Fundação Maitreya
 
Graal

de Pedro Teixeira da Mota

em 20 Jul 2014

  Os mais de quinhentos anos da chegada ao Oriente e à Índia têm sido sentidos, pensados e visualizados de modos tão diversos que certamente é difícil não só fazer-se uma apreciação correcta dos aspectos positivos e negativos como uma síntese do que melhor se realizou e investigou e como tal taça poderia frutificar ainda mais... A riqueza deste encontro é de facto tão extensa e intensa que, por mais que se publiquem obras de elogio ou que algumas pessoas realcem os aspectos de exploração e violência, sempre emergirão novos aspectos ou desafios da frutuosa relação, não só as investigações do passado, como sobretudo germinações sinais nos dias de hoje, e bem visíveis em pessoas e livros, tendências e dinâmicas sociais, nomeadamente na espiritualidade ou no activismo ecológico e da sustentabilidade...

Graal, Graal, Índia, Pérsia e Portugal.


Retrospectivamente, diante das muitas reflexões e comemorações centenárias que ocorrem praticamente todos os anos, pode ser instrutivo observar a sincronia da Expo 1998 em Lisboa com os quinhentos anos da chegada à Índia e compará-los com o passado. E se em 1898 o fulcro das comemorações assentara nos grandes vultos do pensamento e da acção portuguesa, destacando-se a Sociedade de Geografia e a Academia das Ciências como os polos dinamizadores das comunicações realizadas, em 1998 uma sociedade cada vez mais tecnocrática, virtual e mediática, ainda que promovendo certas publicações valiosas (embora por vezes mais artísticas e fotográficas do que substanciais), realizará sobretudo construções, espectáculos e vias de acesso democráticas para milhões, numa multiplicação tremenda dos conhecimentos técnicos que permitiram às três casquinhas de nozes com um punhado de bravos pioneiros arrostarem os mares desconhecidos em 1498 em busca da legendária Índia. Mas o desafio maior talvez será sempre clarificarem-se as melhores realizações culturais e espirituais que os povos conseguiram e aprofundá-las e interrelacioná-las

Mas curiosamente quando os projectos de se comemorar em 1998 na Índia a chegada a Calecute de 1498 não conseguiram suscitar mais do que indiferença ou animosidade de responsáveis ou de protagonistas da política indiana, surpreendendo aqueles que pensavam que certas feridas já tinham sido suficientemente amenizadas com o tempo, sem perceberem que não havendo ainda da parte dos responsáveis Portugueses uma verdadeira apreciação da cultura indiana eles ressentir-se-iam, também os projectos, mas estes conseguidos, de cooperação Ibérica na montagem e realização do espectáculo sensacional da Expo encontraram uma oposição resmungante e por fim assumida num manifesto assinado por uma das poucas uniões da esquerda e da direita do espectro político português.
Ou seja, se os quinhentos anos de começo de relações por vezes impositivas do lado português na Índia encontraram indianos ora humilhados e ofendidos ora conscientes de que o valor da civilização indiana ainda não era reconhecido pelos responsáveis políticos modernos, também os 400 anos do começo duma curta sujeição de 60 anos a Castela e Espanha não deixaram de ser pretexto para susceptibilidades feridas.

Mas se formos observar os valores que floresceram, pesem todas as violências repressões ou opressões nesse inter-relacionamento dos povos, muitos dos quais ainda pouco estudados e divulgados, tais as obras dos portugueses que escrevem em espanhol nessa época ou que se passaram mesmo para Espanha, e vice-versa, ou algumas das infinitas interacções luso-orientais, surpreendemo-nos como a exclusividade ou o espectro do nacionalismo era facilmente ultrapassado não só por traidores ou renegados mas por todos aqueles para os quais o Mundo era a pátria do forte, ou para quem a unidade e solidariedade do género humano estavam acima de nacionalismos e separatismos, muitas vezes escusados, ignorantes ou primários.
Lembremo-nos, por exemplo, dum dos portugueses que ficou por Espanha, Faria e Sousa, o cronista da monumental da História da Ásia, o erudito comentador de Camões e o subtil autor das palestras secretas, ou as obras dum dos religiosos que vieram para Portugal, Frei Luís de Granada, admirador de Pico della Mirandola e de Erasmo, e cujas obras de maior espiritualidade foram censuradas. Ou dos frades portugueses que na Pérsia do século XVIII se islamizaram e escreveram mesmo sobre as razões da conversão, Ou ainda de Agostinho da Silva, cidadão universal, (com quem dialoguei bastantes vezes), devoto da irmã Galiza, tão peregrinada por muitos de nós em S. Tiago de Compostela, da qual dizia que do mesmo modo que neste ponto de peregrinação se fizera muito a noção de Europa, assim os Portugueses a tinham levado ao Mundo.

Convém de facto não nos esquecermos que assim como na época das cruzadas o nome de Francos ou Farangis era sinónimo de Europeus, assim na época dos Descobrimentos Portugal era o melhor sinónimo de Europa e liderados pelos primeiros navegadores e viajantes e depois pelos membros da Ordens religiosas, nomeadamente os Jesuítas, Franciscanos e Agostinianos, uma verdadeira internacional europeia singrou os mares sob as bandeiras da Ordem de Cristo, lídimos sucessores dos antigos Templários, que para além das lides leais sabiam conviver com as fraternidades islâmicas e mostrar sinais pronunciadores da futura civilização mundial para a qual de algumas formas os portugueses e os europeus contribuíram, ainda que certamente por vezes sob formas colonialistas ou interesseiras, mas que devem relembrar, aperfeiçoar e dialogar.
Se olharmos globalmente para a interacção entre Portugal e a Índia poderemos seleccionar certos núcleos mais intensos e significativos, tais como os casamentos inter-raciais e a acção civilizadora de Afonso de Albuquerque, a missionização cristã, o diálogo inter-religioso, a arte luso-oriental, a transmissão e o diálogo de cultura e ciência, e finalmente a cooperação política, técnica e de vários tipos de serviço prestadas por portugueses em cortes indianas.

Como um dos meus interesses tem sido peregrinar distâncias maiores para comungar com as alturas de sabedoria e himalaicas da Índia e onde estive ao todo cerca de dois anos e meio, deslocando-me quer pelos centenários itinerários por terra que os portugueses de quinhentos lideraram quer nos mais rápidos voos aéreos, fui-me consciencializando de alguns seres e momentos valiosos...

Relembremos então brevemente alguns clarões desta união do Ocidente e do Oriente, no fundo um dos objectivos principais da gesta expansiva dos portugueses. A dinastia Mogol, que reinava em grande parte da Índia quando os portugueses chegaram, tiveram em Akbar e Dara Shikoh dois mestres da unidade dos povos e tradições, seres em quem as brisas quentes do Oriente encontraram metais prontos a inflamarem-se e a soldarem-se em ligas inovadoras e de grande alcance humanista, embora heterodoxas e condenáveis para os conservadores ortodoxos.

Dara Shikoh em diálogo místicos e sábios

Dara Shikoh, amigo dos padres e discípulo de mestres islâmicos e hindus, faz traduzir para o Persa pela 1ª vez os textos fundamentais da espiritualidade indiana, a partir dos quais a Europa, através da tradução impressa em Paris em 1801 de Anquetil-Duperront, maravilha-se. Encontrá-los-ei no Irão em 2013 em casa de um engenheiro agrícola. E compõe o Majma-ul-Bahrain, a Mistura dos dois Oceanos, um dos primeiros estudos de religiões comparadas, entre o Islão e a religião da Índia, o Sanatha Dharma. Mas fora o seu bisavô Akbar quem mais se relacionara com os Portugueses e lhes abrira as portas ao interior da Índia.

Akbar, seguindo a procura da verdade, recebe na sua Casa da Adoração, a partir de 1580, os Jesuítas e para dialogarem com religiosos de outras religiões.

Em 1563 o imperador Akbar envia a Goa uma delegação com um formão em que pede o envio de padres portadores dos livros das leis e da Verdade, que ele muito desejava conhecer. Acedido o pedido pelos Portugueses de Goa, com a primeira missão à corte mogol iniciava-se um diálogo e uma interacção notável entre o Oriente e o Ocidente. As crónicas mogóis registam a chegada em Fevereiro de 1580 da primeira missão, onde vêm os jesuítas italiano Rudolfo Aquaviva, o catalão António Monserrate e o persa convertido Francisco Henriques. A ânsia de conhecimento ou, como ele proclamara, "a procura da Verdade", de Akbar era tão grande que quando chegaram foram logo levados à sua presença, ficando à conversa até às duas horas da manhã.

A casa de Adoração, Ibadat Khana, onde Akbar reunia há anos em Fathpur Sikri sábios dos vários povos e religiões na procura da Verdade, passados quatro dias da chegada, passa a contar com a presença ainda mais fogosa dos distantes europeus. Abu Fazal, o cronista principal do imperador Akbar e seu íntimo, retractará o ambiente da época escrevendo mais tarde sobre a sua adolescência e os encontros que presenciara: «Por vezes o meu coração era atraído para os sábios do Cataio, outras para os ascetas do Líbano, outras vezes o desejo de conversar com os lamas do Tibete quebrava a minha paz, e outras vezes a ânsia de passar algum tempo com os padres de Portugal puxava a minha roupa» e descreve uma das sessões do pioneiro diálogo (ainda que por vezes muito exclusivista por parte de cada um dos religiosos…), através do qual Akbar procurava investigar o valor das várias religiões tendo em vista o princípio que aceitara: «Deus deve ser adorado com todo o tipo de adoração» e não só o de uma religião...

Abu - Fazal entrega a Akbar a crónica do imperador, Akbarnama...

Oiçamos então o persa Abu Fazal, na sua notável crónica "Akbarnama": «A Casa de Adoração foi uma noite iluminada pela presença do Padre Rodolfo, que não tinha rival quanto a inteligência e sabedoria entre os doutores cristãos. Vários homens críticos e enganadores atacaram-no e isso permitiu a assembleia presenciar o julgamento calmo e justo. Estes homens lançavam as velhas asserções, e não tentavam chegar à verdade por meio do raciocínio…Com perfeita calma e grave convicção da verdade, o Padre replicou aos seus argumentos».
Graças às três missões enviadas e a mais alguns portugueses que por lá chegaram trocar-se-ão muitas riquezas, informações, arte e ciências, patentes sobretudo nas artes decorativas e pintura, em que o imperador Jahangir sobressaiu como mecenas e estudioso do simbolismo artístico comparado.

Em 1581 o imperador mogol Akbar, tendo partido numa expedição a Cabul, e levando consigo o Padre jesuíta António Monserrate pede a este que lhe mostre num mapa Portugal e a Índia, e discutem assuntos como o celibato do clero e a identidade do Espírito Santo, pela noite a fora. No regresso à então denominada Roma do Oriente, Goa, o P. Monserrate explicou que Akbar clamava pertencer à seita dos místicos do Islão, dos sufis e que o mais lhe importava era contemplar Deus e repetir os seus nomes.

Em 1582, Akbar deixa mesmo de seguir as prescrições e doutrinas da sharia, a religião muçulmana no seu aspecto exterior de lei, e na base do zoroastrismo, jainismo, sufismo e hinduísmo funda a Din Ilahi, a Visão ou Fé Divina, embrião da tomada de consciência precoce da religião universal, ou não fosse ele um imperador de grande visão e que terá como membros uma centena de seus próximos e que transmitirá entre outros ensinamentos um dos ditos mais apreciados: «Deus deve ser adorado com todo o tipo de adoração».

Graças a este diálogo, de Deli e de Agra partirão as primeiras expedições e missões ao Tibete, ao Gobi, ao Turquestão sendo de realçar os contributos heróicos dos jesuítas António de Andrade, Bento de Góis e Estêvão Caçela e Ipolito Desideri. E mesmo depois de os padres terem deixado de imaginar que converteriam algum dos imperadores e as missões cessarem, alguns portugueses continuaram a brilhar nas cortes mógois e indianas sendo de destacar a médica D. Juliana Dias da Costa, que será ama, conselheira e mestra da corte mogol no tempo dos imperadores Aurangzeb e Bahadur Shah, até morrer em 1734. Este último tinha-a como uma segunda mãe e dizia que se ela fosse homem escolhi-a para vizir.

Noutras cortes indianas médicos, militares e padres cooperam e são devidamente apreciados. O P. Figueiredo fornece os livros astronómicos que alegram e estimulam o gosto pela astronomia do raja de Jaipur, Jai Singh Sawai, o construtor dos ainda hoje visitáveis observatórios de Jaipur e Delhi. Ao sul, no império de Vijayanagar, o guru do imperador usa uns óculos que lhe foram fornecidos pelos portugueses.

Foram numerosos os indianos e goeses que ultrapassando as barreiras das castas puderam viajar e evoluir para se formarem em leis ou religião e chegarem tanto a grande erudição como à santidade, tal S. José Vaz, recentemente canonizado, ou os professores de sânscrito e de civilização indiana já no nosso século XX, Sebastião Dalgado e Mariano Saldanha e que foram dos principais construtores de algumas pontes para que a cultura indiana entrasse um pouco em Portugal.
Míngua esta de receptividade nossa que talvez seja o segundo factor a seguir à violência religiosa e militar, para que continuem ainda assim frustrantes as relações entre as almas dos dois países, com todas as publicações, visitas oficiais e comemorações dos Descobrimentos sempre limitadas nas mentalidades e nos interesses das que as promovem, impossibilitando-se assim o encontro e diálogo na base dum reconhecimento dos valores recíprocos em vez dos habituais pontos de vista chauvinistas, superficiais ou conservadoramente materialistas ou religiosos. É só a imigração crescente de Orientais para Portugal que já no século XXI permitirá mais contactos, embora aprofundantes diálogos inter-civilizacionais sejam limitados a pontuais actividades de fundações e grupos.

Do passado mas fermentante ficou a polémica no seio da Igreja Católica dos ritos indianos e chineses, causada pelas iniciativas de valorização das tradições culturais, religiosas e espirituais orientais por jesuítas mais sábios como o P. Nobili e P. Ricci, e por fenómenos de aculturação (tais os de Baltazar da Costa, S. João de Brito e outros), que foram então perseguidos e reduzidos, e tal continua hoje actual e vivo, e como um paradigma não só do confronto dialogante entre o Oriente e o Ocidente como o do conhecimento convivial e da civilização do próximo milénio.
E os Portugueses, à cabeça de tantos Europeus que os seguiram, foram lídimos pioneiros pelo que, apesar de todas as imposições violentas e fanáticas, das globalizações totalitárias, dum materialismo tecnocrático amoral ou de uma crise de dinheiros provocado por uma má classe política, não devem deixar de reconhecer-se e estimular-se a agir como continuadores da tradição e do projecto justo de amor e sabedoria do santo Graal ou da taça do mundo (o Jam-e-Jam, dos persas) que as grandes almas de todas as religiões, tradições e povos têm transmitido, vivido e impulsionado rumo a uma nova Era que permita já não só os desejos democráticos de consumismo, ou os mais platónicos idealismos, mas a sobrevivência digna e harmoniosa da Humanidade e o desenvolvimento vida espiritual numa vida convivial, justa, sã e iluminada.

Comemorar o Graal da Índia, Pérsia e Portugal será então, mais do que relembrar o sangue derramado sob os feitos heróicos ou as campas sobre as quais caminhamos em Goa, sobretudo aprendermos os caminhos para uma harmonia mais profunda e reintegradora do Oriente e o Ocidente, das várias religiões, da acção e da contemplação, do materialismo e do espiritualismo, da ausência e da presença, da distracção e da plena atenção, do exclusivismo e do universalismo e que por tantos excelentes modos têm sido indicados e trilhados por alguns...
Missão mais do que nunca necessária nestes tempos de guerras e terrorismos, de imperialismos e manipulações e em que Portugueses luminosos deviam ter mais voz, em vez dos incultos e pouco espirituais políticos e comentadores que quase só desorientam as almas e a sociedade...
   


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Impresso em 25/4/2024 às 23:06

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