Fundação Maitreya
 
Uma conversa com amigos

de Ajahn Sumedho

em 27 Fev 2016

  Fiquei surpreso com a fama que ele ganhou, porque vivia numa parte da Tailândia bastante remota e pouco atractiva, e era mesmo só a forma como ensinava e o efeito que causava, quer nos tailandeses, quer nos ocidentais, que o tornou tão conhecido. Foi por causa dos ocidentais e das dificuldades criadas por não falarem tailandês, num mosteiro onde só havia monges tailandeses, que Ajahn Chah teve a ideia de criar Wat Pah Nanachat, como um lugar especial para treinar ocidentais. Como eu era o monge mais sénior, seria o monge principal. Ao princípio não sabia muito como fazer, mas, porque tinha decidido que iria ajudar, determinei-me a fazê-lo e resultou. Wat Pah Nanachat é hoje em dia muito bem considerado na Tailândia, e para lá vão ocidentais de todo o mundo, para receber treino. Esta era uma visão das coisas muito típica dele. Ajahn Chah ensinou o propósito e o significado da vida monástica. Foi através dele que consegui ver a vida monástica na sua totalidade: a vida em consciência e em contentamento, a ênfase na comunidade - Sangha - e na entreajuda. Isto era uma grande parte da prática, tal como não ter bomba de água, para ter que depender da ajuda dos outros, sempre que tínhamos de tirar água do poço. E tal foi uma grande revelação para mim, porque tinha sido educado de forma oposta – ser independente e não ter de incomodar alguém só para poder ter um pouco de água. Era assim que eu pensava em termos culturais. Gostava da comodidade de “quando precisar de água, posso ir buscá-la, sem ter de incomodar ninguém”, mas esta sua atitude era para se ser muito interdependente.

Uma conversa com Jack Cornfield e amigos
Do livro: The Weel of Truth, Vol.5 da Antologia de Ajahn Sumedho

Wes Nisker: Pensei que poderíamos começar com algumas recordações. Talvez começando por lembrar quando, há uns trinta ou quarenta anos, conheceu Ajahn Chah. Nessa altura apercebeu-se de algum indício de que viria a tornar-se um professor, e pensa que Ajahn Chah teria alguma ideia – depois de lá ter ficado muitos anos, é evidente – de estar à procura de pessoas como o senhor; se ele teria um plano para o futuro? O senhor foi o primeiro que foi para lá, não é verdade?

Ajahn Sumedho: Sim
WN: E quanto tempo?: Estive três anos antes do Jack chegar. Conheci-o depois do primeiro Vāssa com Luang Por Chah, logo após se ter manifestado o desejo de ir para a floresta praticar. Estava, então, a viver na montanha Phu Phek - em termos tailandeses chama-se “montanha”, mas na verdade é só um lugar bastante alto perto da cidade de Sakon Nakorn – e estava lá há cerca de seis meses quando o Jack me veio visitar. Foi assim que o conheci.

Jack Kornfield: Eu tinha ido para a Tailândia com o Corpo de Paz, porque queria visitar um mosteiro budista. Estava a trabalhar com uma equipa de medicina de saúde rural, quando, um dia, alguém me disse que sabia que um monge ocidental estava a viver no cimo de um monte perto de umas ruínas de um templo cambojano. Fiquei muito entusiasmado e disse “Temos de ir”. Arranjámos um jipe e dirigimo-nos para lá. Foi uma grande viagem a subir – 2.000 pés de inclinação que Ajahn Sumedho subia e descia a pé diariamente só para receber a oferta da refeição. Penso que lá também residia um monge cambojano.
AS: Era um monge tailandês.

JK: Sim, um monge tailandês. Eu já contei esta história antes: Ajahn Sumedho estava sentado na soleira da sua cabaninha de madeira, rodeado de abelhas. Perguntei:” O que se passa com as abelhas?”, ao que me replicou: “O que se passa é que me mudei para esta cabana onde existia uma colmeia. Ao princípio queria ver-me livre das abelhas, porque receava ser picado por elas, mas depois pensei que estavam cá antes de eu chegar, que também esta era a cabana delas – e só usam a parte superior da mesma – e eu sou um monge budista. Decidi, então, ficar em paz com elas.” E eu pensei:” “Que pessoa rara!” Senti-me imediatamente conquistado – “Ora bem, aqui está alguém que pratica de verdade.” E a seguir senti-me profundamente inspirado por me ter dito que tinha acabado de vir do mosteiro da floresta do tal professor, Ajahn Chah, que nem sequer o tinha tratado de forma especial – era a forma como tratava muitos ocidentais – mas que não só era um treino muito bom, como o quão formidável era Ajahn Chah.
AS: E penso que me veio visitar várias vezes, enquanto lá estive. Tinha esquecido completamente o incidente das abelhas, até que li a sua introdução daquele livro Teachings of a Buddhist Monk (Ensinamentos de um Monge Budista). Lembrei-me então que estava a aprender a viver com as abelhas – gostam do doce e do salgado da pele e por isso ficam a zunir à volta do corpo.
WN: Apercebeu-se de que poderia algum dia vir a ensinar esta prática?
AS: Não. Naquela altura nunca pensaria que pudesse haver algum ocidental interessado nisso! Tentei encontrar pessoas que partilhassem os meus interesses, quando estava na Faculdade de Berkeley e mais tarde no Corpo de Paz, mas ninguém se mostrou minimamente interessado no Budismo.

WN: Onde estava no Corpo de Paz?
AS: Em Sabah, no norte de Bornéu, durante dois anos.
WN: Praticamente não existe Budismo em Bornéu.
AS: Pois não. Por isso é que quando fui à Tailândia fiquei tão impressionado, porque até então o meu interesse estava no Budismo Zen: Alan Watts e D.T. Suzuki e outras pessoas assim. Aldous Huxley também, embora ele, na Filosofia Perene, desconsidere o Budismo Theravada, dizendo que, desde o tempo do Buda, ainda não houve ninguém iluminado, e que tudo se deve às regras. E por isso eu tinha posto de lado o Theravada. E só por estar no sudeste da Ásia no fim de 1964, é que fui de férias à Tailândia e ao Camboja. Achei a Tailândia simplesmente fascinante. Era um país budista e por todo o lado havia monges, templos, stūpas - toda a cultura estava imersa no Budismo. Gostei imenso de tudo aquilo, gostei daquela atmosfera. Pensei então que depois do Corpo da Paz, poderia regressar e ver o que é que o Budismo Theravada tinha para oferecer.
No último ano do Corpo de Paz vivi nessa altura numa cidade costeira. Era um porto de contrabando onde acostavam os barcos a vapor para as Filipinas. Trata-se de um porto muito pequeno, mas extremamente rico por causa do contrabando – os cigarros americanos eram descarregados no molhe e os piratas filipinos chegavam lá e pilhavam todos os cigarros para os seus barcos, contrabandeando-os para as Filipinas. Um dia, os oficiais da imigração disseram que tinham consigo um jovem alemão, que se encontrava num desses barcos de contrabando, tendo entrado em Sabah através dessa cidade – o que era ilegal. Como não sabiam o que fazer com ele, disse-lhes que podia ficar comigo em minha casa. Ele tinha acabado de vir de Bangkok onde tinha estudado em Wat Mahathat; antes de se ir embora, deu-me a morada de Ajahn Khantipalo, que tinha estado em Inglaterra, e que era famoso pelos seus ensinamentos de meditação em Bangkok. Assim eu já tinha uma morada, pelo que após o Corpo da Paz fui imediatamente para Bangkok e comecei a meditar em Wat Mahathat.

Ronna Kabatznick: Tenho curiosidade de saber como conheceu o mosteiro de Ajahn Chah e qual foi a sua primeira impressão.
AS: Ora eu vivi em Bangkok aproximadamente seis meses e ensinei Inglês na Universidade Thammasat. Wat Mahathat é mesmo do outro lado da rua da Universidade, por isso de manhã ensinava, e de tarde, meditava. E tive bons resultados. Lá ensinam a tradição Mahasi Sayadow.
Penso que tive sempre a sensação de que seria monge. Cresci em Seattle no que chamam uma Alta Igreja Anglo-Católica. É Episcopal, tal como a Igreja de Inglaterra, mas mais importante e com cerimoniais semelhantes ao Catolicismo Romano. E em Seattle só existia uma igreja destas. Os meus pais eram membros muito importantes desta paróquia, daí receberem monges anglicanos de Inglaterra ou de S.ta Bárbara, (onde existia um mosteiro), que ficavam em nossa casa. Sentia-me muito impressionado com estas pessoas e, quando era jovem, era muito religioso. Mais tarde na adolescência, comecei a questionar e a pensar no Cristianismo, e a ver que já não fazia muito sentido. Por conseguinte, embora eu quisesse ser monge, não conseguia ver como o poderia ser, porque a minha única experiência era cristã. A seguir interessei-me pelo Budismo, e tal levou-me à Tailândia, e à possibilidade de me tornar um monge.
Estava à procura de um lugar onde me pudesse ordenar, e comecei a perguntar às pessoas da comunidade de expatriados em Bangkok, e todos falavam de Ajahn Maha Bua. Muitos ocidentais diziam que era o único professor que valia a pena visitar, pois tudo o resto era um desperdício de tempo. Havia Ajahn Buddhadāsa, no sul, que defendia fortes pontos de vista, mas era um grande mestre Zen, e não propriamente Theravada. Conheci, então, Ajahn Maha Bua e Ajahn Buddhadāsa. Na verdade gostei imenso de Ajahn Buddhadāsa, porém alguns dos monges mais opiniosos, (ocidentais, estão a ver?) estavam no seu mosteiro. Por isso, considerei a hipótese de me ordenar em Wat Bovorn e ir ter com Ajahn Maha Bua – mas entretanto aconteceram algumas coincidências.
O meu visa expirou e, como tinha de sair da Tailândia para voltar a entrar, decidi ir para o Laos de férias, e voltar a entrar na Tailândia a partir daí. Porém, em Laos, conheci um monge canadiano que começou a falar sobre o conflito que estava a ocorrer no Sangha tailandês entre as duas facções, Mahanikaya e Dhammayut. E acrescentou:” O que quer que faças, não entres na Dhammayut, porque foram eles que montaram uma intriga e levaram à prisão um monge sénior do Mahanikaya, para promoverem um dos seus monges” . Tudo isto era matéria política, que não me iria afectar de forma alguma, mas ele afirmou: “ Aconteça o que acontecer, não te tornes um monge Dhammayut.

”Sendo assim, perguntei-lhe onde me poderia ordenar, ao que me respondeu: ”O meu professor vive do outro lado do rio, em Nong Khai (que é uma cidade fronteiriça na Tailândia). É um arahant, e podes ordenar-te com ele”. E assim, deste impulso ingénuo, fui e ordenei-me com este monge, que era o monge principal da província. Fui samanera durante um ano e pratiquei muita meditação em Wat Sri Saket, que era um mosteiro de meditação perto da cidade.
Wat That Phanom usava um estilo de meditação birmanesa, em que cada um fica na sua cabana e lhe é trazida a comida. Fiquei lá perto de um ano, e, como ninguém falava inglês, não tinha ninguém com quem falar. Passei por experiências incríveis, quer horrorosas, quer do tipo celestiais, e tive imensas realizações. Compreendi que queria ordenar-me como bhikkhu, mas não sabia onde o fazer e por isso perguntei ao universo: ”Onde me posso ordenar?” Pouco tempo depois, um dos monges de Ajahn Chah, que sabia falar inglês, passou por ali em peregrinação (tudong) e acabou por ficar no nosso mosteiro. Então, de repente, estava a falar com este monge, o primeiro que conheci que falava inglês. E, claro, como não falava inglês há um ano, foi como um dique que se abriu. Ele era impressionante, muito rigoroso com as regras, o que me levou a pensar:” Este é um bom monge, é assim que eu deveria ser", e ele disse-me:” Devias de vir e ficar com Ajahn Chah, o meu professor, na província de Ubon.” Perguntei ao meu perceptor e, embora nunca tivesse conhecido Ajahn Chah, tinha ouvido falar muito bem dele, daí ter concordado que, logo que tomasse os preceitos de bhikkhu, eu poderia ir passar o Vāssa, a estação das chuvas, com Ajahn Chah, podendo este monge levar-me até ele.

Depois da minha ordenação em Nong Khai, em Maio de 1967, viajei para Phra Sommai, em Ubon, e foi a primeira vez que me encontrei com Ajahn Chah. Assim que o conheci, recém-chegado de viagem, encontrava-me muito cansado e com diarreia. Nesse primeiro encontro, tudo o que pude dizer foi “Onde é a casa de banho?” O monge que falava inglês traduziu e Ajahn Chah deixou-me usar a sua casa de banho pessoal. Este foi o meu constrangedor encontro com ele. Mas como tive uma impressão favorável decidi-me ficar por ali.
Consoante ia ali vivendo, reparei no verdadeiro interesse que Ajahn Chah manifestava. Não especificava nenhum método de prática em particular, todavia eu já tinha desenvolvido competência na forma como praticava. Ele queria saber o que eu fazia, e não punha objecções; só me encorajava. Wat Pah Pong situava-se numa floresta muito bonita, e ia de encontro às minhas expectativas do que seria o mosteiro budista ideal. Os dias eram muito preenchidos: sair para a oferta de comida ou trabalhar de tarde, bem como estar presente nos pūjas da manhã e da noite, e Ajahn Chah fazia grandes palestras de noite, horas a fio. Decidi que queria regressar ao estilo de eremitério que tinha tido antes, vivendo sozinho numa pequena cabana sem obrigações. Assim sendo, convenci Ajahn Chah a libertar-me, deixando-me partir depois do Vāssa. Conheci um monge que sabia de um lugar numa montanha – perto daquele onde Jack estava a viver então – e convidou-me para ir para lá. Ajahn Chah, na verdade, não queria que eu fosse – eu era um monge recentemente ordenado – mas acabou por ceder perante a minha determinação. E assim, parti de tarde, ele próprio levou-me à estação dos comboios numa camionete cheia de monges. A minha última memória dessa altura foi a de todos eles a dizerem-me adeus, e a de Ajahn Chah dizer, “ Bom, tenta voltar na próxima estação das chuvas”, e eu replicar, “ Não sei, veremos.”

De qualquer maneira, lá fui para aquele lugar na esperança de ter mais realizações, esplêndidas experiências como no primeiro ano, mas os seis meses que lá estive foram do pior, o tempo mais infeliz que já tinha vivido. Fiquei doente e todas as minhas tentativas de meditação falharam. Depois desenvolvi uma aversão obsessiva por um monge tailandês, não que ele merecesse isso, mas era uma espécie de loucura que sentia. Fiquei ainda mais doente, e tudo era um fracasso total. Por conseguinte, antes do Vāssa seguinte voltei para Ajahn Chah. O meu hábito estava em farrapos e eu, emaciado.

JK: Eu voltei para o ver. Era a estação quente e estavam uns cem graus, ou mais. Estava doente com um ar desgraçado e nem podia fazer a longa caminhada de subir e descer a montanha para a refeição, por isso punham-no naquela pequena cabana de colmo de um agricultor de arroz, no sopé da montanha. Ficava lá deitado com aquele calor abafado, e os aldeões vinham trazer-lhe a comida porque nem sequer podia mexer-se.

AS: Pensei que era o fim, sabe? Os aldeões eram muito boas pessoas, mas era uma situação muito primitiva. Não havia remédios, e decidiram trazer um médico num cavalo, que me deu uma injecção qualquer. A cabana era minúscula com tecto de chapa – e com o sol escaldante, sentia-me como a cozer num forno. A maior parte do tempo ali ficava a sentir pena de mim, ouvindo os aviões a passar, e pensando no meu amigo Robert que trabalhava como professor em Bangkok a ganhar imenso dinheiro. “Eu podia estar a ganhar tão bem e estou para aqui deitado na selva, e para quê?”, pensava eu atolando-me em autocomiseração. Mas de súbito vi – tive esta visão – que era eu quem estava a criar o sofrimento, e para aquela comiseração pensei, ”Pratica só ānāpānasati”. Sentei-me e concentrei-me na respiração e toda a autopiedade desapareceu. A seguir a minha respiração melhorou. Foi uma verdadeira realização, sabem, de tão poderoso que foi. Até ali tinha-me sentido profundamente infeliz, e só de usar ānāpānasati, magicamente tudo começou a melhorar.

RK: Qual foi a tua experiência, Jack, quando conheceste Ajahn Chah, pela primeira vez? Alguma vez pensaste que virias a ensinar?
JK: Era muito ingénuo quando fui para o mosteiro. Estava cheio de ideais - todos os ocidentais assim estavam. E eu tinha lido algo sobre Zen e pensei ” Vou procurar um mestre Zen.” Uma das minhas primeiras impressões ao entrar em Wat Pah Pong foi do quão belo era o lugar. Os caminhos eram varridos, a floresta densa, e havia uma espécie de dignidade e decoro na forma como o mosteiro era gerido. Havia uma frescura – é só o que posso dizer – especialmente na estação quente. Ao entrar sentia ter encontrado um lugar onde tudo era relaxante, na melhor das formas. Foi essa a primeira impressão. Tive muita sorte porque tinha tido um bom treino da língua no Corpo da Paz, e, como tinha estudado Chinês antes, o Tailandês tornou-se muito fácil para mim. Daí, quando fui visitar Ajahn Chah, falava Tailandês razoavelmente bem, embora não conhecesse o Dharma Tailandês. Ele era tão inesperado e interessado – foi uma dos seres humanos mais interessados que conheci, ele e o Dalai Lama. Quando se está com o Dalai Lama sente-se que há alguém que nos está a dar atenção e cheio de interesse. Era a qualidade de Ajahn Chah. E vislumbrava-se nele uma centelha, mesmo que parecesse muito severo. Tinha uma boca enorme que, quando relaxava, descaía como a de um sapo, ou algo parecido. Podia até parecer muito severo, mas havia nele uma chispa. Era uma pessoa sábia porque sabia olhar e observar. Adorava observar os outros. E a seguir perguntava algo atingindo certeiro no alvo, ”Medo ou sofrimento?” Estão a ver, duas palavras, e de repente apercebíamo-nos de que ele já estava a ver o que nos ia acontecer. Por isso senti-me logo conquistado por ele, mas ainda estava cheio de fantasias e de ideais, sem ter ideia do que aconteceria. Pensei, ”Vou ficar por uns anos.”, mas sempre pensando em regressar. Não pensei que seria monge toda a minha vida, devido ao meus apegos ao mundo. Queria voltar para ter relacionamentos e casar, todas essas coisas.

WN: Ele sabia isso?
JK: Não sei se sabia, ou não. Quando nos ordenámos, não esperava ter isto como vida. Basicamente era mais para ver se conseguia resistir. A minha intenção era ficar um par de anos, ou mais, para ver o que poderia aprender, e ir-me embora depois. Pensei, ”Talvez venha a fazer algo diferente, ser psicólogo, se calhar.” Era como pensava, mais do que ser professor. “E, pelo menos, saberei algo mais com isto, o que poderá revelar-se proveitoso.”
WN: Espero que tenha sido mais proveitoso do que ser psicólogo. Há uma história que Ajahn Sumedho contou anteriormente, sobre um monge que foi quem primeiro falou de Ajahn Chah. Parece que ele se tinha desordenado, tendo-se tornado alcoólico e sem rumo, e Ajahn Chah avisou-o relativamente a ele. Não se importa de repetir a história?

AS: Ele tinha mais ou menos a minha idade e estava na Marinha Tailandesa e eu na Marinha Americana durante a Guerra da Coreia, daí termos muito em comum. Contudo, ele vivia obcecado com as regras monásticas e era um tal fanático do Vināya que, antes de me levar a Wat Pah Pong, deixou-me a pensar se eu quereria ir com ele. Pensei, “ Será que quero ficar com Ajahn Chah, se ele for assim?” Mas o meu perceptor insistiu em que eu fosse só para ter uma ideia, o que fiz. O monge Sommai tinha um primo que também era monge e, juntos, ajudaram na tradução entre Ajahn Chah e eu; passado pouco tempo o primo desordenou-se e o Sommai seguiu-lhe os passos. Porém, como ia ficar a viver perto do mosteiro, mudou-se para uma cabana mesmo do lado de fora do portão. Contudo, começou a vir ao mosteiro embriagado – o que era muito angustiante para mim, porque entendia a razão do quanto ele precisava das regras. Era como se precisasse de uma estrutura, caso contrário desmantelava-se. Quando não tinha a estrutura, não tinha nada dentro de si que o apoiasse. “Por isso é que ele era um fanático das regras”, pensei, o que foi uma boa compreensão, porque me permitiu ver porque é que as pessoas necessitam de estruturas. Há pessoas tão descentradas que, se não têm a que se agarrar cá fora, desmoronam-se. Apercebi-me que nunca tinha tido esse problema, que tinha tido sempre um eixo à volta do qual funcionava. De qualquer modo, finalmente uma certa tarde, quando estava com Ajahn Chah, o Sommai foi ter connosco e disse, ”Quero voltar a ser Bhikku.” Ao que lhe respondeu Ajahn Chah,” Nunca te voltarei a ordenar, nesta vida, nem na outra, caso saiba que foste o Sommai nesta vida.” Pareceu-me que estava a rir-se.

Também eu criticava bastante o Sommai; todos o faziam, porque o Sommai se portava mesmo muito mal. Finamente mudou-se para Ubon e vi-o uma vez por outra, ou soube de relatos que se tinha envolvido em todo o tipo de roubos. Havia relatos terríveis – até de ter feito matado pessoas e de ter ido para Laos. Não sei se eram verdadeiros, ou não, mas até os seus familiares já não o aceitavam. Por fim, um dos monges na cidade teve pena dele e concedeu-lhe um espaço no seu mosteiro. Ajahn Chah acabou por me dizer: ”Sabes que ele fez algo bom, mesmo muito bom. Ele trouxe-te para aqui, e deverás sentir gratidão por isso, sempre, e chamar-lhe Ajahn Sommai” – que significa professor, como sabem. Isto impressionou-me imenso, porque eu estava a seguir a minha mente crítica – justificável pela forma desprezível do seu comportamento – mas houve algo imensamente compassivo na forma como Ajahn Chah o disse. Por esta altura o Sommai tinha perdido todo o auto-respeito - ia para a rua embriagado, incomodava as pessoas e pedia esmolas. Costumava vê-lo e dirigia-me a ele por “Ajahn Sommai”, e, sabem, havia algo que ecoava dentro dele. Parecia tornar-se um Sommai melhor – ele reagia, o que me levou a pensar “ Ajahn Chah quer que seja esta a forma de o lembrar, porque ele deve viver com memórias tão horríveis, que, pelo menos, posso relembrar-lhe algo de bom.” E, na verdade, sinto-me muito grato, sinto muita gratidão por ele. E, um dia, passado um par de anos, soube que, andando alcoolizado, tinha sido atropelado por um caminhão, e morreu embriagado.

WN: O senhor e o Jack foram ambos treinados na Ásia, e actualmente estão instituídos dois enormes centros, um monástico e o outro leigo. Quando ensinam inspiram-se no que aprenderam com os mestres asiáticos, ou acham que têm de mudar, adequando às mentes ocidentais? Será que existe algo substancialmente diferente, no vosso ensino, da forma como aprenderam?
AS: Enquanto estive com Ajahn Chah também tive que me adaptar, devido às diferenças culturais, à ênfase dada, e até aos padrões da língua tailandesa: se os considerássemos literalmente em Inglês, eram muito duros e podiam levar-nos a ser muito compulsivos.

WN: Diga um exemplo…
AS: Ora bem, na Tailândia eles dizem “matar as kilesas”, o que significa ver-se livre das impurezas, dos obstáculos. Muito antes de começar a meditar, eu tentava fazer isso, e acabei por concluir que tal levava à repressão, mas o ensinamento de Ajahn Chah encorajava-nos a desenvolver upāyas – meios hábeis, estratégias - que resultassem connosco. Ele queria mesmo que exercitássemos os nossos próprios meios, nunca insistindo em que fizéssemos de determinada maneira. Quando lhe disse que “matar as impurezas” nunca tinha ajudado muito, ele concordou, porque se trata mais de estar consciente e deixá-las estar. Ajahn Chah teve que ir mais devagar com os ocidentais, porque éramos mais agressivos ao princípio. Mas ao longo dos anos, por necessidade, adaptei-me às situações em que me encontrei, não obstante ter-me sempre sentido muito identificado com o espírito de Ajahn Chah.

WN: Quais foram as adaptações, ou será que houve algumas mudanças de relevo que tenha feito, no treino dos monges ou nas cerimónias, ou em algo mais?
AS: Bom, o treino e a disciplina é praticamente o mesmo, mas tivemos que nos adaptar ao clima.
WN: E as técnicas que ensina são…?
AS: São basicamente as mesmas, tal como as Quatro Nobres Verdades e a forma de reflexão. Tudo isto é igual. Achei toda essa abordagem muito verdadeira e útil. E, consoante o meu discernimento se aprofundava e o sentido do ego diminuía, acabava por perceber a profundidade das coisas que Ajahn Chah tinha dito há tantos anos, e que na altura não tinha captado completamente.
JK: Também eu tive essa mesma experiência. Existe todo um baú de tesouros cheio de ensinamentos, e até mesmo de memórias da forma como ele lidava com as pessoas. E, quando lá estava, basicamente eu só tentava sobreviver. Tentava fazer com que o meu hábito não caísse ao chão; tentava sentar-me no chão de pedra de forma a que o meu traseiro não doesse muito. Tentava funcionar com uma mente que se encontrava num estado muito selvagem, e assim por diante. E Ajahn Chah oferecia-me esses ensinamentos tão maravilhosos e profundos, e eu só estava a tentar aguentar-me ali, como que suspenso de um colete salva-vidas. Na verdade, ele deu-nos lições para o resto da vida, e a essência destas é a essência do Dhamma, isto é, as Quatro Nobre Verdades, as Fundações da Consciência e os brahmavihāras*, sobre os quais podemos construir uma vida e o Budismo, por completo.

(Nota da tradutora)* amor-compassivo ou benevolência; compaixão; alegria empática; equanimidade.

É admirável! Não sinto que os ensinamentos fundamentais tenham mudado tanto. Se Ajahn Chah ou Mahasi Sayadaw cá viessem a um retiro, e vissem as pessoas a praticar - o que estavam a fazer -, e ouvissem as orientações, sentir-se-iam muito familiarizados com tudo, e assentiriam com a cabeça dizendo: “ Está correcto, foi isto que ensinámos.” Todavia, as mudanças culturais à sua volta foram muito importantes. Uma, como disse Ajahn Sumedho, foi a mudança de ‘lutar contra’, e ‘esforçar-se por’ (o que muitas pessoas usam para se julgarem, e se atarem com nós) para uma ênfase muito mais profunda de relaxamento e descoberta. E também o ensinamento tem sido mais baseado no sabor de mettā e compaixão, porque mais uma vez, as pessoas carregam consigo uma grande carga de sofrimento e de traumas. Sem esses elementos de compaixão e de mettā, torna-se muito difícil aquietar-se e ver com clareza.

WN: Pretende dizer que, em geral, os ocidentais carregam mais carga psicológica do que os asiáticos?
AS: Diria que a maioria dos ocidentais se auto desprezam e se autocriticam muito mais, enquanto os asiáticos não o fazem, ou não têm tendência a fazer dessa maneira. E também a culpa, por exemplo - toda a gente que conheço e a quem tenho ensinado sofre imenso de culpa. Quando se fala com os tailandeses, ou com o Dalai Lama, nenhum deles tem este problema. De facto nem percebem porque é que isto é um problema para nós.
JK: E também existe uma certa qualidade de espaço. Nos primeiros anos de treino e prática, as formas são muito importantes. Tal como Ajahn Sommai, penso que todos nós, de alguma maneira, usávamos as formas, porque éramos como barcos sem leme. Mas passado algum tempo, passei a…

WN: As formas do tipo: observar a respiração?
JK: Como seguir a respiração, como caminhar, como sentar, como praticar seja de que forma for, até fora dos retiros. Como seguir os preceitos, da forma rígida de o fazer, está a ver? E só depois se torna novamente evidente que as formas são upāya, estratégias. E o que Ajahn Sumedho tanto ensina nos retiros sobre a atitude sábia ou correcta, ver que a liberdade é possível sob uma perspectiva espacial, e depois usar quaisquer formas para ajudar a descobrir isso, ou incorporar isso – é uma mudança de ênfase da técnica e da luta por algo, para descobrir o que Ajahn Chah chamava ´jit derm´, mente original, ou ´poo roo´, aquele que conhece a sabedoria inata. Todavia, todos nós, os ocidentais, procurávamos a técnica para começar, porque tal nos levaria à ´iluminação´.

WN: E talvez tenha começado por aí mesmo.
JK: É bom começar por uma técnica. Mas consoante se vai amadurecendo, compreende-se que as técnicas não são mais que instrumentos para ajudar a regressar ao que ele estava a ensinar desde o princípio, que é: confiar na nossa natureza original, e a abertura da consciência em si.
RK: Reparei, no retiro da última semana, que o senhor (Ajahn Sumedho), na verdade, mal nos mencionou (ao grupo) a palavra mettā, embora cantássemos o Mettā Sūtta. Em contraste, há geralmente uma ênfase específica, nos períodos da meditação guiada, com instruções e sugestões elaboradas do começo e do fim da meditação, colocada em mettā. Mas noto que se foca mais nos ensinamentos de sabedoria, como uma forma de aceder ao amor compassivo. Poderá falar um pouco mais disto, dado ter mencionado a natureza das nossas mentes críticas, e de usar a sabedoria como um caminho, mais do que focar-se primeiro em mettā?

AS: Na verdade, pela minha prática, penso que mettā e sabedoria como que andam juntas. Embora ensine mettā, o meu interesse principal está na realização, fazer com que as pessoas desenvolvam perícia no reconhecimento e na consciência. É isto que eu enfatizo. Mas claro que mettā é igualmente uma forma hábil de o fazer, porque relaxar e confiar, é o resultado da prática de mettā para consigo próprio. O sentido de perseverar no bem-estar, no não-batalhar, no auto-respeito, e coisas deste tipo, provém da essência de mettā. Pese embora não o tenha mencionado como tal, para mim, descontrair e confiar, isto é mettā.

RK: E isso foi excepcionalmente óbvio e sentido. Penso que o que vivi foi mettā sem sentimentalismo, o que foi muito belo. E penso que essa mudança foi muito importante. Mas estou curiosa em saber o que o Jack poderá dizer, já que nos estamos a debruçar mais sobre o assunto de mettā, tendo em conta tudo o que mencionou da autocrítica, do trauma, da severidade, etc.
JK: Diria que, efectivamente estamos a falar do mesmo: aquilo que cria o espaço que partilhamos, que as pessoas sentem de uma forma incorporada, que tem bondade, descontracção e vontade de ver. E as estratégias, tais como recitar frases de mettā, não são apenas para realizar uma prática específica, mas para abrir a mente e o coração. E quando tal acontece, dá-se a compreensão. Trata-se, na verdade, de criar um espaço acolhedor, tal como aquele que vi ao caminhar, no começo, em Wat Pah Pong. Havia algo que se sentia, na maneira de cuidar do caminho na floresta, e no mosteiro, que nos apoiava e oferecia uma espécie de chão com bem-estar e liberdade. É a razão por que vejo isto da mesma maneira.

WN: Pensa que terá sido acidental o que fez com que Ajahn Chah e aquele mosteiro expandissem tanto o Dhamma Theravada ocidental?
JK: Bem, ao longo do tempo, conheci muitos professores, e professores fantásticos como o Dalai Lama, Dipa Ma, Thich Nhat Hahn, Nisargadatta e outros mais, muitos a quem respeito profundamente, mas para mim, Ajahn Chah era o mais directo, o mais sábio de todos. Havia algo nele muito especial. E a coisa mais simples que posso dizer, é que, quando lá cheguei para a primeira visita, em 1967, ele era alguém relativamente desconhecido. Não existia um grande mosteiro (talvez uns quarenta e cinco monges, e algumas monjas do outro lado), mas quando morreu apareceu um milhão de pessoas para o funeral. Ele nem viajava muito dentro da Tailândia, mas as pessoas obtinham cassetes dos seus ensinamentos, ou alguém transcrevia um pouco, e conseguiam ouvi-lo. Falava de forma simples o que tocava logo o coração. Isto é algo que não se pode sentir pelos livros, porque geralmente contêm as suas palestras formais, que efectivamente são mais aborrecidas e sérias. Havia nele uma tal presença, que quando o ouvíamos, era como se sentíssemos: ”Oh, é a sabedoria a falar!”, o que nos fazia felizes.

WN: E ele falava para o comum, o tailandês vulgar, também?
JK: E para os ocidentais, e para os intelectuais em Bangkok, e mais tarde, para os ministros, generais e políticos que iam aparecendo, até para o rei e para a rainha da Tailândia. Havia algo na forma da sua linguagem do Dhamma, de tão imediato e universal, que quem o ouvisse começava logo a confirmar com a cabeça, e a dizer “Sim!”
WN: E o senhor, Ajahn Sumedho, sente o mesmo sobre Ajahn Chah?
AS: Perfeitamente. Ele nem sequer era conhecido pelos tailandeses, à excepção dos da sua área local. Quando fui para lá, em 1967, só existiam vinte e dois monges, e era um mosteiro muito básico. Ele não permitia que se ligasse a canalização da água ao sistema do reservatório, nem bombear a água dos poços, por isso tínhamos que tirar a água dos poços. Queria manter tudo de tal forma que tivéssemos de nos ajudar mutuamente. Até para obter um balde de água precisávamos, pelo menos, de outro monge para nos ajudar a puxar a corda.

WN: Isso era deliberado da parte dele?
AS: Deliberado, claro. E também os trilhos do mosteiro – ele assegurava-se de que houvesse sempre árvores no caminho, para que nunca pensássemos que um trilho era meramente algo para andarmos. Havia que estar atento, ao andar tínhamos que contornar as árvores. Foi pensado deliberadamente para criar esta consciência, até mesmo fazendo cancelas com degraus, onde nos apertávamos para contornar algo estreito, e assim podermos passar. Também tinha um grande sentido de humor. Um dos meios eficazes de me ensinar, era fazer-me rir de mim próprio. A vida monástica pode levar a sentirmo-nos muito sérios, porque lida com a moralidade e todas essas coisas pesadas que nos podem levar a um estado exagerado. Quando chegávamos a este ponto ele conseguia fazer-nos rir do absurdo da situação. Agradava-me muito isso porque, de repente, já nada de pesado existia em nós. Não há dúvida que, à sua maneira, era uma pessoa muito alegre, bem como uma presença cheia de muito amor.
No primeiro ano que lá passei, alguém começou a gravar as palestras de Ajahn Chah e ofereceu -lhe um gravador. Ele adorou a máquina. Passou a gravar tudo quanto dizia e a seguir, à noite, punha-nos a ouvir as gravações no seu kūti, o que, deveras, me aborrecia, porque preferia ouvi-lo a ele, não queria ouvir o gravador. Porém, ele estava a começar um estilo de gravações que, muitas delas voltaram a ser regravadas ao longo dos anos e agora são CDs e outros meios de comunicação. Se as escutarem, poderão ter uma ideia de como ele falava, não obstante sejam em Tailandês e até frequentemente em dialecto. A cultura tailandesa é uma cultura bastante natural e prática. Ele usava a língua tailandesa muito bem, uma língua muito rica em trocadilhos e com capacidade de brincar com as palavras, levando o Dhamma à vida das pessoas de uma forma que outros monges não sabiam ser possível – como por exemplo, ensinando agricultores analfabetos a praticar. Os agricultores de arroz diziam que, antes de conhecerem Ajahn Chah, pensavam simplesmente que não conseguiriam praticar e que só os monges o fariam, uma vez que eles eram apenas agricultores analfabetos, e tudo quanto poderiam fazer era obter mérito. Afirmavam que ele foi o único que os ensinou a praticar e a meditar.

JK: Vinham na Lua Cheia e no quarto de lua Wan Phra, que eram os dias em que nos sentávamos durante toda a noite. Ao princípio seriam poucas centenas, mas depois que foi construída a sala grande, passaram a quinhentos ou mais. As pessoas vestiam-se de branco, a maioria deles aldeões das proximidades, sentavam-se, e davam-se os ensinamentos do Dhamma. Alguns deles eram óptimos praticantes, particularmente as mulheres. A devoção, a firmeza e sabedoria de uma quantidade de praticantes leigos era realmente fantástica e muito inspiradora. Eu ficava ali sentado, desejando mexer-me e com a mente a vaguear, e quando olhava via aquelas pessoas - que me alimentavam e me faziam a vénia, como se fosse alguém verdadeiramente especial - sentadas, tal qual o Buda.

WN: Quer dizer algo mais sobre Ajahn Chah?
AS: Fiquei surpreso com a fama que ele ganhou, porque vivia numa parte da Tailândia bastante remota e pouco atractiva, e era mesmo só a forma como ensinava e o efeito que causava, quer nos tailandeses, quer nos ocidentais, que o tornou tão conhecido. Foi por causa dos ocidentais e das dificuldades criadas por não falarem tailandês, num mosteiro onde só havia monges tailandeses, que Ajahn Chah teve a ideia de criar Wat Pah Nanachat, como um lugar especial para treinar ocidentais. Como eu era o monge mais sénior, seria o monge principal. Ao princípio não sabia muito como fazer, mas, porque tinha decidido que iria ajudar, determinei-me a fazê-lo e resultou. Wat Pah Nanachat é hoje em dia muito bem considerado na Tailândia, e para lá vão ocidentais de todo o mundo, para receber treino. Esta era uma visão das coisas muito típica dele. Ajahn Chah ensinou o propósito e o significado da vida monástica. Foi através dele que consegui ver a vida monástica na sua totalidade: a vida em consciência e em contentamento, a ênfase na comunidade - Sangha - e na entreajuda. Isto era uma grande parte da prática, tal como não ter bomba de água, para ter que depender da ajuda dos outros, sempre que tínhamos de tirar água do poço. E tal foi uma grande revelação para mim, porque tinha sido educado de forma oposta – ser independente e não ter de incomodar alguém só para poder ter um pouco de água. Era assim que eu pensava em termos culturais. Gostava da comodidade de “quando precisar de água, posso ir buscá-la, sem ter de incomodar ninguém”, mas esta sua atitude era para se ser muito interdependente. Tal trouxe-me à tona uma série de estados mentais, uma vez que ia contra o meu forte estado condicionado de ser americano de “ não preciso de ti, posso fazer tudo sozinho, e faço-o à minha maneira.”

JK
: Também foi, em parte, “culpa” sua, Ajahn Sumedho, que tenha surgido Wat Pah Nanachat. Embora tendo sido ideia de Ajahn Chah, muitas pessoas foram para lá, porque o senhor estava lá. E, tal como aconteceu comigo, podiam ouvir de si e ver, pela forma como falava, o tipo de inspiração que ganhava, tanto do mosteiro, como de Ajahn Chah – o que era muito apelativo para nós. Penso que muitas pessoas que foram para Wat Pah Nanachat se sentiram atraídas por si e pelo que ia transmitindo, antes de conhecerem Ajahn Chah. Foi como se chegassem a Ajahn Chah através do que ouviam de si, e vissem a manifestação dele em Ajahn Sumedho.

RK: Que conselho de Ajahn Chah lhe foi mais útil ao longo dos anos?
JK: Há tantos! Mas posso dar-lhe um par deles, como por exemplo: após muito treino em vários mosteiros no sul da Tailândia e em Burma, voltei a ver Ajahn Chah e contei-lhe tudo sobre estas diferentes experiências. Ele escutou até eu acabar e depois disse: “ Ora aí está algo mais para esqueceres.” E tal foi efectivamente muito útil, porque, de qualquer maneira, era óbvio que não me poderia agarrar a elas, e a questão não estava na recolha de experiências. Por isso considero este um exemplo muito bom.
Antes disso, andava muito frustrado com o mosteiro, com ele, e com a maneira de ser das pessoas, pois não eram como eu achava que deviam ser. Até mesmo no melhor mosteiro, depois de se estar lá um tempo, vemos para além das aparências e percebemos que as pessoas não são verdadeiramente iluminadas como nos pareciam. E quando observava Ajahn Chah, pensava: ”O que é que uma pessoa iluminada faz?” Se ele coçava a perna pensava: ”Estará a fazê-lo com plena consciência, ou só inconscientemente? ”Eu desejava tanto esta pessoa ideal. E no fim, já disposto a ir-me embora, queixava-me do comportamento das pessoas e dizia: “Até o senhor, nem sempre me parece um iluminado” – coisa que só um ocidental teria o desplante de dizer – e ele só se ria! Ele achou o máximo! E eu expliquei:” O senhor faz o que quer, e por vezes até se contradiz do que disse antes”, ele simplesmente riu-se e disse: ”Que interessante.” E eu respondi, já mesmo chateado “ Ai sim? Porquê?”, ao que ele retorquiu :” Porque mesmo que eu ajuste a imagem do Buda, a de iluminação, à imagem que tu tens, continuarás a pensar que a irás encontrar exteriormente, e ela não se encontra aí.” E nesse momento tornou-se claro para mim, que nunca ficaria feliz, nem liberto pela acção virtuosa praticada por outrem. Só partirá daqui, de mim, ou nunca acontecerá.

WN: Tem algum conselho, ou alguma história de Ajahn Chah?
AS: Há uma coisa que me vem à ideia - após estar cerca de dois anos com Ajahn Chah comecei a desenvolver um sentido mais crítico em relação ao mosteiro. Via que muitas coisas não estavam tão bem como costumavam estar, e achei que devia informar Ajahn Chah do que se passava. Havia um monge que me incomodava bastante, falava em voz alta, era muito influente e dizia muitas coisas insultuosas para os monges ocidentais. Uma vez, estando Ajahn Chah fora, logo após a nossa recitação quinzenal das regras, uma vez que estávamos numa reunião, apresentei o assunto deste monge, que estava presente. À maneira americana, de alguma forma acabei por lhe dizer o que pensava dele, e é óbvio que se sentiu muito humilhado. Humilhei-o em público, coisa que, na Tailândia, não se faz. Senti-me muito mal, porque ele acabou por sair. Um dia, Ajahn Chah chamou-me à parte e disse-me: “ Sobre aquele monge…”, eu disse: “Sim, sei, criou uma data de problemas aqui.” ao que Ajahn Chah disse: “Na verdade, ele tem uma boca má, mas um bom coração.”, e imediatamente me apercebi que era verdade. Ele tinha um bom coração, só que tinha uma forma infeliz de falar. Doravante nunca me esqueci disso: não ser apanhado pelo meu conceito de rectidão e pelo meu sentido de que “tenho de pôr este monge na linha.” Subitamente consegui ver que a raiva da rectidão não era o que devia seguir.
Quando me tornei o monge principal de Wat Pah Nanachat, o primeiro ano foi muito difícil – por vezes era mesmo um fardo muito pesado para mim. Fui ver o Ajahn Chah, uma tarde, e era óbvio que me encontrava muito em baixo. Ele estava sentado sob o seu kūti, e antes mesmo que eu falasse, disse:” Oh Sumedho, pensaste que ser monge principal era muito fácil – era só ter uma dessas almofadas triangulares e ter pessoas à tua espera, não era? Ha, ha, ha. Agora sabes como é.” E, de repente apercebi-me como o professor é visto como um ser numa posição privilegiada. De súbito senti mais empatia por ele – porque sabia que ele tinha passado por isso durante anos, no meio dos problemas da vida do Sangha e de todas as recriminações, escândalos e dificuldades – e, contudo, ele possuía aquele tipo de ligeireza e alegria de ser. Isto encorajou-me a prosseguir e a não me levar tão a sério, ou a não ser tão duro comigo mesmo, porque iria cometer erros e desagradar aos outros, mas tal seria uma forma de aprender. Nem sempre o processo de aprendizagem é fazer as coisas correctamente, ou tomar a melhor decisão.
Outra vez, quando fui para Inglaterra, mandou-me um recado através de outro monge. Não sei como, mas acho que ele sabia bem, ou imaginava o que se estava a passar. Deu-me o ensinamento perfeito para esse momento. Era assim:” Sumedho, se não consegues avançar, nem recuar, não consegues subir, nem descer, o que fazes?”

WN: Assim vindo do nada?
AS: Tal e qual. Era como se tivesse estado a falar com ele ao telefone. Já não o via há um ano, mais ou menos. Ainda tenho esse recado no meu kūti em Amaravāti, porque é sempre uma boa lição.
RK: Há algo sobre a mente que ainda o surpreenda?
AS: Bem, agora já não me deixo surpreender por nada que venha à mente. Devido à prática, existe uma confiança na prática que não me deixa surpreender com nada que surja. Mas vocês sabem bem quão estranhas são as coisas que afloram à mente, e que percebemos serem não-eu, porque até há algumas que nem pertencem à esfera pessoal – coisas que surgem inesperadamente. Entretanto a confiança vai-se aprofundando, devido a continuarmos a praticar a partir do ponto que conhecemos bem. É algo em que confiamos, e que depois aplicamos à nossa vida diária. Surgiu-me tanta intuição em situações tão difíceis relacionadas com outras pessoas, problemas com o Sangha, críticas que me foram feitas, pessoas desiludidas comigo, e coisas deste tipo. Aprendi com situações que manifestam um forte sentido do eu e do valor próprio; por consequência, agora já sei como lidar com isso.

WN: Ainda tenho mais uma questão breve. Ajahn Chah ensinou a vastidão do espaço e a pura consciência, não foi? Será isso que está a transmitir?
AS: Sim. Em Tailandês chamam-lhe ”poo roo” – o sabedor – “ o que sabe”, é muito usado. E tal como Jack usou o termo “jit derm”, também “a mente original”. Estes termos são muito usados na Tradição Tailandesa da Floresta. Ser o conhecedor, mais do que o objecto (do conhecimento) – este era o koan de Ajahn Chah a toda a hora: “Não sejam os donos do objecto, sejam antes os conhecedores do objecto.”. Ouvi isto vezes sem conta, “não ser o apropriador, ser o conhecedor”. O objecto sempre foi o estado de espírito da mente, os pensamentos, ou a forma como me sentia; tornou-se tudo muito objectivo para mim, ao longo das reflexões que fiz sobre eles. E a seguir o conhecimento, o poo roo, já não é mais o objecto, porque não nos identificamos com ele. Imaginemos que surge a raiva, questiono a consciência, “Será que é raiva?” Não, a consciência não é raiva, mas está consciente da raiva. Então firmei-me cada vez mais em “Sê a consciência, não a raiva.”. Como é ser o sabedor, e não a raiva? Só através da confiança nesta consciência. Não é algo que se encontra, porque não é um objecto, mas é algo que se reconhece. É assim. É aqui que se dá a realização da Terceira Nobre Verdade.
(Uma entrevista Inquiring Mind não publicada, com Ajahn Sumedho, Jack Kornfield, Wes Nisker e Ronna Kabatznick, gravada no final de 2005, provavelmente no Centro de Meditação Spirit Rock)

Tradução de Helena Gallis
   


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Impresso em 28/3/2024 às 19:27

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