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Poesias
de Antero de Quental
em 16 Nov 2006
(...anterior)
Cai do sétimo céu, se lá subira,
Tornando-se, assim como a quantidade,
Negativo ao passar pelo infinito.
III
Não te é dado sentir, não imaginas,
Os quadros (§) ideais, que debuchei,
Junto de ti, sujeito à tua lei,
Ouvindo as tuas belas sonativas.
Eu devo a essas mãos alabastrinas
Os sonhos mais formosos, que sonhei;
E em tão pequena base é que elevei
Os castelos, que vês hoje são ruínas.
Ó mãos esculturais, órgão perfeito
Da linguagem do gesto, mais facundo,
Às vezes, do que a boca dos poetas!
Se eu as pudera unir sobre o meu peito,
Veríeis na minha alma, novo mundo,
Nascerem lírios e surgir planetas.
IV
Vistes só galanteio, amor de sala,
Nos sintomas profundos da paixão,
Cuidando que eram fogos de Bengala
As lavas irrompentes dum vulcão
Porque, através do vosso coração,
O fogo, a luz do amor, que o meu exala,
Como uma raio sujeito à refracção,
A força diminui, quebra e resvala.
Ora vede que antítese mortal!
Vós viveis, qual Andrómeda florente,
Entre a neve polar, feliz e calma;
Eu, nascido na zona tropical,
Sinto queimar a vida à chama ardente
Das paixões que devoram a minha alma.
V
E jogo uma partida desigual:
Dei a minha alma a troco dum sorriso,
Julgando as portas ver do paraíso
Abertas nesses lábios de coral …
Como se fora a coisa mais banal,
Entreguei-vos minha alma, sem aviso;
E vós, minha Senhora, em jogo liso,
Dizei, podeis fazer parada igual?
Pois (aqui entre nós) ao algodão
Podeis pedir a forma, a correcção,
Da estátua clássica da mãe (§) do amor,
Podeis pôr o carmim, o alvaiade,
A beleza talvez, e a mocidade,
Mas a alma … oh, essa não se pode pôr!
VI
Eu não te adoro a ti, adoro o Amor,
O princípio, a ideia, e não o facto;
Sou filósofo e poeta, um amador,
Ardente, sim, mais ideal e abstracto.
Não quero usar da vista nem do trato,
Eu não dou culto à forma nem à cor;
Eu não adoro o Eidos, o retrato,
Mas o Tipo, que fez o criador.
Excessiva é talvez a teoria …
E confesso que a tua formosura
É contra ela um silogismo forte.
Mas juro-te, meu bem, que te amaria,
Paralítico e cego, em noite escura,
Sem te ver, nem tocar, até à morte.
VII
Eu respeito o dever, mas, em verdade,
A ideia não triunfa da paixão:
São acaso as funções do coração
Sujeitas ao império da vontade?
Duas forças, dever, fatalidade,
O céu e a terra em luta e colisão …
Eu proporia a mesma transacção
Dos papas e dos reis, na meia-idade:
«A alma pertence a Deus, o corpo ao Estado»
Dai a César, senhora, o que lhe é dado,
A realidade, os frutos do amor;
Dai a garganta ao laço social,
O vosso corpo ao leito conjugal
E a mim a alma, o sonho, o aroma, a flor.
VIII
Eu pedia somente, assim vos juro,
Um olhar inspirado de paixão,
O mais nem mesmo existe; a sensação
Vive um momento, mas não tem futuro.
Não permite o Dever, cárcere duro,
Que aos olhos venha a alma e o coração,
Como uns presos às grades da prisão,
A respirar dali um ar mais puro!
Eu sou daqueles que sabem viver,
Mantendo-se tão só do ideal,
Bebendo o néctar só dum sentimento.
O amor, que se inspira do prazer,
Tem quase o mesmo interesse material,
Que prefere o contracto ao sacramento.
IX
Ah! Não vinha de vós a luz radiante.
Dessa pálida tez só reflectida,
Dessa neve polar, branca e pulida,
Que os olhos me cegou, de fulgurante.
Era a luz, era o sol flutuante
Do ideal, da essência indefinida
(Ansiedade cruel de toda a vida …)
Que a fronte vos dourou por um instante
Miragem, visão óptica … mas pude
Julgar que te apreendia hoje por fim,
Eu que já sem esperança me definho
Adeus, sede feliz, tende saúde,
Se esse sol vos não queima: enquanto a mim
Seguirei anelante o meu caminho.
O INCONSCIENTE
Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.
Penetrando (com fronte não enxuta)
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta.
(... continua)
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