Fundação Maitreya
 
Vinhetas da Arte Visual Indiana

de Utpal K. Banerjee

em 05 Fev 2007

  «Ekam Sat Vipra Vahudha Vadauti. Estas palavras significam que a verdade é única; embora os pensadores lhe tenham atribuído vários nomes. Uma profunda e fundamental verdade uniforme liga todas as diversas expressões artísticas e culturais que assim mantêm as tradições e inovações, cultos e rituais e as suas adaptações modernas dentro, e além, dos limites das restrições dos ismos».

Lamento da Morte do Buddha- Arte GandhāraA Harmonia Luminosa:

Conhecer a arte e a cultura da Índia.

Eternos pensamentos, processos e práticas procuram germinar, enraízam-se e alcançam grandes auges num processo contínuo do desenvolvimento da vida. Na Índia, a arte e cultura significam uma forte tradição de requinte que é essencial para a realização da verdade.
Estamos a começar uma série sobre a arte e cultura indianas onde procuraremos abranger o vasto património indiano, que oferecerá ao leitor um panorama das suas artes visuais e representativas, aflorando-as de forma holística. Trataremos das tradições votivas, onde a devoção é um elemento fundamental, e procuraremos destacar as manifestações artísticas do Devi (Deusa Mãe), a Trindade e Ganesha (deus indiano com a cabeça de elefante).
Realizaremos também uma investigação das tradições e ritos indianos, onde uma fortíssima devoção tem influenciado as artes. Mais tarde, investigaremos os nossos santos-poetas, que são os Messias sociais da devoção.

A cultura indiana sempre teve uma grande interacção com o resto do mundo.
O islamismo teve um profundo impacto na arte e cultura indiana. Outra forte influência era a ligação cultural com a Ásia central e também com a Ásia do sul e do sudeste. As artes e a sociedade no subcontinente indiano sempre foram altamente interligadas, com as artes iluminando e acrescentando cor à vida quotidiana e às inumeráveis festas. Particularmente, realizaremos uma profunda investigação da sociologia da música indiana tal como a do cinema indiano. E finalmente, tratar-se-á da média criativa – que hoje em dia está a passar por um notável ressurgimento – onde realizaremos uma avaliação do papel fundamental desempenhado pelo realizador Satyajit Ray no desenvolvimento do cinema indiano.
Conhecimentos das tradições das artes visuais indianas – as pinturas, as esculturas, a arquitectura e o artesanato – revelam a natureza anónima da criação e uma percepção básica da disciplina e perícia que são integrais em qualquer acto criativo. É assim que a esteta Pupul Jayakar percebeu e interpretou a seguinte citação da conhecida obra literária, o Chāndogya Upaniṣad: “O espaço aqui, dentro do coração, é o ser completo”.
Segundo ela, é esse Espaço onde todos os sentidos se fundem numa harmonia completa e onde, no florescimento simultâneo dos sentidos, os limites internos e externos e a distinção entre a obra e o espectador desaparecem. Daí nasce o supremo conhecimento do criador que visualiza com um olho atento a pequena semente e o espaço infinito. E porque ele consegue ver as profundezas do objecto, ele pode criar.

Com uma percepção extraordinária, Panini, o primeiro dos célebres gramáticos do século V a.C. utilizou a palavra Shilpa como palavra genérica onde inclui pintores, bailarinos, músicos, tecelões, oleiros, alfaiates e, mais tarde até os malabaristas. Os princípios definitivos da geometria e da percepção espacial foram estabelecidos para todas as artes, juntamente com conceitos profundos da simbologia das cores.
Ao tratar da história da cultura indiana, podem-se identificar extraordinárias fases de desenvolvimento cultural que se realizam em ciclos de quinhentos anos. Há um extraordinário paralelo ao “século dourado” da Grécia no século V a.C., quando os grandes nomes – como, por exemplo, os dramaturgos Aristófanes, Sófocles, Euripidice e Aeschylus; o historiador Heródoto; o filósofo Sócrates e o médico Hipócrates – florFrescos das Cavernas de Ajantaesceram. O primeiro “século dourado” das artes visuais indianas realizou-se no século III a.C. com as requintadas esculturas em dimensões grandes como, por exemplo, a Chandravahini Yakshi em Pataliputra e a capitel do leão da época do império dos Maurya encontrada em Sarnath. Esta última peça é uma composição soberbamente organizada que representa quatro leões de pé que são voltados para os quatro pontos cardinais como emblema de poder e há ainda quatro figuras animais, alternadas com quatro rodas que representam a corrente de unidade que é fundamental na existência cósmica. Estas figuras encontram-se em cima de um lótus – a fonte de vida e inspiração criativa, e a peça inteira monta-se em cima de uma roda – o Dharma Chakra, símbolo da Lei Universal. Um simbolismo tão transparente é o padrão das antigas artes visuais. A arte de Ajanta, que abrange um inteiro milénio, também começa a partir do século III a.C.

O segundo auge na arte indiana aconteceu por volta do segundo século d.C. com o extraordinário realismo dos ícones do Buddha no período dos Kushanas no noroeste da Índia. As imagens do Buddha, como ser humano nas esculturas Gandhāra, foram inspiradas pelos modelos greco-romanos, enquanto as imagens da escola de Mathura se basearam nos protótipos duma Yaksha (divindade da natureza) indiana. Os dois estilos interagiram e resultaram nas clássicas esculturas budistas do período do império dos Gupta onde os hast mudas (posturas da mão) simbolizavam a piedade universal – pregando a lei, invocando a terra como testemunho, meditação e a conferir a paz e as bênçãos.
Nas esculturas e pinturas das regiões dos Himālayas, encontram-se imagens estilizadas, ao lado de cenas narrativas dos grandes acontecimentos na vida do Buddha.
Nas esculturas das cavernas de Udaygiri, perto de Bhubhaneswar, há uma outra representação das donzelas dançantes na Rani Gompha (a caverna da rainha) que data do mesmo século. No sul, surgem os épicos literários na escola da literatura Sangam, com obras-primas como, por exemplo, a Silapadikaran, Malaya Murathum e Mani Mekhlai, todas as quais contêm referências às artes visuais da época. No norte o Natya Shashtra (a ciência da dança) delineou os preceitos harmoniosos do Rasa, que é a essência artística – o elemento que penetra e transforma todos os aspectos da vida. Rasa é a mesma qualidade – uma onda crescente de beleza, e na sua ausência até um objecto de proporções e cores perfeitas continua a ser inanimado.

Pela época do terceiro auge no sétimo século, a arte de Ajanta atingiu o seu cume de perfeição. Numa incomparável representação visual e artística, a anatomia é representada duma forma soberbamente decorativa, uma intuição sensual de forma e cor. Recapitula o inteiro processo da história humana: a mãe com uma criança, a criança a brincar, o jovem a gozar dos prazeres da vida, o declínio dos sentidos, o afastamento da domesticidade, a tormenta da alma, e ao fim, a iluminação tranquila – e a volta ao mundo dos homens. É essa última descida para as maneiras tortuosas do mundo ordinário que se revelou de grande significância à arte. No sul, também no sétimo século, as pinturas encontradas em Badami, a capital da dinastia dos Chalukya, as pinturas Tirunandikkara de Tamil Nadu e as pinturas da época Pallava em Sittannavasal todas mostram traços da graça e simplicidade das pinturas de Ajanta. A arte monumental budista de Amarāvatī também é de grande importância, e a Brihaddesi de Matanga desenvolveu substancialmente os conceitos estéticos. Rapidamente, se verificoO deus Vishnuu a grandiloquência das pinturas e esculturas de Ellora. No norte, uma síntese das filosofias das escolas de budismo – a Mahāyāna e a Vajrayāna – introduziu uma nova e inovadora fase de arte himalaiana, com numerosos ícones e manuscritas ilustradas que o grande mestre tântrico Padmasambhava, o monge budista Shantirakshita e o discípulo Kamalashila levaram para as montanhas das planícies.

Ao fim do século XI, realizou-se o quarto auge. As pinturas da época da dinastia Chola desenvolveram-se em Tanjavur e estas trocaram a serenidade de Ajanta por um extraordinário dinamismo. Também se manifestou o potente simbolismo na magnífica imagem em bronze do Nacaradas, uma representação do Deus Śiva dançando, que irradia uma intensa força de vivacidade na figura. Na zona do este, a dinastia dos Pala deixaram à posteridade a peça do Narteshwar, uma imagem de Śiva com doze braços capturada numa postura de dança, juntamente com alguns extraordinários manuscritos ilustrados onde as harmoniosas e onduladas linhas de Ajanta foram reproduzidas numa escala miniatura. Enquanto uma vibrante tradição folclórica foi assimilada nas pinturas da época tardia do império Vijayanagar (Bisnaga) em Lapakshi, a grande profusão arquitectural em Orissa revelou a arte monumental por excelência em Bhubhaneswar e, mais tarde, em Konarak.

Ao mesmo tempo, em Khajuraho, nos domínios da dinastia dos Chandela manifestaram-se alguns dos melhores exemplos de arte visual na sua magnífica aglomeração de templos.
O quinto e último auge que se realizou por volta do século VII revelaram uma mudança qualitativa do etos. Por um lado, a escultura figurativa desapareceu e monumentos dedicados às divindades reduziram-se, dando lugar aos monumentos funerários. Muitas vezes executados liricamente, estes mausoléus são o padrão do estilo indo-sarraceno que aqui aperfeiçoou a sua evolução. Pelo outro lado, a simetria e formalidade dos Jardins de Paraíso, na sua visualização islâmica, inspirada na Pérsia combinaram-se com a paixão pela natureza em todas as suas formas e variedades dos monarcas da dinastia Mogol. Enquanto a Tāj Mahal continua a ser a mais exaltada manifestação da primeira ideia, os desenhos dos jardins de Shalimar, Chasma Shahi e Char Chinar são os cumes da arte de jardinagem. A terceira característica que se manifestou foi a escola das pinturas miniaturas aperfeiçoadas com habilidade nas Karkhanas (os ateliers) do imperador Akbar e daí em diante desenvolvida pelos artistas hindus e muçulmanos. Todavia, as actividades seculares da realeza Mogol foram pressagiadas pelas representações das divindades nas pinturas das escolas de pintura miniatura das regiões do Decão, de Rajastão e do estilo Pahari das montanhas.
Ao resumir, eram os conceitos de Rupa (expressão), Pramana (proporção) e Varna (tom) que constavam a base da harmonia na arte da Índia nas épocas antigas e medievais. Mas o elemento que a animou era o Rasa. O aperfeiçoamento da forma baseava-se em regras específicas das medidas, que foram aplicadas não somente à arquitectura, pintura e escultura, mas também ao artesanato funcional como, por exemplo, os têxteis, os adornos e as armas. Uma grande tradição artística surgiu das percepções sensórias que actuavam em harmonia. O Chitra Shastra (o tratado de pintura) forneceu a visão artística completa, que abrangia todos os sentidos. Segundo Jayakar, “isso é significância e abstração; cor e dimensão; humor e emoção; movimentos e a imobilização de movimento; símbolos e poesia; espaço, volume e forma”.

Uma outra característica digna de nota das artes criativas é o anonimato dos artistas juntamente com a natura eterna da criação que tem pouco a ver com a época cronológica. Estas duas características persistiam na Índia (pelo menos até o advento do islamismo) devido à natura votiva de todas as artes criativas. Albert Einstein disse uma vez, “A mais bela e profunda emoção que podemos conhecer é a sensação do místico. É a essência de todas as verdadeiras Ciências”. Na Índia, isso foi verdadeiramente a essência de todas as artes criativas e daí a modéstia de omitir a menção do nome do artista e a indiferença de classificar a arte numa época, simplesmente porque o artista criativo existirá eternamente.

Cortesia da Revista, India Perspectives
   


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