Fundação Maitreya
 
Plena Atenção - 2ª Parte

de Ajahn Sumedho

em 24 Jan 2011

  Caminhar “Jongrom”* é uma prática de caminhar centrados no movimento dos pés. Trazemos a atenção para o caminhar do corpo desde o princípio de determinado percurso, até ao fim. Damos meia volta e paramos. Surge então a intenção de andar e assim o fazemos. Reparem no meio do caminho e no fim, parando, virando, ficando parado; os momentos em que acalmamos a mente quando esta começa a divagar em todas as direcções. Se não tivermos cautela podemos planear uma revolução ou algo assim enquanto fazemos jongrom! Quantas revoluções terão sido planeadas durante jongrom…? Então em vez de fazer coisas como essas usamos esse tempo para nos concentrarmos naquilo que na verdade está a acontecer. Não são sensações fantásticas mas sim tão comuns que nem reparamos nelas. Reparem que é preciso esforço para estar verdadeiramente consciente de coisas assim.

Caminhando atentamente (Jongrom)

Quando a mente vagueia e dão por vós na Índia enquanto estão a meio do caminho do jongrom, então reconheçam – “Oh!” – nesse momento estão despertos e por isso podem restabelecer a vossa mente no que está realmente a acontecer, o corpo a andar de um ponto para o outro. É um treino de paciência pois a mente vagueia por todo o lado. Se no passado tiveram momentos de graça enquanto faziam jongrom e pensarem “no último retiro fiz meditação andando e realmente senti apenas o corpo a andar; senti que não havia “eu” e foi maravilhoso, oh, se o pudesse fazer de novo…” observem então esse desejo de obter algo de acordo com uma memória de um momento feliz. Reparem nisso como uma condição pois isso é um obstáculo. Abram mão de tudo, não importa se daí resultará um momento de graça ou não. Apenas um passo e depois um novo passo – isso é tudo o que é preciso, um deixar ir, um ficar satisfeito com pouco em vez de tentarem obter um estado de graça que talvez tenha acontecido a dada altura, durante este tipo de meditação. Quanto mais tentarem pior ficará a vossa mente pois estão a perseguir o desejo de ter uma determinada experiência maravilhosa, de acordo com a vossa memória. Fiquem satisfeitos com as coisas como elas são neste momento, em vez de se precipitarem a fazer algo para obterem determinado estado desejado.

Um passo de cada vez - reparem quão pacífico é fazer meditação andando quando tudo o que temos de fazer é estar presentes em cada passo. Mas se pensarmos que temos de desenvolver samādhi através desta prática e a nossa mente viajar em todas as direcções, o que é que acontece? “Eu não suporto este tipo de meditação, não alcanço nenhuma paz com ela; tenho praticado tentando ter este sentimento de “andar sem ninguém andar” e a minha mente simplesmente vagueia por toda a parte” – isto acontece porque ainda não percebemos como fazê-lo; a nossa mente está a idealizar, a tentar

obter algo ao invés de simplesmente ser. Quando estamos a andar tudo o que temos de fazer é andar. Um passo, um próximo passo – simples… Mas não é fácil, não é? A mente é distraída, tentando perceber o que deveríamos estar a fazer, o que está errado connosco e porque não o conseguimos fazer.
Mas no mosteiro o que fazemos é levantarmo-nos de manhã, fazer os cânticos, meditar, sentar, limpar o mosteiro, preparar a comida, sentar, levantar, andar, trabalhar, … o que quer que seja, simplesmente fazemos aquilo que surge para fazer, uma coisa de cada vez. Então, estar com as coisas como elas são é desapego, é isso que traz paz e alívio. A vida muda e podemos observá-la a mudar, podemo-nos adaptar à mudança do mundo dos sentidos, qualquer que seja. Quer seja agradável ou desagradável, podemos sempre aguentar e colaborar com a vida, aconteça o que acontecer. Se realizarmos a verdade, realizamos a paz interior.

*Jongrom (palavra tailandesa): andar para a frente e para trás num caminho a direito. Ver pág. 2

Amor Incondicional (mettā)
Em inglês a palavra “love” (amor) refere-se a “algo de que gostamos”. Por exemplo “gosto de arroz pegajoso”*, “gosto de manga doce”. Na verdade quer dizer que gostamos dessas coisas. Gostar é estar apegado a algo como por exemplo a certa comida que apreciamos ou adoramos. Não a amamos. Mettā significa amar o inimigo. Se alguém nos quer matar e dissermos “Gosto desta pessoa”, parece uma tolice! Mas podemos amá-la, no sentido de que nos podemos abster de pensamentos desagradáveis e de desejos de vingança, ou mesmo de qualquer desejo de a magoar ou aniquilar. Mesmo que não gostemos dos inimigos – pessoas miseráveis, vilões – ainda assim podemos ser amorosos, generosos e caridosos para com eles. Imaginemos que um bêbado imundo, nojento, feio e malcheiroso vinha a esta sala. Se, apesar de não haver nada nele que nos atraísse, disséssemos “Gosto deste homem”, seria ridículo. Mas podemos amá-lo, não ficarmos imersos na aversão, não sermos apanhados nas reacções resultantes desta desagradável situação. Isso é o que queremos dizer com mettā.

Por vezes existem coisas de que não gostamos em nós próprios, mas mettā significa não ficarmos agarrados mentalmente aos nossos sentimentos, problemas, atitudes e pensamentos. Torna-se assim, numa prática imediata de estar muito consciente. Ser consciente significa ter mettā em relação ao medo na vossa mente, ou ao ódio, ou ao ciúme. Mettā significa não criar problemas sobre as condições da existência, permitir que estas se desvaneçam, cessem. Por exemplo, quando o medo vem ao de cima podem ter mettā pelo medo, no sentido em que não criam aversão ao medo. Podem simplesmente aceitar a sua presença permitindo, dessa forma, que este cesse. Podem também minimizar o medo reconhecendo que é o mesmo tipo de medo que todas as pessoas têm e até mesmo os animais. Não é o meu medo, não é um medo pessoal, é um medo impessoal. Começamos a ter compaixão pelos outros seres quando percebemos o sofrimento implicado na reacção ao medo nas nossas próprias vidas – a dor, por exemplo a dor física que têm quando alguém vos dá um pontapé. Este tipo de dor é exactamente o mesmo que um cão sente quando é pontapeado. Por isso podem sentir mettā pela dor, no sentido da gentileza e paciência que é não permanecer em rejeição. Podemos trabalhar com mettā internamente, com todos os nossos problemas emocionais. Se pensarem “Quero me ver livre disto, isto é terrível” isso é uma falta mettā por vós próprios, não é? Reconheçam o desejo de se “verem livres de”. Não se deixem prender na vossa recusa às condições emocionais existentes. Não precisam de fingir que aprovam os vossos erros. Com certeza não pensam “Gosto dos meus erros”. Algumas pessoas são tontas o suficiente para dizer “As minhas falhas fazem de mim um ser interessante. Tenho uma personalidade fascinante devido às minhas fraquezas”.

*sticky rice: “arroz pegajoso” – consiste num tipo de arroz glutinoso que após cozinhado torna-se translúcido e pegajoso. Este é um prato básico do dia-a-dia das populações do norte e nordeste tailandês, sendo tradicionalmente comido à mão.

Mettā significa o não condicionamento de crerem que gostam de algo do qual não gostam de todo; é simplesmente não viver em aversão. É fácil sentir mettā por algo que gostamos – crianças pequenas e bonitas, pessoas com bom ar, pessoas agradáveis e com bons modos, cãezinhos amorosos, flores maravilhosas – podemos sentir mettā por nós próprios quando nos sentimos bem: “Agora sinto-me feliz comigo próprio”. Quando as coisas correm bem é fácil sermos amáveis para com aquilo que é bom, bonito e maravilhoso. Nessa altura podemos perder-nos. Mettā não é apenas boas intenções, bons sentimentos ou pensamentos elevados; é também algo muito prático.
Se formos muito idealistas e odiarmos alguém, sentimos, “Eu não devia odiar ninguém. Os Budistas deveriam ter mettā por todos os seres vivos. Eu deveria amar toda a gente”. Tudo isso surge de um idealismo impraticável. Devem ter mettā por essa aversão que sentem, pela pequenez da mente, pelo ciúme, pela inveja. Isto significa co-existir pacificamente, não tornar as coisas difíceis ou criar problemas a partir de coisas que surgem na vida, nos vossos corpos e mentes.

Em Londres costumava ficar muito aborrecido quando viajava no Metropolitano.
Costumava odiar aquelas estações de metro horrorosas com posters publicitários repelentes e as enormes multidões de pessoas naqueles comboios horríveis e deprimentes, que produziam um tremendo ruído ao longo dos túneis. Costumava sentir uma total falta de mettā (paciência-amabilidade). Costumava recusar tudo isso quando decidi fazer da minha prática uma meditação paciente/amável quando viajava no Metropolitano de Londres. Então passei realmente a desfrutar em vez de viver ressentido. Comecei a sentir-me amável para com as pessoas. A aversão e o queixume desapareceram completamente.
Quando sentirem antipatia em relação a alguém reparem na tendência que temos para adicionar algo: “Ele fez isto e aquilo e ele é assim e não deveria de ser”. E quando realmente gostamos de alguém “Ele consegue fazer isto e consegue fazer aquilo. Ele é bom e generoso”. Mas se alguém diz “Aquela pessoa é mesmo má!” sentimo-nos zangados. Se odiarem alguém e outra pessoa fala bem da primeira, sentem-se zangados. Não querem ouvir o quanto o inimigo é bom. Quando estão cheios de ódio não conseguem imaginar que alguém que odeiam possa ter virtudes e mesmo que tenham, vocês nunca conseguem lembrar-se de nenhuma. Só se lembram do que é mau. Quando gostam de alguém até mesmo as suas falhas podem ser adoráveis – “pequenas falhas que não fazem mal algum”.

Reconheçam isto na vossa própria experiência; observem a força do gostar e do não gostar. Bondade paciente, mettā, é um instrumento muito útil e efectivo para lidar com todas as pequenas trivialidades que a mente cria à volta de experiências desagradáveis. Mettā é também um método muito útil para quem tem mentes muito críticas e discriminativas. Só conseguem ver os defeitos em tudo, mas nunca olham para si próprios, apenas vêm o que está “lá fora”.
Nos dias de hoje é bastante comum as pessoas queixarem-se constantemente do tempo ou do governo. A arrogância pessoal dá lugar a estes comentários bastante antipáticos acerca de tudo, ou falarem de alguém que não está presente, dilacerando-o de forma bastante acutilante e objectiva. São tão analíticos que sabem exactamente o que aquela pessoa precisa, o que deveria ou não fazer e porque é desta ou daquela maneira. É impressionante ter uma mente crítica tão aguçada e saber o que é suposto os outros fazerem. Claro que o que estão a dizer é que “Na verdade sou muito melhor que eles”.
Não têm de pôr a mão à frente dos olhos para não ver as falhas e os defeitos em tudo. Têm apenas de coexistir pacificamente com eles, sem exigir que sejam de outra maneira. Mettā por vezes significa não dar demasiada atenção ao que está de errado convosco e com os outros – não significa que não reparam nessas coisas, significa não criar problemas acerca delas. Esse tipo de indulgência acaba ao serem ternos e pacientes – coexistindo pacificamente.

Plena Atenção no Trivial
Durante a próxima hora vamos praticar caminhando, usando o movimento do andar como objecto de concentração, colocando a nossa atenção no movimento dos pés, e na pressão destes ao tocarem o chão. Também podem usar o mantra “Buddho”“Bud” para a direita e “-dho” para a esquerda, usando a distância do caminho do jongrom. Tentem estar inteiros nisso, plenamente atentos na sensação do andar desde o princípio do caminho do jongrom até ao fim. Usem um ritmo normal; depois podem abrandar ou acelerar. Desenvolvam um ritmo normal, pois a nossa meditação move-se mais ao redor de coisas simples do que das extraordinárias. Usamos a respiração normal, não uma especial técnica de respiração; usamos a postura de sentados e não a de nos apoiarmos na nossa cabeça; andamos normalmente ao invés de correr, marchar ou andar metodicamente devagar – a um ritmo naturalmente descontraído. Estamos a praticar com o que há de mais comum porque tomamos essas coisas como garantidas. Mas agora colocamos a nossa atenção em tudo o que tomámos como garantido e no qual nunca reparámos, tal como a mente e o corpo. Até médicos licenciados em fisiologia e anatomia não estão na realidade com o seu corpo. Eles dormem com os seus corpos, nascem com os seus corpos, envelhecem, têm de viver com eles, alimentá-los, exercitá-los e ainda assim eles irão falar-vos acerca do fígado como estando num quadro. É mais fácil olhar para um fígado num quadro do que sermos conscientes do nosso próprio fígado, não é? Então olhamos para o mundo como se de alguma forma não fizéssemos parte dele e aquilo que é mais comum, que é mais vulgar, deixamos passar, pois estamos sempre a olhar para tudo o que é extraordinário.

A televisão é algo extraordinário. Aparecem todo o tipo de coisas fantásticas, românticas e cheias de aventura na televisão. É uma coisa miraculosa e portanto é algo em que é muito fácil concentrarmo-nos. Podemos ficar hipnotizados pela TV. E quando o corpo se torna extraordinário, digamos por exemplo, quando fica muito doente ou doloroso, ou quando sentimos êxtase ou sentimentos maravilhosos, também reparamos nisso! Mas a simples pressão do pé direito no chão, o simples movimento da respiração, o mero sentir do corpo sentado no seu assento quando não realiza nenhum tipo de sensação extrema – estas são coisas para as quais estamos agora a acordar. Estamos a pôr a nossa atenção na forma como as coisas são na vida comum.

Quando a vida se torna extrema, ou extraordinária, apercebemo-nos que somos capazes de colaborar bastante bem com ela. Pacifistas e objectores de consciência são frequentemente abordados com a famosa questão “Se não acreditas em violência o que farias se um maníaco atacasse a tua mãe?” Isso é algo com que a maior parte de nós nunca teve de se preocupar muito! Não é o tipo de ocorrência diária comum na nossa vida. Mas se tal situação extrema surgisse, tenho a certeza de que faríamos algo apropriado. Até mesmo alguém muito doido consegue ser consciente em situações extremas. Mas na vida do dia-a-dia enquanto não acontece nada de extremo, quando estamos apenas aqui sentados, podemos ser completamente loucos, não é? A disciplina do Pātimokkha* diz que nós, monges, não devemos magoar ninguém. Então fico aqui sentado a pensar no que faria se um maníaco atacasse a minha mãe?! Acabo por criar um enorme problema moral nesta situação tão vulgar, em que estou aqui sentado, sem sequer a minha mãe estar presente. Em todos estes anos nunca houve a menor ameaça à vida da minha mãe por parte de maníacos (mas da parte de condutores californianos houve!). Às grandes questões morais podemos responder facilmente de acordo com o tempo e lugar se, no presente, estivermos conscientes deste tempo e deste lugar.

Estamos assim a dar atenção à trivialidade da nossa condição humana: a respiração do corpo, o andar desde uma ponta do caminho de meditação até à outra, os sentimentos de prazer e dor. À medida que os dias de retiro vão passando, examinamos absolutamente tudo, observamos e reconhecemos tudo tal como é. Esta é a nossa prática de vipassanā – conhecer as coisas como são e não segundo alguma teoria ou pressuposições.

*Pātimokkha: o código monástico composto por 227 regras e observâncias que governam a conduta dos monges Budistas da tradição Theravada.

Ouvir o Pensamento
Quando abrimos a nossa mente, ou “abrirmos mão”, focamos a atenção num único ponto ao observarmos, ao sermos a testemunha silenciosa que está consciente do que surge e do que passa. Com a vipassanā (meditação de percepção), usamos as três características, anicca (impermanência), dukkha (insatisfação) e anattā (não-eu) para observar fenómenos físicos e mentais. Estamos a libertar a mente da repressão cega, de forma a que, se ficarmos obcecados com quaisquer pensamentos comuns, medos, dúvidas, preocupações ou iras, já não precisamos de os analisar. Não temos de descobrir porque é que os temos mas apenas de os trazer por completo à nossa consciência.
Se estiverem verdadeiramente assustados com algo, estejam conscientemente assustados. Não fujam mas reparem nessa tendência de se tentarem ver livres disso. Tragam completamente à consciência o objecto do vosso medo. Pensem deliberadamente nisso, e escutem os vossos pensamentos. Isto não é para analisarmos mas sim para levarmos o medo ao seu absurdo, onde se torna tão ridículo que nos podemos começar a rir dele. Escutem o desejo, a loucura do “Quero isto, quero aquilo, tenho de ter, não sei o que farei se não tiver isto, e quero aquilo …” Por vezes a mente pode estar somente a gritar “Eu quero isto!” – e nós conseguimos ouvir isso.

Estive a ler sobre confrontos, quando gritamos uns aos outros e dizemos todas as coisas que estão reprimidas na nossa mente: isto é um tipo de catarse mas sem uma atitude consciente. Falta-lhe a capacidade de observar esse acto de gritar como uma condição, ao invés de simplesmente “deixarmo-nos ir na onda” e dizer tudo o que pensamos. Falta-lhe a firmeza mental, capaz de suportar os pensamentos mais tenebrosos de forma a acreditarmos que estes não são problemas pessoais. Assim podemos levar, mentalmente, o medo e a ira a uma posição absurda, onde eles são vistos como uma simples progressão natural do pensamento. Passamos a pensar deliberadamente em tudo quanto temos medo de pensar, não irracionalmente, mas observando e escutando tudo como condições da mente e não como problemas ou falhas pessoais.

Assim, nesta prática, começamos a deixar as coisas seguirem o seu curso. Não têm de andar às voltas à procura de algo específico, mas sempre que surgirem pensamentos obsessivos que vos aborrecem e de que se estão a tentar livrar, tragam-nos ainda mais à luz da consciência. Pensem deliberadamente neles em voz alta e oiçam, como se estivessem a ouvir alguém a falar do outro lado da cerca, como que uma velha tagarela: Fizemos isto e fizemos aquilo, e depois fizemos isto e depois fizemos aquilo… e a velha senhora naturalmente continua a divagar! Agora, como prática, tentem ouvir a mente como se fosse a voz dessa senhora, em vez de a julgarem dizendo Oh, não! Espero que isto não seja eu, esta não é a minha verdadeira natureza ou tentando calá-la dizendo “Eh, ó velhota, desaparece, vai-te embora!” Todos temos essa tendência; até mesmo eu a tenho. É somente uma condição da natureza, não é? Não é uma pessoa.

Então, esta tendência inoportuna que temos – Eu trabalho tanto, nunca ninguém me agradece – é uma condição, não uma pessoa. Por vezes, quando estamos rabugentos, ninguém faz nada como deve de ser – mesmo quando fazem tudo bem, estão sempre a fazer mal. Essa é outra condição da mente, não é uma pessoa. A rabugice, o estado rabugento da mente é conhecido como uma condição: anicca – transitório; dukkha – não é satisfatório; anattā – não é uma pessoa. Existe o medo do que é que os outros pensarão de nós se chegarmos tarde: adormecemos, entramos e começamos a preocupar-nos sobre o que todos estão a pensar de nós por termos chegado tarde – Eles pensam que sou preguiçoso. A preocupação com o que os outros pensam é uma condição da mente. Pode também acontecer estarmos sempre aqui a horas e quando alguém chega tarde nós pensamos Chegam sempre tarde; será que nunca conseguem chegar a horas?! Também isso é outra condição da mente.
Estou a trazer as coisas triviais para um nível completamente consciente, todas aquelas coisas que simplesmente pomos de lado justamente por serem triviais. Não nos queremos preocupar com as trivialidades da vida! Mas quando não nos importamos, tudo isso fica reprimido tornando-se num problema. Começamos a sentir ansiedade, a sentir aversão a nós próprios ou aos outros, ou a ficar deprimidos; tudo isso vem da recusa em aceitarmos que as condições, trivialidades ou coisas horríveis, se tornem conscientes.

Surge assim o estado mental da dúvida, que nunca tem a certeza do que fazer: surge o medo, a incerteza e a hesitação. Tragam deliberadamente ao de cima o estado de incerteza e descontraiam nesse ponto em que a mente se estabelece quando não estamos agarrados a nada em particular. O que devo fazer, devo ir ou devo ficar, devo fazer isto ou aquilo, devo fazer ānāpānasati ou vipassanā? Observem isso. Coloquem-se questões que não podem ser respondidas, como Quem sou eu? Reparem nesse espaço vazio que antecede o pensamento de Quem?. Estejam alerta, fechem os olhos e imediatamente antes de pensarem quem, observem: a mente está bastante vazia, não está? Segue-se quem sou eu? e de seguida um espaço depois da interrogação. Esse pensamento vai e vem do nada, do vazio, não é? Quando estamos pura e simplesmente emaranhados no processo pensante habitual não conseguimos observar o pensamento a surgir, ou conseguimos? Não conseguimos ver, somente conseguimos reparar no pensamento depois de o termos começado a pensar. Então comecem a pensar deliberadamente de forma a apanharem o começo do pensamento, antes de na verdade começarem a pensá-lo. Agarrem deliberadamente em pensamentos como Quem é o Buddha?. Pensem isso intencionalmente e verão o começo, a formação e o fim do pensamento, e também o espaço que o envolve. Estão a observar os pensamentos e os conceitos em perspectiva em vez de reagirem a eles.

Imaginem que estão zangados com alguém. Pensam “Isso é o que ele disse, ele disse isto e aquilo e fez isto e não fez aquilo como deve ser, fez tudo mal; ele é tão egoísta … e ainda me lembro quando ele fez aquilo àquele, e depois…” Uma coisa leva à outra, não é? São naturalmente apanhados nesta dinâmica em que uma coisa leva à outra, de uma forma contínua, motivada pela aversão. Em vez de serem apanhados nessa corrente, ou torrente, de pensamentos e conceitos associados, pensem deliberadamente: “Ele é a pessoa mais egoísta que já conheci”. E o término de seguida, o vazio. “Ele é um ovo podre, um rato sujo, ele fez isto e aquilo”. Podemos observar e até se torna engraçado, não é? Quando fui a primeira vez para Wat Pah Pong costumava vir ao de cima imenso ódio e aversão. Por vezes sentia-me muito frustrado por não saber o que realmente se passava e não me queria conformar tanto como ali seria suposto. Até deitava fumo pelas orelhas. Ajahn Chah lá continuava – ele podia dar duas horas de palestras em Lao – enquanto isso eu estava com dores terríveis nos joelhos e então tinha pensamentos do género: “Porque é que não paras de falar? Eu pensava que Dhamma era simples, porque é que ele tem de levar duas horas para dizer alguma coisa?” E tornava-me muito crítico para com todos. Comecei então a reflectir nisto e a ouvir-me a mim próprio a ficar zangado, a ser crítico, a ser malicioso, com ressentimentos – “Eu não quero isto, não quero aquilo, não gosto disto, não vejo porque é que tenho de me sentar aqui. Não quero ser incomodado com estas coisas tolas. Eu não sei…” – e por aí fora. Ao mesmo tempo pensava: “Quem diz isto é uma pessoa gentil? É assim que tu queres ser, essa coisa que está sempre a queixar-se e a criticar, a procurar defeitos; é esse o tipo de pessoa que queres ser?” “Não! Eu não quero ser assim”.

Mas tive de o tornar completamente consciente para o poder realmente ver e não apenas acreditar. Sentia-me cheio de razão e quando nos sentimos certos e indignados e achamos que os outros estão errados, podemos facilmente acreditar neste tipo de pensamentos: “Não vejo nenhuma necessidade para este tipo de coisas; na realidade, o Buddha disse … o Buddha nunca iria permitir isto, o Buddha…; Eu sei muito acerca de Budismo!” Tragam-no ao de cima conscientemente, de maneira a poderem ver, tornem-no absurdo e então terão uma perspectiva sobre o assunto, o que torna tudo bastante interessante. Podemos ver o que é a comédia! Levamo-nos muito a sério – “Eu sou uma pessoa tão importante, a minha vida é tão importante que devo ser sempre bastante sério. Os meus problemas são tão importantes, tão sobejamente importantes. Tenho de passar muito tempo com os meus problemas pois eles são importantes”. Achamo-nos sempre muito importantes. Portanto pensem, deliberadamente pensem: “Eu sou uma pessoa muito importante e os meus problemas são muito importantes e sérios”. Quando estamos a pensar isso parece engraçado, soa meio tolo, pois na verdade apercebemo-nos que não somos assim tão importantes – nenhum de nós o é. E os problemas que criamos acerca da vida são coisas triviais. Algumas pessoas podem arruinar as suas vidas por criarem problemas sem fim levando-os muito a sério.

Se pensarem que são pessoas muito sérias e importantes não quererão coisas triviais ou tolas. Se quiserem ser boas pessoas, pessoas santas, então as condições malévolas são algo que têm de suprimir da vossa consciência. Se quiserem ser um tipo de ser amoroso e generoso, então qualquer tipo de maldade ou ciúme ou mesquinharia é algo que têm de aniquilar ou de reprimir na vossa mente. O que quer que seja que, nas vossas vidas, mais tenham medo de ser, pensem-no em voz alta e observem. Podem fazer confissões: “Eu quero ser um tirano!” “Eu quero ser um traficante de heroína!”; “Eu quero ser um membro da Máfia!”; “Eu quero …” O que quer que seja. Já não estamos preocupados com a qualidade disso, mas apenas com o facto de isso ser uma condição impermanente, insatisfatória, pois não contém nada que nos possa realmente satisfazer. Vem e vai e é “não-eu”.

Tradução do Bhikkhu Appamado
   


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