Fundação Maitreya
 
Plasticidade Cerebral

de Ajahn Vajiro

em 17 Jan 2012

  Foi-me recomendado um livro acerca de plasticidade cerebral: como funciona o cérebro, como se organiza, como acontece o processo de aprendizagem nos seres humanos, como ocorrem as sinapses neuronais, como é possível mudar…. Como sabem, durante muito tempo pensava-se que o cérebro era uma espécie de mapa fixo e que as ligações neuronais uma vez estabelecidas nunca se alteravam. Recentemente têm sido realizados estudos que demonstram o quão flexível o cérebro é, sendo inclusive possível evitar doenças como Alzheimer e outros problemas relacionados com o envelhecimento, através de dedicação e aprendizagem persistentes e consistentes. Uma das recomendações é, por exemplo, aprender uma nova linguagem.

Ligações cerebraisNamo tassa bhaghavato arahato samma sambutthassa

Acho isto maravilhoso pois parte do encorajamento do Buddha é treinarmo-nos e podermos mudar o curso da vida. Esse treino e essa vontade de treinar é o que tem apoiado a buddhasassana (dispensação do Buddha) ao longo destes 2600 anos. O Buddha ensinou o Dhamma-Vinaya. Ele revelou o Dhamma e ensinou o Vinaya. Quando o Buddha estava próximo da hora da sua morte Ananda perguntou: ‘Quem irá liderar a comunidade, quem nos irá liderar depois do teu paranibbana?’, ao que o Buddha respondeu: ‘Deixem o Dhamma-Vinaya ser o vosso professor’.

Para mim, o Dhamma tem sido definitivamente inspirador. Lembro-me de alguns livros que li quando andava na Universidade: ‘Está no aqui, agora’ – de Ram Das, o ‘Dhammapada’ e outros livros de Dhamma; mas foi quando vi o Vinaya que a fé surgiu nas suas diferentes possibilidades da vida. Foi quando vi os monges da floresta, quando vi como seres humanos praticavam o Vinaya, que a fé brotou verdadeiramente em mim. Vi como uma forma, uma estrutura, na qual as pessoas persistentemente treinaram durante anos, que as havia transformado e, como estas por sua vez, no decorrer do tempo, contribuíram para transportar essa estrutura para as gerações vindouras.

No tempo do Senhor Buddha havia Arahants, seres iluminados, que achavam que não era necessário seguirem o Vinaya (até mesmo os seres iluminados cometem erros!). Porém o Buddha criticou-os dizendo: ‘É em benefício das gerações vindouras que devem sustentar o Vinaya, o treino, para que algo possa continuar no futuro’. O Vinaya leva-nos ao colo quando somos ‘pequenos’; quando começamos o treino somos encorajados a seguir estritamente todas as regras, mesmo as menores, da forma mais perfeita possível. Isso irá apoiar-nos e proteger-nos. Depois, conforme vamos ficando mais fluentes e confiantes no vinaya, o encorajamento não é para colocarmos o vinaya de lado mas sim para passá-lo às gerações vindouras para que o treino possa continuar. O vinaya implica um comportamento exemplar, quer da expressão física como verbal. É extremamente útil e importante sermos conscientes da nossa intenção, conjuntamente com o treino do vinaya. O vinaya não é só o conjunto de todas as regras básicas, mas também a maneira como realizamos as nossas acções.

Lembro-me claramente de pensar que nunca iria fazer vénias – ‘Eu não faço vénias a imagens douradas! Definitivamente vamos parar ao inferno se o fizermos!’ – e mais tarde de ter a vontade de aprender a fazê-las. Lembro-me muito bem de essa mudança ocorrer em mim, no momento em que me apercebi de que, o que mais me interessava era o que estava a acontecer internamente: o que significava o acto de baixar a cabeça perante alguém ou alguma coisa, e de que forma isso me afectava. Estava interessado em investigar a resistência que surgia e, mais tarde, a alegria e a vontade de o fazer. Existe algo de agradável quando nos entregamos e dizemos ‘Não depende de mim! Simplesmente quero aprender com isto’. Particularmente quando faço vénias ao senhor Buddha, existe em mim uma forte noção de querer aprender com isso, através desta forma na qual pratico neste preciso momento.

Uma das coisas que fazemos aqui no mosteiro é cantar em conjunto. Para alguns de vós os cânticos talvez pareçam bastante caricatos. O formato dos cânticos da manhã e da noite não existia na altura do Buddha. Ele foi na verdade compilado recentemente (em termos da história do Budismo) por Ajahn Buddhadhassa (o primeiro professor do Ajahn Sukkhacitto), no sul da Tailândia. Ele compilou-os de forma bastante elaborada e também os traduziu para tailandês. Até essa altura não existiam cânticos em tailandês. Quando ouvi dizer que os cânticos tinham sido traduzidos para tailandês (na altura ainda não me tinha ordenado) lembro-me de pensar: espero muito seriamente que os cânticos nunca sejam traduzidos para Inglês! (risos!) Pois acho que vai soar muito estranho! Eventualmente os cânticos foram também traduzidos para Inglês e na realidade ainda soa bastante estranho!

Quando pensamos acerca do significado das palavras dos cânticos, também isso pode parecer um pouco peculiar. Apesar de existirem partes que são bastante bonitas, há outras onde existem aparentes incoerências, como dizermos que cada uma das jóias da Jóia Tripla é o nosso único refúgio. No entanto isto dá-nos uma indicação da possibilidade de nos entregarmos completamente a um refúgio. De cada vez que dizemos ‘Este é o meu único refúgio’ podemos dizê-lo com todo o coração. Na verdade isto é necessário. Se queremos confiar neste processo então ele tem de ser levado a cabo com todo o coração. Tem de haver a noção de que isto é o mais importante. Se realmente quisermos voltar atrás e programar e alterar as conexões neuronais da mente, temos de ter em atenção que uma das coisas que os cientistas dizem é que se fizermos algo sem muita atenção, sem nos entregarmos por inteiro ao que estamoAjahn Vajiros a fazer, então as conexões neuronais não se alteram, os neurónios não irão começar a reorganizarem-se; o processo não ocorre por completo. Tem de existir uma total entrega para o cérebro realmente mudar. Para aprendermos algo de novo tem de haver completa atenção, temos de estar totalmente presentes.

Tarefas múltiplas não resultam para este tipo de alterações cerebrais. Temos de estar focados e ser persistentes. É realmente interessante quando estamos a fazer algo estarmos completamente entregues a isso. Muitos dos famosos professores dir-vos-ão que esta transformação não ocorre se não estiverem inteiros no que estão a fazer. Tem na verdade de ser uma ‘questão de vida ou de morte’.Tem de haver ‘suor e lágrimas’ para isto realmente funcionar. E certamente, se quiserem aprender os cânticos e saberem-nos de cor, têm de permitir que eles vos transformem. Tem de haver um verdadeiro empenho envolvido no processo.

Para mim aprender os cânticos de cor tem sido algo muito revelador. Lembro-me de quando era um jovem adulto estudante, pensar que decorar coisas era estúpido, ‘não-inteligente’, como um tipo inferior de aprendizagem. No meu tempo era considerado o que pessoas estúpidas faziam. Também achava não ser capaz de o fazer. Lembro-me claramente de pensar ‘Nunca serei capaz de decorar nada’. E claro, por essa altura também já havia-me esquecido do pouco de poesia que havia decorado. Quando me tornei parte da comunidade monástica também pensei muito sinceramente que decorar os cânticos era impossível mas decidi que pelo menos iria tentar. E assim o fiz. Aprendi o mais fácil dos cânticos – Yan dunnimitam avamagalañca Yo cāmanāpo – qualquer pessoa que folheie o livro dos cânticos pode ver que este é um dos cânticos mais curtos que podemos possivelmente aprender e que consiste em três repetições nas quais apenas temos de alterar uma palavra. Portanto aprendi-o. Levou-me um dia completo de obsessão para o aprender e percebi que o conseguia fazer. Foi um começo.

Decidi então decorar algo que queria aprender e o seguinte penso ter sido o Sutta Karanyametta. Nessa altura eu era Anagarika(1). Comecei a perceber o que é necessário para decorar algo e uma das primeiras coisas com que me deparei foram os obstáculos que nos impedem de o fazer. Isso é Dhammanusati, tal como já devem ter ouvido, isto são ‘As quatro bases da plena atenção’ e o primeiro aspecto de Dhammanusati, que é bastante claro, são os obstáculos. E o que é que nos impede de concentrarmo-nos em algo? É muito interessante. Começamos a observar a tendência para sentir aversão ou a tendência para simplesmente nos querermos distrair, para nos perdermos, a tendência para nos sentirmos inquietos, a tendência para simplesmente querer ir dormir ou para pensar que não sabemos o que fazer ou como irá funcionar. Podemos então ver tudo isso de forma bastante clara e começamos a perceber como a mente funciona.

Comecei também a perceber como as coisas se interligam na mente, como a memória se processa e como é que as informações são assimiladas. As pessoas acham que eu sei bastante bem a maior parte dos cânticos, mas isso não é completamente verdade. Sei um pouco de alguns deles. Coloco uma enorme quantidade de esforço em algumas coisas. Não acho fácil, nunca achei, mas sei o que é necessário para o fazer. Se assumo esse compromisso então sei que pode ser feito. Já não tenho essa dúvida. Simplesmente sei que requer esforço da minha parte e confio nisso, apesar de não ser necessariamente fácil para mim. Faço esse esforço e estou preparado para o fazer, pois sei que quando o realizamos, algo de facto muda e isso é pode ser passado às gerações seguintes. Somos assim transportados pela estrutura e podemos então descontrair.

Desta forma os cânticos transportam-nos e existe algo de muito bonito acerca de sermos ‘levados ao colo’ por uma estrutura. Não nos irá carregar para sempre, pois se não pusermos esforço e energia nisto, cairá por terra. Assim, existem alturas em que temos realmente de nos entregar e é muito bonito quando o fazemos, quando estamos presentes e nos entregamos ao significado dos cânticos. E isso também ajuda, esperamos, a que outros levem esse treino adiante, para o futuro, de forma a que continue para as gerações vindouras. Trata-se de uma forma de retribuição. Existe algo de maravilhoso acerca de dar para as novas gerações algo que nos foi passado.

Se olharem para as palavras do cântico desta noite vêm que existe um significado muito bonito nesta reflexão acerca da Jóia Tripla, o relembrar do supremo louvor. Existe algo de extrema beleza pois trata-se do mais belo refúgio para seres humanos, o refúgio na Jóia Tripla, Buddha, Dhamma e Sangha – não existe outro refúgio igual. ‘O Buddha é o meu excelente refúgio’.
Se estiverem sonolentos durante a meditação, ou se a mente estiver a deambular demasiado – talvez nunca fiquem sonolentos durante a vossa meditação ou talvez a vossa mente nunca divague e esteja semAmaravatipre supremamente presente!

Mas caso aconteça, assim como por vezes acontece à minha mente… – é de grande ajuda termos algo que sabemos de cor, algo que deixamos que nos transforme e que ajuda o coração a elevar-se. Relembrarmo-nos das qualidades da Jóia Tripla é um dos quarenta objectos para meditação mencionados no Visuddhi Magga e nos Suttas. A contemplação do Dhamma é uma forma básica de ultrapassar a sonolência, recordando as partes que sabemos de cor mentalmente, de trás para a frente. Vejamos então, por exemplo, se conseguimo-nos lembrar das nove qualidades do Buddha, das seis qualidades do Dhamma, dos quatro pares de seres nobres, e de inclusive percorrer com a nossa mente todos estes temas; isto se tivermos a tendência para divagar durante a meditação ou se acontecer por vezes ficarmos um pouco sonolentos. Ter estes temas presentes ajuda-nos e pode ser uma maneira de mudar o nosso estado de ânimo ou outras características da nossa chitta (coração-mente), a cittavisaddhi (características do nosso coração-mente). Podemos assim modificá-las imediata e completamente. Claro que também existem outras maneiras de o fazer como a respiração ou a postura, mas podemos fazê-lo com algo que aprendemos de cor, que temos no nosso coração e podemos contemplar. É algo de grande ajuda.

Na contemplação de tudo isto o refúgio supremo é o Buddha, daí ser mencionado em primeiro lugar – consciência, é o que o Luang Por Sumedho enfatiza sempre. Isso torna tudo claro pois se não houver um conhecimento do que está a acontecer haverá dor. É a Génese Dependente – Paticcha Samupadda. Se há ignorância há dukkha (insatisfação, sofrimento). Se não soubermos o que está a acontecer, se não houver clareza acerca do que está a acontecer, então irá haver stress. Se estivermos conscientes do que está a acontecer então as possibilidades de haver stress são poucas, muito menores, ou pelos menos não desenvolvemos mais (stress).

A dúvida é algo frequentemente problemático: não sabermos o que está a acontecer, estarmos incertos, não estarmos claros, não estarmos seguros acerca de nós próprios ou acerca do que fazer. A maior parte de nós tenta ultrapassar o estado de dúvida tentando encontrar certezas: ‘Quero ter a certeza, quer ter a total certeza, quer ter a certeza que é absolutamente certo, quero ter a certeza que é a opção certa’. Mas até mesmo no simples caso de aprender um cântico haverá alturas em que não estamos seguros qual é a próxima palavra. Posso dizer-vos que na minha experiência, quando estamos a cantar sem o livro (porque se estamos a falar em aprender os cânticos de cor não faz sentido utilizar-se o livro), e temos a noção de que não sabemos o que vem a seguir (e de forma alguma vamos ter a certeza pois sem o livro…), se repousarmos na nossa consciência por um breve momento, o que vem a seguir será revelado. Se o tivermos aprendido será revelado. Não ultrapassamos o estado de duvida através de tentarmo-nos agarrar à certeza. Ultrapassamos o estado de dúvida através de nos entregarmos à consciência. Não se extingue a dúvida tentando que as coisas sejam de determinada forma. Tentar que as coisas sejam de determinada forma é uma história sem fim. A única maneira de ultrapassarmos a dúvida é confiar na consciência e isso é assustador. Até mesmo quando estamos a cantar o patimokkha(2) é um pouco assustador, ainda que tenhamos alguém a fazer o ponto. Temos de ser capazes de entrar naquele estado em que simplesmente descansamos na sabedoria da consciência. Confiar. Esta é uma forte recomendação para todos vós: não encontrarão uma saída para a dúvida através de tentarem encontrar certezas.

Acho que é tudo por hoje e espero que isto vos encoraje a mudar essas células cerebrais! Não tenham medo de ficar com falta de espaço no vosso cérebro por o encherem com os cânticos. Na verdade o que acontece (segundo os cirurgiões cerebrais) quando aprendemos algo bem tornamo-nos mais eficientes. Quando aprendemos algo correctamente estamos a proporcionar a possibilidade do cérebro utilizar um menor número de células cerebrais para executar as tarefas necessárias. Quando não estamos seguros por não termos decorado bem os cânticos (neste caso), estamos na realidade a utilizar mais células cerebrais e a criar mais caos. Assim, quando aprendemos algo devidamente são necessárias menos células cerebrais para tornar as coisas claras. Este livro que o Ajahn Jayassaro recomendou-me relata os vários tipos de experiências que os cirurgiões cerebrais efectuaram com variados tipos de pessoas. Tenho estado a contemplar isto e a perceber que faz sentido. O cérebro é plástico. Através de treino, o cérebro pode tornar-se mais eficiente e eu desejo-vos o melhor no vosso treino para a total libertação de toda a confusão.
Evam
Notas:
(1)Anagarika: no budismo Theravada um(a) Anagarika(ā) (lit.‘sem lar)’ é aquele que deixou para trás a maioria das suas posses e responsabilidades para se dedicar a tempo inteiro à prática budista. É o primeiro estágio da ordenação monástica, anterior à ordenação de monge noviço. O Anagarika vive sob os Oito Preceitos budistas.
(2)Patimokkha: é o código básico da disciplina monástica Theravada, consistindo em 227 regras para os monges (bhikkhus) e de 311 para as monjas (bhikkhunis). Encontra-se no Suttavibhanga, uma das divisões do Vinaya Pitaka. É recitado pela comunidade monástica na lua cheia e na lua nova.

Tradução de Bhikkhu Appamado
   


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