Fundação Maitreya
 
Peregrinação ao Kailash

de Bhikkhu Appamado

em 14 Abr 2016

  Quando há alguns anos me ordenei como monge estava preparado para abrir mão do mundo, para viver em recolhimento, para me dedicar integralmente ao meu percurso interior. O que eu não sabia é que essa renúncia viria a dar lugar a tantas voltas no mundo manifestado. E é bom não ficarmos deslumbrados com isso, pois que ainda assim são parcos os frutos exteriores face ao que o mundo interior tem para nos oferecer. Fazendo parte de uma tradição monástica contemplativa, que primazia o contacto directo com a natureza, é comum fazerem-se caminhadas, mais ou menos planeadas, que nos levam a sítios desconhecidos.

Certa vez um senhor teve um sonho, uma epifania, na qual vislumbrou que quem chegasse com ele ao fim de determinada caminhada, subiria aos Himalaias e circum-ambularia o Monte Kailash, monte sagrado para os Hindus, Budistas e Jainas. Tive a “sorte” de chegar com ele ao fim dessa caminhada e, de dois anos depois embarcar na viagem designada.

Em redor do monte Kailash nascem quatro dos maiores rios da Ásia: o Ganges, o Brahmaputra, o Indo e o Sutlej. Para os Budistas este monte representa o centro do Universo, para os Hindus é a morada de Shiva… Ele também é apelidado de Monte Meru, de pilar do mundo e está localizado no coração de cinco cordilheiras, simbolizando o lótus. O seu nome significa Cristal e as proximidades da montanha divina são lugares santos onde “até as pedras rezam”.

Esta foi uma viagem cheia de incertezas, desde a preparação ao desembarque, pois eis que quando cheguei ao Nepal, ponto inicial da peregrinação, a minha mala não vinha no avião e com ela todo o equipamento. Para quem abandonou o dinheiro, tendo assim a impossibilidade de adquirir novo material (saco cama, tenda, etc.), isto poderia representar um “pequeno problema”. Tendo guarida num mosteiro no Nepal, o Abade predispôs-se a acompanhar-me ao aeroporto no dia seguinte para ver o que se tinha passado: e a mala meio mundo tinha voado para ali naquela manhã ter aterrado.

Reunido com os pertences e com os outros cinco viajantes, embarcámos em mais um pequeno voo, para aterrar no sopé das montanhas. Antes de partimos, porém, o nosso guia explicou-nos que segundo as antigas tradições, a circum-ambulação do Monte Kailash representa um ciclo que passa pela nossa vida, pela nossa morte, e culmina num renascer. Pessoalmente, não aceitei a priori esta simbologia milenar, pois estava sobejamente interessado na experiência interior e directa a cada passo do caminho, e portanto tomei nota da informação recebida num papel, mas não a fixei mentalmente para que esta não viesse a condicionar a experiência futura.

No meu primeiro encontro directo com o ar dos Himalaias, deparei-me com algo: não só não tinha palavras para descrever a beleza e o cenário que vislumbrava como também não tinha “pensamentos para o pensar”. Tal como por vezes não temos palavras para descrever determinados acontecimentos (sobretudo interiores), também aqui não tinha formações mentais para formular pensamentos que pudessem descrever a experiência. Simplesmente havia silêncio na minha mente, um silêncio recheado de conteúdo!

Antes de encetarmos caminhada, tivemos uma refeição onde comemos o maravilhoso arroz selvagem dos Himalaias. Assim, iniciado o percurso foi-se tornando óbvio o que deixávamos para trás: a civilização, as certezas, o conhecido. Quanto mais caminhávamos e nos embrenhávamos nas montanhas, mais a profundidade destas evocava o silêncio, um silêncio de um tom que me era desconhecido. Estávamos entre dois mundos.

A sensação de deixar o mundo para trás foi sendo cada vez mais premente, conforme os dias iam passando. Os vales sobre os quais tinha lido nos livros sobre os Mestres dos Himalaias, desenrolavam-se agora diante do meu olhar. A dificuldade em respirar o ar rarefeito, mantinha-nos cientes, sem divagações, de cada passo, de cada inspiração, de cada momento. E a escassez de ar para a expressão verbal, foi dando lugar à tranquilidade mental. A agitação e o frenesim eram pensamentos e realidades inexistentes. O pulo do coração ao ver os cenários era a marca de cada momento, mas até esse “pulo” era sóbrio, desprovido de exaltação, provido de profundidade.
Já não estava no mundo, tinha-o deixado para trás. Já não havia gente, cada som era imanente da natureza da montanha.

E assim os dias iam passando, caminhando, aprofundando…

Ao aproximarmo-nos do majestoso monte onde a circum-ambulação viria a ser feita, voltou também o encontro humano. Éramos agora muitos peregrinos, cada um na sua cadência, a circum-ambular a imponente montanha.

A meio da circum-ambulação pernoitámos num mosteiro tibetano numa encosta com franca vista para o Monte Kailash. Devido à escassez de recursos e às condições geográficas, os monges deste Mosteiro estavam num período em que podiam somente comer uma pequena tigela de tsampa, por dia. E assim esse foi também o nosso sustento, no permeio de tamanha caminhada.
Continuámos a peregrinação e surgiram-me várias memórias, como que a sublimarem-me, como que a perderem o impacto que tinham na minha vida. Comecei a aperceber-me que essas memórias estavam a surgir por ordem cronológica, com períodos de anos entre elas. Comecei a consciencializar-me de tal, e ao mesmo tempo a sentir-me mais leve.

Sentei-me numa pedra, reparei que tinha um papel no bolso e abri-o. Era a explicação do nosso guia sobre a circum-ambulação. Comecei a perceber que dividindo o percurso que tínhamos feito em anos de vida (da minha vida), as memórias que vieram correspondiam aos momentos em tinha passado no quilómetro correspondente ao que, segundo as tradições antigas, seria essa altura da minha vida. Sem querer mistificar verifiquei que as tradições antigas, que dizem que andar à volta do Monte Kailash é como que morrer para renascer novamente, e que nesse processo passamos simbolicamente pelas etapas da nossa vida, batiam certo com a minha experiência…

Terminada a circum-ambulação iniciámos a viagem de regresso à civilização, sem medos sem anseios. Foi como se tivéssemos passado por uma máquina do tempo e do espaço, onde as referências que tínhamos antes, já não condicionavam da mesma forma a nossa experiência do presente. Foi como passar para uma nova vida, para um novo estado de ser, no qual reencontramos o mundo através de um olhar novo, fresco e inocente, mas com a sapiência própria do ser adulto.

Antes do derradeiro salto do Sagrado para o Profano, fizemos um interregno no nada – no meio. Às margens do lago Manasorovara pernoitámos, em três noites e dias de paz em que a consciência se expandiu por horizontes nunca antes navegados.

Bem sejam todos os seres no caminho que trilham a senda da libertação, na honestidade e na integridade do seu íntimo.
   


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