Fundação Maitreya
 
Graça Divina

de Debabrata Sen Sharma

em 06 Fev 2023

  No geral, a característica proeminente da filosofia indiana é o postulado do ideal supremo da realização do homem na sua vida e também a formulação dos meios para alcançar tal ideal. É por esta razão que a disciplina espiritual (sādhana) é prescrita por todas as escolas indianas de pensamento filosófico em conformidade com a sua particular perspectiva filosófica, o que constitui a parte inseparável das suas projecções de pensamento metafísico. Tal aplica-se mais às escolas filosófico-religiosas que devem a sua origem à tradição Tantra-Āgamic na qual se destacam os exercícios espirituais. A escola Shiva Advaita de Cachemira, vulgarmente chamada escola Shivaíta de Cachemira, assentando em sessenta e quatro Bhairavāgamas, parece ter as suas projecções de pensamento metafísico movendo-se à volta de sua filosofia de sādhana. O conceito de Graça Divina, o princípio Guru e o rito de iniciação (dikshā) – estes são os três membros (angas) da filosofia de sādhana. Propomo-nos a discuti-los, um a um, nos parágrafos seguintes. Mas antes de o fazer, gostaríamos de projectar alguma luz em alguns dos princípios filosóficos ligados com a sua filosofia de sādhana, porque esse conhecimento nos ajudará a compreender o conceito chave.

Graça Divina, Guru e o Rito da Iniciação à luz do Shivaísmo de Kachemira

Background metafísico

Sendo firmes defensores da filosofia do não-dualismo integral (akhandādvaita vāda), os Shivaítas de Cachemira postulam uma realidade como sendo a última Realidade, Um-sem-Segundo, à qual atribuem vários nomes, tais como Para Samvid (Princípio de experiência Suprema), Chaitanya (Princípio de Consciência), o Anuttara (o da transcendência), etc. O Para Samvid ou Chaitanya é consagrado com shakti divino, constituindo a sua própria natureza (svarupa). Por conseguinte, também lhe é atribuído o nome de Parama Shiva (Shiva Supremo) e Parameshvara (Supremo Senhor).

Aqui a questão que naturalmente se poderá colocar é: Porque é que sendo a Realidade Última foi delineada de duas formas no Shivaísmo de Cachemira, nomeadamente, como um conceito abstracto destituído de forma, e ao mesmo tempo, como Parama Shiva ou Parameshvara, tendo a forma de um Ser Supremo, ou Deus? Não haverá aqui uma contradição? Como pode a Realidade Última ser ao mesmo tempo informe (nirākā) e também ter forma (sākāra)? Os Shivaítas de Cachemira dizem que não existe qualquer contradição. Os filósofos que gostam de descrever o seu pensamento metafísico em termos filosóficos abstractos, descrevem a Realidade Última sob a forma de um conceito abstracto, mas aqueles que estão inclinados para uma realização espiritual e a realizam de acordo com o sādhana, preferem conceber a Realidade Última sob a forma do Senhor Supremo, ou Shiva Supremo, para que lhes possa servir como fonte de inspiração e de força no desempenho das suas práticas espirituais. É fácil para os sādhakas meditar no Deus pessoal. Encontramos um eco desta predisposição no famoso dizer de Sri Ramakrishna :” Brahman é Kāli, e Kāli é Brahman.”Aqui Brahman simboliza a omnipresente Realidade, enquanto a Deusa Kāli representa a mesma Realidade, tendo o nome e a forma, que lhe é querida. Como suporte desta afirmação, ele diz-nos que a água informe no estado líquido e a mesma água em estado sólido de gelo, não são duas entidades diferentes. São idênticas em essência. Sri Aurobindo diz o mesmo na sua Vida Divina contextualizando os ensinamentos dos Upanishads: «É um erro conceber que os Upanishads ensinam a verdadeira existência (paramārthasat) sob a forma de Brahman impessoal e inactivo, como um Deus impessoal, sem ter quaisquer poderes ou qualidades. Declaram antes uma (Realidade) “incognoscível”, que se nos manifesta através do aspecto duplo, do pessoal e do Impessoal.»

Parama Shiva e Shakti


Já afirmámos que os Shivaítas de Cachemira descrevem a Realidade Última, Chaitanya ou Parama Shiva como estando sempre associada a Shakti (poder). Tal não deve ser tomado como implicando que Chaitanya e o Seu Shakti – chamado Citi Shakti -, ou Parama Shakti e o Seu poder, sejam duas entidades ontológicas diferentes, que estão relacionadas entre si pela relação de herança (samavāya), tal como o substrato (guni) e o seu atributo (guna). Pelo contrário, os Shivaítas Advaita de Cachemira defendem que o Shaktimān, Chaitanya ou Shakti são idênticos em essência. De facto, Chaitanya e Citi Shakti, ou Parama Shakti e o Seu divino Shakti representam, por assim dizer, duas “faces” da mesma Realidade, uma simbolizando a face estática e a outra a face dinâmica sempre activa. E continuam, asseverando que Chaitanya, despojada de Citi é inconsciente (acetana) como matéria morta, ou Shiva menos Shakti é como um corpo morto (shava). Tal como não é possível conceber o fogo despojado de seu poder de queimar (dāhikā shakti), assim também não podemos imaginar Chaitanya ou Shiva desprovidos de Shakti.

Embora os Shivaítas de Cachemira sejam acérrimos protagonistas do não-dualismo (advaita vāda), defendem a multiplicidade do mundo como sendo real e existente. Poder-se-á perguntar: será que a afirmação da existência paralela da não-dualidade e da multiplicidade do mundo não envolverão uma contradição lógica? Os Shavācāryas Advaita respondem que não – dizem que, ao contrário dos Vedantinos Shankara, que baseiam a sua filosofia de não-dualismo na exclusão e negação de tudo no Brahman não dual (neti neti vāda), o conceito Advaita Shaiva envolve tudo e tudo inclui, ao mesmo tempo que dá espaço à existência de tudo no não-dual Um. Quando comparamos o conceito não dualista dos Vedantinos Shankara com aquele dos Shivaítas Advaita de Cachemira, vemos que o primeiro conceito é mais estreito e truncado, dado basear-se na negação de tudo, no Um não-dual.

Multiplicidade do Mundo


Os Shivaítas de Cachemira defendem que Samvid ou Parama Shiva, exercendo o seu divino Shakti, por eles chamado de “poder de liberdade divina”(svāntantrya shakti), graças à sua natureza sem restrições, assume a forma da multiplicidade do mundo, pela Sua própria volição, ou livre vontade (svecchā). Encontramos eco desta perspectiva até em Shruti, ou texto Védico, onde se diz, ”Eu sou Um-sem-Segundo, Eu serei muitos” (Eko’ham vahu syam). Quando Parama Shiva se manifesta como a multiplicidade do mundo pela Seu livre desejo, não cessa de ser o Senhor Supremo. Existe para sempre como Senhor Supremo.

Os Shivaítas de Cachemira usam várias metáforas para descrever a auto- manifestação do Supremo Senhor, que é o mundo. Defendem que esta auto-manifestação representa a Sua própria extensão sob a forma de Shakti (Sva Shakti sphara). A manifestação do mundo simboliza uma externalização de Seu Shakti (ucchalana) que já vibrava, inseparável, fundida consigo antes de Sua auto-revelação (unmesha) como mundo, e revelando a Sua divina glória como Senhor Supremo
Diz-se que o Senhor Supremo não pára de Se manifestar como universo, consistindo em trinta e seis níveis de criação, tecnicamente chamados de tattvas. Também aparece em cada um desses níveis, assumindo infinitas experiências limitadas de assuntos (pramāta), objectos de conhecimento (prameya) e de instrumentos (karana) para os compreender e apreciar.

Natarāja


Nos textos Shivaítas de Cachemira, o Senhor Supremo é descrito como Natarāja, que é creditado com a realização de três papéis simultâneos, o de actores, director do drama cósmico, e também de espectador testemunhando o drama cósmico. Tal acontece porque o Senhor Supremo é a única Realidade. A verdadeira razão para o drama cósmico ser estabelecido pelo Senhor Supremo reside no seu desejo de saborear a felicidade (ānanda) fora de Si, felicidade que já se encontrava dentro de Si. Esta ideia, de acordo com os escritores Shivaítas não é uma invenção de suas cabeças mas é corroborada também pelos praticantes espirituais depois de realizarem a sua natureza de Shiva. O mundo não desaparece da sua vista, transforma-se completamente da forma de matéria densa na subtil forma de shakti vibrante, como ondas de felicidade. Espontaneamente verbalizam a sua experiência – “Eu sou Shiva, o universo inteiro é apenas uma expressão da minha glória divina” (Sivo’ham sarvo’yam mamaiva vibhabah).

Tem sido afirmado nos textos Shivaítas de Cachemira que o Senhor Supremo desempenha sempre cinco tipos de funções devido ao facto de vibrar o Seu divino Shakti, a que se chama o poder da liberdade divina (svātantryashkti). As cinco funções são: nigraha (acto de auto-limitação), srishti (acto de auto-manifestação sob a forma de mundo), sthiti (acto de preservação do mundo manifestado), samhāra (acto de se retirar de Sua auto manifestação como mundo) e anugraha (acto de dispensação de Sua graça). Diz-se que Ele desempenha estas funções eternamente e numa ordem cíclica, por assim dizer.

Olhando pela perspectiva da Sua auto-manifestação como universo, o Seu acto de auto-limitação deverá ser visto como ponto inicial no ciclo de Suas funções (krityas). Diz-se que o Senhor Supremo nega a Sua natureza de total transcendência e de tudo penetrar através do Seu acto de auto-limitação. Daqui resulta a Sua auto-manifestação sob a forma de infinitas mónadas espirituais (cidanus), ou de incontáveis experiências limitadas, ou assuntos (prāmata). A Sua assunção voluntária da forma de experiências limitadas pode ser descrita como o primeiro passo em direcção à auto-manifestação sob a forma de universo.

Os escritores Shivaítas de Cachemira defendem a ideia que sempre que o Supremo Senhor assume a Sua forma de assuntos limitados, cessa a Sua natureza permeável a tudo, e Ele fica encoberto por uma profanação (mala), tecnicamente chamada de ānavamala. A cobertura de ānavamala é vista como a corrupção fundamental (mulalama) que surge pelo acto de auto contracção (ātmasamkoca), ou limitação do Senhor Supremo, no começo da Sua primeira criação, e continua a cobrir a natureza divina do Supremo Senhor tomando a forma de assuntos limitados perdurando até à dissolução cósmica (mahāpralaya), ou a infusão de Sua Divina Graça, chamado de anugraha.
Ocultação da natureza divina

Diz-se que a seguir o Senhor Supremo esconde a Sua natureza divina, colocando em Si o véu de Māyā Shakti descrito nos textos Shivaítas como o poder do auto encobrimento (tinodhānakari māyā). A Māyā Shakti não se encontra sozinha no cumprimento da tarefa de ocultação, ela é assistida pela sua progénie de cinco kancukas ou, capas que existem na sua esfera, a saber, kāla (capa que lhes cobre a omnipotência, convertendo-a em autoria limitada), vidyā (cobrindo a omnisciência e limitando-a a conhecimento limitado), kāla (cobrindo a natureza eterna, tornando-os, assim, sujeitos ao tempo), rāga (cobrindo a totalidade da sua natureza, produzindo em consequência, o desejo e subsequente apego a determinados objectos) e niyati (tornando-os sujeitos às relações de causa-efeito). Estas capas cobrem por completo a verdadeira natureza divina das mónadas espirituais, fazendo-os esquecer de tal. Ficam, assim, reduzidos ao estado pashu (seres pāshabaddha, ou seres acorrentados) ligados por dois vínculos ou corrupções, ānava e māyiya.

Mas isto não é o fim de sua queda do estado divino de Senhor Supremo para o estado de seres agrilhoados. Os Shiváitas de Cachemira ainda concebem outro tipo de corrupção, a que chamam de karma mala. A associação dos seres acorrentados com o karma mala é tida como responsável por estarem equipados com o devido tipo de estrutura psico-física, ou corpo (deha yantra). Os escritores desta linha esclarecem a natureza e a forma de criação com este tipo particular de profanação, que não tem paralelo no pensamento filosófico indiano. Karma mala, de acordo com eles, existe sob a forma de semente cármica (bija), que é produzida pelo acumular de impressões residuais do karma de todos os seres incorporados (sancita karmasamskāra), deixado para traz incansavelmente por eles em Māyā, devido à investida da dissolução cósmica (pralaya). Estes “inesgotáveis” karmasamskāra-s assumem a forma de semente cármica, que “flutua”, por assim dizer, na esfera de Māyā. Como as mónadas espirituais, (cidanus) já cobertas de ānava e de māyiya mala-s, entram na esfera de Māyā no decurso de sua involução ou descida (avaroha), as sementes cármicas agarram-se a elas, uma por cada indivíduo acorrentado, dando como resultado cada ser equipado com cada corpo físico de um tipo apropriado. Os seres incorporados são então chamados de sakala-s (possuindo corpo físico ou kala). Isto completa a sua mudança de seres acorrentados sem corpo (adeha pashu) para seres com corpo (sakala) e tornam-se no que, tecnicamente se chama de samsārin-s (criaturas transmigratórias).
Dois tipos de dissolução cósmica

Mencionámos no parágrafo anterior a dissolução cósmica, um conceito que necessita de ser clarificado. Os Shivaítas de Cachemira postulam dois tipos de dissolução cósmica que acontecem a dois níveis, existindo um dentro do outro, nomeadamente a dissolução cósmica parcial (khanda pralaya) e a total, ou grande dissolução cósmica (mahā pralaya). Deve ser relembrado que das cinco funções que se atribuem ao Senhor Supremo em actuação perene, as três funções, nomeadamente, criação, conservação, e dissolução, diz-se que tomam lugar sucessivamente por ordem cíclica, na sequência da decisão do Senhor Supremo de Se manifestar como universo. Tal acontece porque os actos da criação, sustentação e dissolução do mundo diz-se residirem num plano diferente das Suas primeira e última funções (nigraha e anugraha). O acto de auto-limitação marca o início do processo de Sua auto-manifestação como mundo, simbolizando, por assim dizer, a actualização da Sua determinação (sankalpa) de ser muitos, enquanto o Seu acto de anugraha (conferindo graça à sua forma auto-limitada) simbolizando o fim de Sua auto-manifestação do mundo. A tal pode-se chamar a Grandiosa Dissolução Cósmica.

A concepção dos Shivaítas de Cachemira da função de anugraha pelo Senhor Supremo pode ser vista como algo honroso à sua função de nigraha (acto de auto-limitação). Isto suporta a razão de que, uma vez que o Senhor Supremo, ao exercer o Seu poder de liberdade Divina impôs voluntariamente a Si próprio limitação para poder ser múltiplo, e só Ele tem o poder de desfazer esta Sua auto imposta limitação, e por consequência restaurar em Si próprio a natureza divina perdida através do respectivo acto de anugraha ( a dispensação de graça à Sua forma monádica).
É por esta razão que os Shivaítas de Cachemira defendem que a infusão de graça divina aos renunciantes (sādhakas) é crucial no seu desempenho da disciplina espiritual ou sādhana. Explicam isto ao dizer que os sādhakas são incapazes de destruir o ānavamala que cobre a sua natureza verdadeira de Shiva, tal como é criada pelo Senhor Supremo a Si próprio através do acto de nigraha. Só Ele é capaz de destruir esse mala usando a Sua graça (anugraha) neles. Os iniciados espirituais conseguem progredir algo na sua jornada espiritual até ao objectivo último através dos seus esforços rigorosos e persistentes, mas a existência neles de ānavamala transforma-se num pedra de tropeço, a qual se torna impossível de removerem. Terão, assim, de esperar pela infusão neles da graça Divina através do Senhor Supremo. Esta infusão pode ser vista como o primeiro passo na sua jornada espiritual, culminando no “reconhecimento” ou realização da sua natureza de Shiva.

Tradução de Helena Gallis
Centro Cultural Ramakrishna de Calcutá
   


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Impresso em 29/3/2024 às 11:57

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