schlegel escreveu com excitação ao seu amigo Ludwig Tieck que a Índia antiga era a “ fonte de todas as línguas, de todo o pensamento… tudo vem da Índia.” Schlegel passou os cinco anos seguintes a estudar sânscrito e literatura indiana, publicando em 1808 Sobre a língua e sabedoria dos indianos. Neste livro tão influente, Schlegel apela ao que ele chamou de Renascimento Oriental: ´Atrevo-me a predizer que o estudo indiano, se for abraçado com igual energia (tal como o Renascimento Italiano)…provará grandeza e universalidade na sua ponderação nunca inferior, nem menos influente na esfera da inteligência europeia.’ Neste apelo de Schlegel criou-se a base da grande inspiração para a fundação da Indologia, e para o crescente interesse pela Índia, na Alemanha, a qual, se tornou um importante veículo de expansão deste conhecimento para outros países ocidentais. As ligações entre a Alemanha e a Índia foram especialmente significativas no rico período de florescimento cultural durante o Renascimento Oriental do séc. XIX.

A Influência Cultural da Índia na Alemanha


Tal como o Renascimento italiano surgiu quando os académicos ocidentais redescobriram as maravilhas da antiguidade clássica Greco-Romana, o Renascimento Oriental surgiu no séc. XIX, quando os académicos alemães e outros europeus redescobriram textos clássicos da antiguidade asiática, textos que influenciaram profundamente a cultura ocidental. O Renascimento Oriental influenciou a Alemanha particularmente de quatro formas: no Romantismo, na filosofia, na ciência linguística e na cultura alemã em geral. Cada uma destas manifestações vai demonstrar a influência significativa que a Índia e sua herança cultural tiveram na Alemanha e no Ocidente.
O Romantismo Alemão

A primeira área de influência da cultura indiana foi no Romantismo alemão. Foram os românticos alemães que, nos finais do séc. XVIII reconheceram as suas preocupações pela natureza, o sentimento e a transcendência religiosa na literatura da Índia antiga. Um primeiro trabalho de grande influência desta ligação foi a tradução de George Foster de Shakuntala de Kalidása (1791), a história de amor em sânscrito. Foster traduziu para o alemão a partir da edição inglesa publicada em Calcutá, em 1789, por Sir William Jones, fundador da Sociedade Asiática. Uma parte da peça apareceu no verão de 1790 no jornal de Friedrich Schiller Thalia, e Foster publicou-a na totalidade, por fim, em Maio de 1791 como Shakontala, oder der entscheidende Ring ( Shakuntala ou o Círculo Fatal).

A consagração de Shakuntala estendeu-se para lá da Inglaterra e da Alemanha. O francês Leonard de Chèzy, que era detentor da primeira cadeira de sânscrito na Europa (1815), sentiu-se inspirado a estudar sânscrito depois de ter lido Shankutala. Escreveu ‘Quem é que não leu ainda Shakuntala?’ e sobre Foster ‘Que inveja tenho dele!’. Na Alemanha, Johann Gottfried von Herder, Georg Forster, Friederich Schlegel, Wilhelm Humboldt, e até o grande vulto cultural Johann Wolfgang von Goethe (uma espécie de Rabindranath Tagore da Alemanha), todos se interessaram pela literatura sânscrita, em grande parte devido a Shakuntala. Goethe viu na literatura poética, particularmente em Shakuntala, algo digno da sua maior admiração. Mencionou Shakuntala como ‘ a estrela que torna a noite mais agradável que o dia’. ‘O prólogo no teatro’ de Shakuntala forneceu a ideia para o prólogo do Fausto de Goethe. Os primeiros românticos foram especialmente impressionados por Shakuntala. Novalis (Friederich von Hardenberg) e seus irmãos referiam-se a sua noiva, Sophie von Kühn, como ‘Shakuntala’.

Os filósofos alemães

Acrescido à influência do Romantismo, o Renascimento Oriental levou os filósofos alemães a estudar cuidadosamente a filosofia indiana, mas no sentido de intenções de oposição. Georg Hegel estudou a Índia para refutar a sua importância, deixando-a fora dos cânones da filosofia ocidental, enquanto Arthur Schopenhauer defendeu o pensamento indiano. Hegel examinou de perto novas informações disponíveis sobre a Índia, vindo a colocá-la, dentro da sua filosofia, num ponto de vista rudimentar e inferior. Hegel viu na Índia apenas um estádio primitivo na evolução do espírito da liberdade, ao longo das civilizações. Os pontos de vista críticos de Hegel reflectiram a incerteza dos estudos indianos dentro da Alemanha durante os anos de 1820, mas os seus pontos de vista deixaram um legado pernicioso que se estendeu, pelo menos, durante um século e meio, excluindo a filosofia indiana da Alemanha, e por consequência no ocidente, dos departamentos de filosofia. Esta atitude começou a mudar, quando os departamentos filosóficos começaram a adoptar as abordagens indianas à filosofia, tão longamente consideradas como religiosas pelas universidades ocidentais.

Assim que o ávido interesse do Governador-Geral da Companhia das Índias, Warren Hasting, perante a herança cultural da Índia, em 1780, foi diametralmente oposto pelo Anglicista Thomas Macaulay nos anos de 1830, a abordagem de Hegel à Índia manifestou-se radicalmente diferente daquela de Schopenhauer, que detestava Hegel, bem como o seu sistema filosófico. Logo que entrou como Professor na Universidade de Berlim em 1820, Schopenhauer decidiu programar os horários de suas classes nas mesmas horas das classes de Hegel, porque não queria hegelianos em suas aulas. Nessa altura Hegel tinha imenso prestígio, e suas aulas eram imensamente populares. Quando se pediu a Schopenhauer que redefinisse os seus horários, devido ao baixo número de inscrições, ele preferiu deixar a universidade e abandonar a herança familiar, do que sustentar a influência hegeliana. Schopenhauer escreveu na introdução do seu trabalho de base, em 1918, “ The World as Will and Representation” (O mundo como Vontade e Representação), que desenvolveu as suas ideias ao ler Platão, Kant e as Upanishadas. Elas existiam em latim, traduzidas do persa em 1840, pelo investigador francês Anquetil-Duperron. A tradução persa do sânscrito foi feita por Dara Shikoh (Darius, o Magnífico), o erudito irmão mais velho do homem que viria a ser o Imperador mogol Aurangzeb. Schopenhauer escreveu sobre as Upanishdas: ‘ A cada página confrontamo-nos com pensamentos profundos, originais e sublimes…é a leitura mais benéfica e sublime possível do mundo; tem sido o consolo da minha vida e será também da minha morte.’ Schopenhauer, respondendo ao convite, e ecoando Friedrich Schlegel para um Renascimento Oriental na Alemanha baseado em textos indianos, argumentou que (o acesso aos) Vedas…. aberto a nós pelas Upanishadas, é, a meu ver, o maior dos benefícios, que este ainda recente século terá de demonstrar perante os séculos anteriores, supondo eu, que a influência da literatura sânscrita penetrará profundamente de forma nunca inferior àquela reabilitação que a literatura grega teve no séc. XV.

Os seguidores de Schopenhauer na segunda metade do séc. XIX foram um canal muito importante, através do qual o interesse pelo material indiano se desenvolveu na Alemanha e se espalhou pelo ocidente. Schopenhauer foi uma grande influência para os intelectuais europeus no fim do séc. XIX, rivalizando com Hegel. O seguimento de Schopenhauer na Alemanha deveu-se muito a um movimento de filósofos, cujos defensores, incluindo o próprio, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, e Martin Heidegger, argumentavam que a razão e a consciência não eram as características dominantes da natureza humana. Um Professor de filosofia na Universidade de Kiel, Paul Deussen, foi tão seriamente tocado por Schopenhauer a ponto de co-fundar a Sociedade Schopenhauer em 1911. Thomas Mann era também um dos admiradores de Schopenhauer – editou um volume dos seus escritos. Na sua novela Buddenbrooks (1901), sobre quatro gerações de burgueses ricos de famílias do norte da Alemanha, Mann apresentou o apelo de Schopenhauer sob a figura de um comerciante patriarca Thomas Buddenbrook, que tinha lido o livro de Schopenhauer O Mundo como Vontade e Representação. Ao ler esta filosofia, na novela, o Sr. Buddenbrook teve uma significativa quebra nas preocupações mundanas que controlavam a sua vida, ao ter uma experiência mística transcendental que o envolveu:

Sentiu que todo o seu ser se tinha expandido infinitamente, e ao mesmo tempo apegou-se aos seus sentidos uma profunda intoxicação, um fascínio estranho, doce e vago, que, de algum modo, se assemelhava ao sentimento de um amor jovem e saudoso… As paredes da sua terra nativa, onde se tinha fechado por vontade e consciência própria, abriram-se; abriram e revelaram à sua visão o mundo inteiro…,já não tinha que lutar com a compreensão da eternidade… só existia um presente infindável; e esse poder nele, que o fazia amar com um amor tão requintadamente doce e ardente… esse poder sempre saberia como encontrar o acesso a esse presente.
Se o S. Buddenbrook tivesse tido esta experiência depois de Vivekananda ter vindo ao ocidente, este comerciante alemão bem se poderia ter tornado devoto de Ramakrishna.

Estímulo para análise científica e linguística

Em acréscimo à influente filosofia, o Renascimento Oriental também serviu de estímulo para a análise científica e linguística das línguas indianas. Por volta de 1900 havia mais professores de Indologia na Alemanha do que no resto de toda a Europa e América em conjunto. A Alemanha tinha quarenta e sete professores devotados ao estudo da herança do Sul da Ásia, enquanto a Inglaterra só tinha quatro. Como se explica a existência de tão grande número de eruditos alemães, particularmente tendo em conta que não havia colónias alemãs no sul da Ásia? Apenas uma parte da resposta é uma ligação e um amor especial entre a Alemanha e a Índia. Também se deveu a razões práticas: a Indologia na Alemanha, primeiro de tudo, deveu o seu lugar e apoio continuado aos usos culturais e nacionalistas que teve da Prússia e em outros estados alemães. Os estudiosos alemães reivindicaram o seu interesse pela Índia antiga por razões científicas – o Sânscrito tornou-se uma parte integrante do domínio académico da Prússia, no campo linguístico. Ao aumentar o prestígio da ciência alemã, a ciência linguística serviu o estado da Prússia. A bolsa de estudos do Sânscrito era muito útil para aqueles que defendiam a unificação alemã; antes de a Prússia ter fundado o Império Alemão em 1871, a língua era um elemento importante para unificar a fragmentada Europa central, tanto a nível religioso, como a nível político. Devido à configuração politicamente estilhaçada dos estados alemães, havia vários centros de estudos de sânscrito, e cada um desenvolvia a sua característica única. Os centros mais importantes eram Berlim e Bona, mas Munique, Töbingen, Leipzig, Göttingen, e outras universidades também desenvolveram programas de Indologia.

Embora os estudiosos de Sânscrito se justificassem com a ciência, a verdadeira razão para o criar desta disciplina era o interesse Romântico pela Índia, e continuou a depender de imagens Românticas da Índia, para se ligarem aos oficiais e ao público. Na retórica pública os Indologistas frequentemente enfatizavam três aspectos da Índia, todos eles chamados importantes de Schegel ao Renascimento Oriental: a antiguidade da civilização indiana, a beleza inerente dos ‘ tesouros culturais’ da Índia, e uma relação única da Índia à Alemanha.

A idade venerável da antiga civilização indiana foi um importante argumento para os eruditos do Sânscrito. Em 1818 Friedrich Majer descreveu a ‘mais antiga religião dos indianos’ como ‘ a história mais antiga da raça humana’. Wilhelm von Humboldt defendeu que o Sânscrito foi ‘ A linguagem mais antiga e a primeira a ter verdadeiras formas gramaticais’. O indologista de Oxford, de origem alemã, Max Müller argumentou que a razão de estudar Sânscrito foi a sua ‘antiguidade’, pois era, linguisticamente falando, a ‘irmã mais velha’ do Latim e do Grego. Como o estudo dos Vedas se expandiu nos anos 40 de 1800, os académicos descreveram os Vedas como a escrita mais antiga da literatura indiana, bem como de toda a humanidade. O estudo do Rig-Veda, o mais antigo dos quatro Vedas, foi um foco de estudo em particular. O indologista berlinense, Albrecht Weber, assinalou nas suas Lições Académicas, que as canções no Rig-Veda ‘ transportam-nos ao tempo original Indo-Germânico’.

Alegações estéticas

Acrescendo às alegações que os épicos indianos eram mais antigos que os clássicos europeus, os indologistas também defenderam que neles havia um grande apelo artístico e de beleza inerente. Razões estéticas sobre o material indiano estendiam-se ao próprio sânscrito, quer ao seu alfabeto, quer à sua estrutura gramatical. Von Humboldt escreveu a Bopp, ‘ o alfabeto sânscrito…tem uma regularidade e uma plenitude maravilhosa’. Ao longo do séc. XIX, consistentemente, os alemães referiram-se virtualmente à literatura sânscrita em termos económicos, comparando-a a um ‘tesouro’. Por exemplo, em 1819, August W. von Schlegel escreveu, em Bona, ‘ Deverá a literatura inglesa ter o monopólio da literatura indiana? É demasiado tarde. Podem ter a canela e os cravinhos; aquele tesouro pertence a todo o mundo culto.’

Ao longo do séc. XIX, os indologistas alemães louvaram sistematicamente o imperialista projecto britânico na Índia, e continuaram a usar a metáfora da pilhagem para descrever os seus próprios estudos. Em 1857, o erudito berlinense Albrecht Weber sublinhou ‘as pérolas inestimáveis do tesouro cultural literário da Índia’. Em 1897, o Professor de Heidelberg, Solomon Lefmann escreveu sobre ‘ O crescendo de tesouros escondidos…especialmente na Índia, que desde Alexandre tem sido a terra das maravilhas e das sagas. Por isso Sir William Jones acreditava… e um anos depois, em 1789, publicava Shakuntala - um encantador filho miraculoso de um sossegado ermitério, uma pérola rara do tesouro cultural da literatura indiana’.

Relações ancestrais

Além da antiguidade e da beleza, outra justificação que os sanscritólogos faziam para os seus estudos era a defesa da relação única ancestral que existia entre a antiga Índia e a Alemanha moderna. Em 1786, Sir William Jones defendeu o argumento que o Sânscrito era o parente das antigas línguas europeias, tal como o Latim e o Grego. Embora a relação entre os três tivesse mudado mais tarde para uma orfandade fraterna de uma Ursprache (língua original), os indologistas alemães mantiveram que existia uma conexão histórica e cultural com a Índia ancestral, mais próxima dos alemães do que dos outros europeus. A ideia de fortes laços únicos entre a Alemanha e o Sânscrito tornou-se uma parte de uma tentativa nacionalista a fim de estabelecer uma superioridade cultural acima das civilizações greco-romanas e de seus herdeiros franceses. Os estudos do Sânscrito ajudaram a construir a identidade alemã ao longo da sua luta com os franceses, durante e após o período das guerras napoleónicas. Os alemães usaram a Índia para rejeitar o nacionalismo francês e a força da ocupação napoleónica, ao descobrirem as suas próprias raízes históricas e linguísticas. Foi muito importante para os nacionalistas o facto de ligarem linguisticamente uma moderna língua vernácula a um predecessor antigo, uma vez que estavam preocupados com o prestígio da sua própria língua nacional. A augusta herança da cultura mediterrânica considerava a Alemanha como sendo uma língua bárbara setentrional, em comparação com a cultura urbana da Gállia; o Latim era o antecessor linguístico directo do Francês.

Contudo, os estudiosos alemães começaram a defender que a Índia era anterior à Grécia e a Roma, dando, assim, aos alemães superioridade face aos franceses. A teoria de Friedrich Schlegel da evolução regressiva postulou que as línguas degeneravam, ao longo do tempo, de uma forma muito evoluída para estádios mais primitivos: o Sânscrito era a mais pura de todas, seguindo-se o Grego e por fim, o Latim. Os indologistas ampliaram estas históricas conexões linguísticas a um parentesco etnológico, a fim de ligarem os alemães modernos com o que eles viam como suas raízes na Índia ancestral. Em 1823 Heinrich Klaproth criou o termo ‘Indo-Germânico’, de forma a cimentar o significado da ligação linguística da Alemanha com a Índia. Os eruditos académicos mais tarde desenvolveram esta ideia ao longo do séc. XIX. Os jornais, ao relatarem o Congresso Orientalista, que aconteceu em Berlim em 1881, diziam:’ A Índia é a terra de origem da raça alemã e a imigração para a Europa pode ser seguida pela propagação e desenvolvimento da língua que acompanhou os povos errantes’.

Outra forma de reforçar uma ligação indo-germânica foi a de atribuir características semelhantes a indianos e a alemães. Os indologistas alemães alegavam que tanto os indianos antigos, como os modernos alemães, eram cultos. O Prof. Moriz Winternitz defendia, em 1908, que ‘ os indianos eram os eruditos do mundo antigo, tal como os alemães o são agora.’ Os indologistas traçaram paralelos entre a Índia ancestral e o Romantismo alemão para ajustarem a Índia antiga como tendo um passado uno Indo-Germânico. O Professor Albrecht Weber defendeu que ‘a mente Indo-Germânica ‘ tornou, tanto os indianos, como os alemães Românticos ‘particularmente susceptíveis às influências da Natureza’. Outro indologista, Leopold von Schröder, argumentou: ‘Os indianos compreendiam os Românticos – eles eram igualmente o povo do Romantismo na antiguidade!’
Enquanto o estudo da Índia antiga nos estados alemães teve sentido para o nacionalismo alemão, os sanscritólogos também partilharam um firme compromisso de cooperação internacional, ou pelo menos pan-europeu. Os académicos alemães sentiam-se em dívida para com os colegas ingleses na Companhia da Índia Ocidental, de onde provieram trabalhos tais como Shakuntala, e continuaram a elogiar os pioneiros ingleses, nomeadamente, o oficial da Companhia da India Ocidental, Henry Thomas Colebrook (1765-1837). Esta atitude para com os ingleses não é particularmente surpreendente, considerando a regra colonial que os ingleses tinham na Índia, uma pesquisa crucial de manuscritos. A.W. von Schlegel opinou favoravelmente sobre o Império Britânico na Ásia:’ Recentemente, os ingleses fizeram muito pelos estudos naturais, nacionais e antropológicos na Ásia, bem como pela história moderna- este é o lado brilhante de seus feitos científicos.’

O interesse pela sabedoria popular da Índia antiga espalhou-se na sociedade culta alemã e os tópicos indianos tornaram-se assuntos de conversação. Max Müller escreveu sobre o compositor Felix Mendelssohn: ‘ Ele manifestou o mais vivo interesse no meu trabalho sobre a edição do Rig Veda, os Hinos Sagrados do Brahmans. Um seu grande amigo, Friedrich Rosen, começou o mesmo trabalho… Assim, Mendelssohn ficou a saber tudo sobre os Hinos Sagrados e falava eloquentemente sobre os Vedas.’ A Duquesa de Anhalt-Dessau disse a Müller, antes de ele ir para Berlim, que ‘também ela tinha aprendido um pouco de Sânscrito, que ela e o jovem Príncipe da Coroa da Prússia tinham aprendido o alfabeto sânscrito, e que tinham tido sucesso nisso, para grande aborrecimento de todos quantos se dispunham a ler todas as letras e que não eram capazes de o fazer. ’Nas suas memórias, Müller escreveu sobre a familiaridade do rei da Prússia, Frederick William IV, com os Vedas: ‘Apresentei-lhe o meu volume do Rig Veda, numa audiência privada. Ele sabia tudo sobre a obra, e tinha tanto para me contar sobre o livro mais antigo da humanidade, que eu mal tive oportunidade de falar o que quer que fosse.’

O compositor Richard Wagner e os Teosofistas usaram os textos antigos indianos e seus conceitos. Wagner utilizou escritos indologistas sobre Budismo, a fim de planear uma peça chamada Die Sieger. Embora nunca a tivesse acabado, as notas de Wagner demonstram o quanto as ideias do Budismo contribuíram para a sua ópera Parsifal. Os conceitos indianos da reencarnação e da compaixão por todas as criaturas sencientes e sofredoras ajudou a reforçar o amor pelos animais e pelo anti vivisseccionismo, que Wagner defendia. Por volta de 1905, o Professor de Sânscrito Leopold Schröder escreveu: ‘Nietzsche e Buda são, provavelmente, os nomes mais populares da actualidade.’ Na Alemanha de seu tempo, o Budismo teve um impacto muito forte, devido às traduções dos escritos budistas e ao uso destes temas na ficção, inclusive em obras de Philipp Mainländer, Ferdinand von Hornstein, e Karl Gjellerup. Em Berlim, em 1903, o físico Paul Dahlke iniciou os seus escritos em Budismo, e a sua casa continua a ser ainda hoje um centro espiritual para a cultura asiática. Outros se sentiram levados aos escritos indianos, incluindo Walter Markgraf, que se tornou editor em Breslau. O novelista austríaco Robert Musil fez referências à Índia através de um personagem, na novela A jovem Törless, Beineberg, cujo pai servia os ingleses na Índia, e que tinha trazido esculturas, tecidos, e pequenos ídolos feitos à mão para venda turística, mas que eram de um sentimento que ele nunca tinha esquecido, pelo que continham de bizarro lampejo do
Budismo esotérico.’

Um exemplo particularmente proeminente de homens de lei que se interessaram pela Índia ancestral foi o estadista Wilhelm von Humboldt, que escreveu:’ O prazer e a satisfação que tenho vivenciado ao aprender Sânscrito… não pode ser comparado com nenhuma outra posse ou qualquer outra alegria,’ excepto àquela de aprender o Grego. Em Junho de 1822, von Humboldt publicou um artilho detalhado sobre a gramática sânscrita na Indische Bibliothek (Biblioteca Indiana) de August W. Schlegel. O interesse de von Humboldt foi crucial para a pesquisa da disciplina académica da Indologia na Alemanha; ele convenceu o estado Prussiano a criar as primeiras cadeiras professorais dedicadas aos estudos do Sânscrito na Prússia, em Bona (1818) e Berlim (1821).

A base intelectual para a grandiosidade alemã

O estudo alemão da Índia promoveu o poder nacionalista e do estado, fornecendo uma base intelectual para a grandeza alemã: um pedigree linguístico Indo-Europeu. Muitos dos seus praticantes promoveram o racismo, fornecendo muito material significativo que viria a ser usado posteriormente pelos nazis, tais como a Suástica da bandeira nazi e a imagem bélica e de domínio da “raça ariana”. Contudo, o estudo do sânscrito contribuiu igualmente para o desenvolvimento das ciências linguísticas e facilitou a disseminação rápida, na Europa, de trabalhos fecundos sobre a religião e a literatura indiana. Suzanne Marchand na Universidade do Estado da Luisiana defende que o Orientalismo Alemão, incluindo não só estudiosos da Indologia, mas também de Farsi, Árabe, Ásia Ocidental e de outras línguas e regiões asiáticas, ajudaram os intelectuais europeus a questionar o Eurocentrismo.

A Irmã Christine

O Renascimento Oriental liderado pelos alemães no séc. XIX ajuda na explicação das ligações alemãs à Missão Ramakrishna durante a Primeira Guerra Mundial, e no que os ingleses pensavam ser a simpatia dos alemães pelos revolucionários indianos. Apesar da postura não-política da Missão Ramakrishna, os ingleses viram-na como uma influência subversiva e perigosa à presença deles na Índia. Pode-se perceber esta suspeita inglesa nas dificuldades de imigração da Irmã Cristina.

A menina Christine Grunsteidel (1866-1930), de Detroit, conheceu Swami Vivekananda (1863-1902), quando ele deu uma palestra nos Estados Unidos em 1894, a seguir à sua tão apreciada presença, em 1893, no Congresso das Religiões da Feira Mundial de Chicago. Em 1895, no Thousand Island Park tornou-se discípula dele, assumindo o nome de Irmã Christine, e viajando para Calcutá em 1902, um pouco antes da morte de Vivekananda. A entristecida Irmã Christine saiu da parte europeia da cidade para ajudar a gerir a escola para raparigas e mulheres hindus em Calcutá, em Bosa Para Lane, com a Irmã Nivedita (‘A dedicada’ Margaret E. Noble), que tinha chegado a Calcutá quatro anos antes da Irmã Christine, em 1898. Quando a Irmã Nivedita faleceu em 1911, a Irmã Christine continuou a dirigir a escola com a ajuda de indianas que ela tinha preparado. Quando rebentou a Primeira Grande Guerra, no verão de 1914, a Irmã Christine, por questões de saúde, estava a recuperar nos Estados Unidos, mas quando tentou regressar a Calcutá para a sua escola, as autoridades britânicas recusaram-lhe autorização para o fazer.

Porque é que as autoridades britânicas recusariam a entrada na Índia de uma cidadã americana? Os Estados Unidos eram neutros, e os Serviços Secretos britânicos em Bengala ocidental admitiram que a Irmã Christina não tinha interesses políticos e que era leal à América. Tinham tido o testemunho, numa entrevista com a colega dela e com a responsável financeira da Missão Ramakrishna, Miss MacLeod, em Junho de 1917, reafirmando que a Irmã Christine nada faria que fosse de natureza política. O que levou os ingleses a estarem contra esta aparentemente inofensiva mulher, que tentava ajudar a gerir uma escola de raparigas? Um ponto contra era o nome dela ser alemão, Grunsteidl, e a sua herança teutónica: o pai dela era alemão, naturalizado como cidadão americano. Outro ponto de suspeita era a sua associação com a Irmã Nivedita, cujos interesses políticos a tinham levado a abandonar a Missão Ramakrishna, para não comprometer a postura oficial não-política, uma vez que se dedicou a trabalhar para a independência da Índia, contra os ingleses.

Acrescentando à sua herança alemã e à ligação com a Irmã Nivedita, a associação da Irmã Christine com a Missão Ramakrishna também preocupava os ingleses, uma vez que suspeitavam de eles albergarem, entre os seus membros, simpatias pelos alemães e pelas actividades subversivas e revolucionárias. Havia uma mensagem implícita de auto reforço nacionalista na promoção de Vivekananda do orgulho pela cultura e tradições indianas, e pelos seus vigorosos esforços de espalhar a herança pelo Ocidente. Um ficheiro secreto de 1917 sobre “a influência alemã na Missão Ram Krishna” acumulou o assunto contra a sociedade religiosa. Figurava em primeiro lugar, na lista de comportamento objectivo:

Bhupendra Nath Datt, o irmão mais novo de Swami Vivekananda (fundador da Missão Ram Krishna), que se filiava como dissidente na Índia, e que estava na América quando a guerra eclodiu: ofereceu de imediato os seus serviços à Embaixada Alemã em Washington, tendo sido enviado para a Alemanha, onde se encontra de momento (em 1917), como sendo um membro proeminente e fidedigno do Comité dos Indianos Dissidentes, ligado ao Ministério dos Assuntos Estrangeiros de Berlim

Os ingleses ligaram Bhupendra com o Dr. Chandra Kanta Chakravarty nos Estados Unidos, que frequentava as reuniões da Sociedade Vedanta em Nova Iorque, e que era da maior intimidade com Swami Bodhanand(a), o presidente da Sociedade lá. Os britânicos asseveraram que ‘todos os membros americanos proeminentes da Sociedade Vedanta em Nova Iorque (por ex., A Sra. Warren, aliás, Kamali Devi) são pró-alemães. E no que se referia ao presidente Swami Bodhanad(a),
Se não tomou parte activa na agitação política, tem estado sempre de melhores relações com os revolucionários proeminentes indianos, que se encontram em Nova Iorque. Ele permitiu que C.K.Chakravarty usasse a sua morada para correspondência ligada aos esquemas germânico-indianos… embora tal não possa ser afirmado com segurança, existe ainda uma forte suspeita de que está a usar o Vedantismo como cobertura para a propaganda revolucionária indiana.’

Estas doses de intriga Indo-Germânica ajustavam-se a um largo padrão para associarem os pesquisadores espirituais ocidentais com a dissidência e a rebelião. Podiam citar com mais destaque a presidente da Sociedade Teosófica e do Congresso Nacional Indiano, Annie Besant, que era uma campeã do movimento Home Rule, quer na Índia, quer na colónia britânica, Irlanda. Os receios britânicos de que a Missão Ramakrishna estivesse ligada à actividade revolucionária são interessantes de examinar, uma vez que até os britânicos no seu relatório secreto tinham que admitir que esta ligação era apenas uma possibilidade: “Há que admitir que a ostensiva propaganda do Vedanta tem sempre evitado a política e, na verdade, a maioria dos seus seguidores não estão preocupados com política”.
Suspeito que a oposição à Irmã Christine teve mais que ver, que com as alegadas e infundadas simpatias dela pelos alemães. Terá tido que ver com o trabalho que ela estava a desenvolver ao educar indianas, o que era uma parte do projecto de Vivekananda de instilar auto-suficiência nos indianos sob o jugo colonial britânico. Também acho importante o amor que ela sentia pelo Vedanta, desprezado e receado pelos ingleses, segundo os registos no seu ficheiro secreto. O Serviço Secreto Britânico em Bengala ocidental misturava ‘o Vedantismo Teosófico’ com ‘outros cultos orientais’. Ridicularizavam Miss MacLeod, como ‘ sendo uma dessas americanas que se enfatuam com as doutrinas do Vedanta’. Será que a ideia de os ocidentais poderem abraçar um sistema indiano religioso e filosófico poderia estar a ameaçar os sahibs, habituados a exercer domínio, não só político, mas também, desde as reformas sob Macaulay em 1830, educativo e linguístico, tal como tinham sonhado evangelizar a Índia? Vivekananda ajudou a trazer para o Ocidente a cultura e a religião indiana, encontrando adeptos e trabalhando para reverter a balança cultural de trocas que favoreciam os britânicos ao longo do séc. XIX. Dado ser necessário efectuar pesquisas mais alargadas, antes de conclusões definitivas sobre as razões que levaram às suspeitas dos ingleses sobre a Irmã Christine e a Missão Ramakrishna, parece, pelo menos, aos desconfiados britânicos, ter havido uma afinidade entre a Missão Ramkrishna e a Alemanha nos primórdios do séc. XX. Como já foi brevemente esboçado antes, estas ligações Indo-Germânicas tinham fortes raízes ao longo da influência do séc. XIX do Renascimento Oriental.

Tradução de Helena Gallis
Boletim do Ramakrishna Mission Institute of Culture
   


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