Fundação Maitreya
 
Ontologia conforme o Vedanta (Vedānta)

de Swāmi Siddheswarānanda

em 09 Jun 2008

  Vamos portanto deixar de investigar a origem da ilusão – basta acabarmos com ela! Não há nada melhor a fazer. Nunca saberemos como a ilusão está relacionada com a Realidade, Brahman, porque no próprio momento em que a Verdade é realizada, já não haverá mais razão para “demonstrar” a ilusão. A partir desse momento será em vão tentar descobrir a “ligação” intermediária entre o Conhecimento e a ignorância.

Esta é agora a ocasião apropriada para expor a doutrina que, em certo sentido, é a pedra basilar da filosofia Vedānta.

A Verdade última, a Verdade absoluta, é o Eu (1)
E este Eu, ainda que se manifeste através de inumeráveis individualidades,
É um e único.


O mundo em que vivemos, nos movemos e existimos,
Não tem outra realidade
Senão aquela que o Eu lhe confere.


Os outros sistemas do pensamento Hindu esforçam-se, cada um de um modo diferente, por determinar a verdade objectiva das coisas. O Vedānta tenta encontrar a verdade formulando o problema desta forma: “Em todo este espectáculo – onde está o Real?”. Ao fazê-lo colocou a questão fundamental e, ao proceder à sua investigação, não só descobriu várias perspectivas do Real, como também encontrou provas válidas, com a ajuda das quais é possível definir e apreender a Verdade mais elevada. Porque no Vedānta essa Verdade é a Realidade ontológica (paramarthica satta)(2), sob cujo aspecto a Realidade é imutável. Nenhuma mudança a pode afectar.

Brahman ou Ātman
é a base metafísica do universo manifestado.
Dessa base excelsa, o mundo forma
tão somente a segunda ordem dessa realidade.


A realidade empírica (vyavaharika satta) limitada pelo continuum espaço-tempo, é contingente. Ela só existe onde se aplicam as leis da causalidade. Se atravessarmos essa fronteira, se continuarmos até ao limite – e é em turīya (3) que a atingimos – o mundo é rigorosamente aniquilado. Portanto, visto da posição de paramarthika o mundo manifestado não tem um valor absoluto. Contudo, enquanto os fenómenos se manifestam assumem perante os nossos olhos o aspecto de Real.

Entre as duas categorias de existência fenoménica – pensamentos e objectos – a mente fortalece uma tendência que lhe é natural: dá aos objectos um maior grau de realidade do que aos pensamentos, porque os objectos parecem possuir uma característica particular – estabilidade – a qual se encontra totalmente ausente nos pensamentos. É por isso que consideramos o mundo exterior como real, enquanto que atribuímos ao mundo interior – essa construção ideal no seu conjunto – meramente inferior de realidade, devido ao carácter tão evanescente dos pensamentos. Contudo, vivemos permanentemente num mundo “mental” e, estamos sempre a tentar coordenar os pensamentos interiores com os objectos externos.

Em sentido figurado, o mundo subjectivo (asmaj jagat) e o mundo objectivo (yusmaj jagat) formam a urdideira(*) (a primeira) e trama (a última) com que tecemos a nossa experiência no mundo (vyavahara). E Ātman é sucessivamente identificado com buddhi (a razão pura), buddhi com a mente (manas), e a mente com o sentido do eu (ahaṃkāra)(4), e o órgão interno (antahkaraṇa)(5), no impulso que o transporta para o exterior, finalmente identifica-se com o corpo denso (deha). O jīva(6) (a individualidade vivente) torna-se então ciente relativamente a si próprio, de que os objectos que o rodeam possuem uma realidade mais elevada. Ele transfere-lhes todo o seu poder afectivo. A roda da transmigração (saṃsāra)(7) é colocada em movimento e, enquanto passa por uma série de provas e sofrimentos, a mente coloca continuadamente a si própria a mesma questão: “Onde está o Real?”. Todos os erros têm a mesma causa - todos provêm de uma falsa concepção! Falhámos no reconhecimento desta verdade essencial:

No que respeita ao Eu, tanto os objectos como os pensamentos
não têm maior ou menor valor.


É este o erro fundamental que, de algum modo, criou a multiplicidade onde só existe o Um, o sem segundo.
Assim que se tenha o recurso da discriminação para que a Verdade última seja libertada, asseguraremos algo da maior importância:

A intuição da Realidade é prioritária a todos os nossos pensamentos.

Certamente que a intuição Brahman-Ātman aparece na forma do mundo sensível, mas uma vez que esta manifestação aparece e desaparece alternadamente, não temos o direito de o considerar como a Verdade última.
Além desta segunda ordem de realidade, o Vedānta reconhece uma terceira: a realidade ilusória (pratibhasika satta). Numa primeira abordagem no ocidente, esta terminologia causa sempre alguma surpresa. No entanto, efectivamente está relacionada com uma realidade, pois, sempre que tivermos uma experiência deste tipo, não temos a mínima noção de que somos vítimas de ilusão.
Estas ilusões podem ser classificadas em três categorias principais:

a. A ilusão individual: no lusco-fusco eu confundo um pedaço de corda com uma cobra, ou um pedaço de madrepérola com uma moeda de prata. A ilusão dura pouco. Logo que desaparece, apercebo-me que a moeda de prata ou a cobra foram apenas criações mentais. A partir desta experiência pode-se tirar uma conclusão importante: a mente tem a faculdade de se dividir a si própria e projectar uma ordem de fenómenos fora dela mesma de tal forma que, para mim, nesse momento, os objectos não existem na realidade, mas assumem temporáriamente uma forma e que eu reajo em relação a eles como se fossem reais.

b. A ilusão colectiva: as que, por exemplo, são produzidas pelos mágicos ilusionistas. Se se pretender que a prova da realidade das coisas está no facto dessa coisa ser percepcionada simultaneamente por várias pessoas, então as ilusões colectivas sobrepõem-se à da esfera individual, na qual as experiências do primeiro tipo estavam limitadas porque, no caso do mágico ilusionista – e lembramo-vos da ilusão da corda – muitos espectadores testemunham o espectáculo. Aqui a experiência deixa de ser particular. É colectiva. Quando o acto acaba, os espectadores compreendem que, finalmente, nada aconteceu. Uma máquina de filmar pode, além disso, produzir uma prova irrefutável: tudo o que a multidão viu foi, nada mais que, uma simples criação mental. O orgão interno tem, portanto, a propriedade de produzir certos tipos de fenómenos nos quais as duas categorias de existências estão inevitávelmente associadas à vida empírica, isto é pensamentos e objectos são clara e distintamente apresentados para serem vivenciados.

c. A ilusão do sonho: Enquanto perdura a ilusão do sonho, ela é uma realidade do estado de vigília. O sonho tem de acabar para que reconheçamos o seu carácter irreal. Mas durante a ilusão, o actor e a cena que se está a desenrolar, estão situados ao mesmo nível. Eles têm exactamente o mesmo grau de realidade. Além disso, todos os actores secundários que têm um papel a desempenhar na comédia ou drama do sonho, participam no espectáculo com a mesma qualidade que o actor principal. Isto contrasta com a experiência da cobra que é particular, ou com a ilusão da corda, que é pública, porque, neste último caso, é um grupo – embora limitado – que está a percepcionar o espectáculo. Na ilusão do sonho, o próprio sonhador está a representar num número ilimitado de papéis: o de todos os personagens que preenchem o sonho. E o ego do sonho – modificado ou multiplicado – vive, movimenta-se e tem o seu ser num mundo que, em sim mesmo, é tão real como o deste ego. Quando o sonho é quebrado, mantemos a impressão persistente que, por si mesma, a mente, criou uma experiência dentro de um universo que era, interiormente e só por si completo.

Ao estudarmos este três tipos de fenómenos, a metafísica Hindu não fica pelo aspecto ilusório. Em vez disso, procura chegar à seguinte conclusão: a mesma substância tem, por si própria, a capacidade de se apresentar, ao mesmo tempo, como sujeito e objecto, sem que a sua natureza essencial seja afectada. A substância é a mente. De facto, a mente não foi alterada de forma alguma pelas várias séries de manifestações temporárias. Quando estas manifestações terminam, a mente mantém-se como dantes. Então estivemos a viver uma experiência num mundo que é completamente criado, sem termos a menor consciência de que era apenas uma ilusão. Agora, mesmo no estado de vigília, uma intuição da verdade leva-nos a colocar a questão:

Haverá uma base comum para a diversidade de fenómenos que percepcionamos agora, no estado de vigília?

E, se essa base existe, como podemos saber que é a Realidade?

Estabelecer a Realidade é, de facto, o objectivo da toda a filosofia verdadeira.
O Vedānta, então, chegou à conclusão que o Real é a Verdade, preenchendo as seguintes três condições. Esta Verdade tem de ser:

- livre de contradições;
- tão evidente que não precisa de provas;
- universal, no sentido mais lato da palavra.

Se tão restrito critério for aplicado, então só Brahman é real, e este Brahman é idêntico a Ātman, o Eu que reside na individualidade humana. Esta é, então, a descoberta expressa pela fórmula sagrada (mahāvākya)(8) dos Upaniṣads:Tat tvam asi” (Tu és Isso). Se este conhecimento se tornar claro para nós, então em simultâneo, a cognição do mundo fenoménico se extinguirá, e a natureza da Alma é realizada como “Sat – Cit - Ānanda” (Ser – Consciência – Felicidade).

Os outros sistemas da filosofia Hindu mantêm que, no estado de libertação, a Alma recupera a sua pureza original, se bem que o mundo tal como é continue a existir. Em todos eles, a libertação (mukti) significa que, nas experiências mais elevadas, o Eu se encontra dissociado tanto da ideação subjectiva como do mundo objectivo. O Eu, liberto de todas as ligações, foi portanto considerado nas escolas de Nyāya-Vaiśeṣika e Mīmāmsā como sendo a não consciência, e pelo Sāṃkhya e Yoga como Inteligência pura. Neste ponto de vista o Vedānta separa-se de todos os sistemas precedentes e, por um método dialéctico, prova que o mundo só existe quando relacionado com a imaginação ilusória. Os dois nacem, permanecem e desaparecem em simultâneo. Logo que surge o Conhecimento (jñāna) o Um permanece para exclusão de tudo o resto. Acontece assim – não porque a ligação entre o Eu e o mundo tenha sido abolida – mas porque a aparência do processo cósmico (saṃsāra) não representa a Verdade última.

A percepção do mundo na experiência normal é equacionada à semelhança da percepção ilusória da moeda de prata, uma ilusão que ocorre no que respeita ao pedaço de madrepérola, sempre que o “percepcionado” for considerada real. Mas quando a ilusão se esvai, o que acontece à crença da moeda de prata como realidade? Assim que o conhecimento errado é reconhecido, o seu encanto é completamente arruinado. Nada pode reavivar a ilusão – ela foi morta:

Saber a verdade e destruir o erro
São uma e a mesma coisa!


Vamos portanto deixar de investigar a origem da ilusão – vamos antes tentar dar-lhe um fim! Não há nada melhor a fazer. Nunca saberemos como a ilusão está relacionada com a Realidade, Brahman, porque no próprio momento em que a Verdade é realizada, já não haverá mais razão para “demonstrar” a ilusão. A partir desse momento será em vão que tentaremos descobrir uma “ligação” intermediária entre o Conhecimento e a ignorância.

Os Upaniṣadas também afirmam que a Verdade é uma, e Śaṅkara adiciona nos seus comentários que a multiplicidade não é um “erro” – a multiplicidade é “māyā”. Além disso, māyā não esteve em momento algum ligada a Brahman, quer no que respeita ao cosmos quer no que respeita às individualidades, porque essa ligação nunca foi estabelecida no tempo. Māyā só existe enquanto o erro continuar. Portanto não foi uma entidade “real” que produziu a aparência “real” do mundo. Māyā é uma categoria onde as três divisões da lógica formal foram objecto de escárneo: Ser (sat), não-Ser (asat), e o princípio do meio-termo excluído. Ninguém pode dizer que māyā “é”, ou que māyā “não é”. Os sonhos e cognições ilusórias são uma clara demonstração disso mesmo:

O factor que criou a ilusão
É da mesma duração que a ilusão.


Brahman não é, de modo nenhum, afectado por esta ligação temporária e ilusória, porque, finalmente, não é uma ligação real. Não é uma questão de ligação real, mas apenas uma simples aparência.

Tradução de José Carlos Rodrigues

Notas do Tradutor:
Eu, Eu Absoluto, Eu Superior, Espírito (Ātman) em contrapartida com o eu inferior. Esta é uma palavra de difícil tradução pois Self, traduzido à letra é Eu-mesmo, Si-mesmo. Em termos de psicologia, o Self preconiza um conceito alargado de individualidade no cosmos, na unidade espiritual.
2 Paramarthika satta – A Verdade única absoluta, a única Realidade, segundo o Vedānta.
3 Turīya – Estado de elevada consciência espiritual ou Consciência Absoluta.
4 Ahaṃkāra – Concepção da própria individualidade. Consciência de si próprio.
5 Antakaraṇa – Instrumento. Órgão interno da mente. É a Alma como reflexo do Espírito (Ātman).
6 Jīva – Ser vivente. A Alma na sua individualidade, distinta da Alma Universal.
7 Saṃsāra – Literalmente: rotação. A roda de nascimentos e mortes.
8 Mahāvākya – Asserções no Vedānta, tal, “Tat tvam asi” (Tu és Isso) ou (Tu és Brahman).
* Warp and Woof – expressão inglesa que se traduz por urdideira (base) e trama (malha) na tecelagem.

[Para leituras adicionais, ver também: 'The Metaphysical Intuition: seeing God with open eyes' by Swāmi Siddheswarānanda. Monkfish Book Publishing, USA, 2006.]

Este texto foi amavelmente enviado por um colaboração da Noruega, André van den Brink
   


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