Fundação Maitreya
 
A Essência do Vedanta4

de Tandavaraya Swami

em 23 Ago 2017

  Kaivalya Navaneeta é um clássico Advaita amplamente conhecido, escrito em tâmil. Navaneeta significa manteiga. Kaivalya é o estado em si em que a alma existe isolada de toda a relação com o corpo, etc. Desde o vasto oceano do leite (os Upanishads, etc.), os grandes mestres têm extraído o leite da sabedoria com o qual encheram vasos ( textos antigos). Tandavaraya Swami, o autor de Kaivalya Navaneete, disse que tinha extraído a manteiga da nata do leite. Os que o tenham conseguido (porque se alimentaram com a manteiga-nata da sabedoria divina – Brahman jñāna – e ficaram eternamente satisfeitos) não vagarão alimentando-se do pó (os objectos sensoriais irreais).

Secção II –
Kaivalya Navaneeta

Resolver as dúvidas/ Dúvidas descartadas

1 – Mestre: como os homens cavam um buraco, plantam com cuidado um pau largo e o tapam com terra, e o cravam para fixá-lo firmemente, também tenho que descartar as dúvidas, que a tua mente, que já conheceu o Ser sob o aspecto da existência da suprema Consciência, pode permanecer inalterável.

2 – O discípulo, de mente pura e auto-realizado, está ligado ao seu Mestre como está um jovem símio com sua mãe desde o tempo em que estava identificada erradamente sua existência com o corpo, até ao momento da libertação inalterável e incorpórea.
3 – Ao comprovar que o afectuoso discípulo fica com ele como uma sombra, o Mestre pergunta: «Eras capaz de manter-te inalterável como uma mera testemunha? Terão desaparecido todas as tuas dúvidas? Ou segues agarrado ao sentido da diferença que há em ti por momentos? Diz-me como estás».

4 – Nesta altura, o discípulo prosternou-se aos pés do Mestre e disse: «Pai, atrevem-se os fantasmas da diferenciação que só podem vagar pela sombra da ignorância na selva da vida mundana, a aparecer perante a visão interna em plena luz do dia da sabedoria, depois que o brilho do teu ensinamento se elevou pela tua Graça?
5 – Incluso depois do mal ter sido exorcizado, como quando uma pessoa foi possuída e depois se protege com um talismã contra qualquer recaída, também preciso muito de ti que se estivesse firmemente consolidado no Ser, embora minha ignorância se foi dissipando com teus ensinamentos.

6 – Agradava-te dizer: «Aprende as escrituras (que o Ser é Brahman), que Brahman não-dual não pode alcançar-se mediante a dialéctica (o estudo e a discussão). Deve ser realizado no coração. O Brahman que se manifesta único não pode alcançar-se com a mente miserável» Por favor, clarifica o que parece uma contradição entre estas duas hipóteses.

7 – Mestre: Como Brahman não é um objecto dos sentidos, nem um objecto de inferência, como não há nada que o seguinte, está para além da percepção directa, da inferência o de analogia. Deves saber também que é livre de atributos, e que não pode expressar-se com palavras.

8 – Os Vedas, que declaram que Brahman está mais além das palavras, também o mencionam mediante a afirmação («Tu és Aquele»). Se perguntas qual é correcto, entende que os dois são correctos, porque os Vedas não podem nunca deixar de dizer a verdade.

9 – Uma menina disse «ele não», «ele não» diante de todas as outras crianças e ficou tímida e silenciosa quando apontaram para o seu amado. Da mesma maneira, os Vedas negam claramente o que não é Brahman, dizendo «este não», «este não», e assinalam Brahman mediante o silêncio.

10 – Depois de ter contestado a primeira parte da tua pergunta, vou contestar a segunda. O coração governa os sentidos externos. Suas faculdades operam interna e externamente através do intelecto e da mente.

11 – Como teu rosto se reflecte num espelho, do mesmo modo a imagem da Consciência pura se vê reflectida no intelecto. Junto com isso, a mente começa a funcionar, e é o que se chama conhecimento, meu filho!

12 – Como o metal fundido toma a forma do molde onde este se verte, a mente assume as formas dos objectos, que revela a luz que neles se reflecte. Sem visão e sem luz, não se pode descobrir um objecto na escuridão.

13 – Se requer a ajuda duma lamparina que ilumine e dê claridade para descobrir um objecto na escuridão. Porém, para ver o sol, basta só os olhos. Para ver o universo manifestado, tanto a mente variável como a consciência reflexa são necessárias. Mas para entender a Realidade, a mente variável que anseia a realização servira por si só.

14 – A união entre a mente mutável e o ser reflectido chama-se mente. Pode-se alcançar Brahman com a mente porque o estado da mente que se direcciona para Ele é necessário para a realização. Não pode alcançar-se Brahman mediante a parte da mente que é a consciência reflexa. Deste modo, para conciliá-las sê livre de dúvidas.

15 – Discípulo: Digno Mestre de infalível sabedoria, tenho entendido o teu ensinamento atá agora. Por favor, deixa-me que te faça outra pergunta: livre de movimento, inquebrantável, perfeito e transformado no «Aquele», o Ser não se corresponde com o estado da mente chamado samādhi yoga (a União na Paz). Como é que a mente que sempre está em movimento como uma asa e levanta vários mundos ao mesmo tempo, pode estar calma para permanecer fixa no Ser, como uma chama protegida das correntes de ar? Diz-me, por favor.

16 – Mestre: A mente activa está composta por três gunas. Quando um deles está mais elevado, os outros permanecem encobertos. Com sattvaguna, as qualidades divinas se manifestam; com rajaguna, as tendências que pertencem ao mundo, o corpo e os shāstras se manifestam; com tamoguna, a natureza malévola se manifesta.

17 – Sattva é a verdadeira natureza da mente, enquanto as outras duas qualidades são meros acrescentos que podem ser descartados. Se uma pessoa se mantém constantemente na divindade, rajas e tamas submergem de tal de modo que a tensão interna e as envolturas externas desaparecem. Quando isto ocorre, a tua mente manifesta-se com perfeição, se torna imóvel e subtil como o éter. E, então, se torna naturalmente una com Brahman, que já é assim e permanece na paz indiferenciada (nirvikalpa samādhi).

18 – Quando se coloca um espelho limpo enfrente a outro igual, as superfícies que se reflectem serão um todo indistinguível. Do mesmo modo, quando a mente é lucida torna-se una com o infinito sat-chit-ānanda Brahman, e permanece perfeita; como pode haver aí multiplicidade ou movimento na mente? Diz-me.

19 Discípulo: Como podem os sábios tornarem-se unos com Brahman, libertos em vida, que esgotam seu prārabdha sem que sua mente se tenha perdido em Brahman? Só experimentado se obtém seus resultados? Uma experiência como esta requereria a implicação da mente. Não pode haver nenhum tipo de experiência na ausência da mente. Se a mente persiste, como se pode dizer que está liberto? Estou confuso com este aspecto. Por favor, destrói esta minha dúvida, porque não posso ser libertado até que todas as minhas dúvidas fiquem resolvidas.

20 – Mestre: A aniquilação da mente é de dois tipos: a saber, a do esquema mental ou a da mente mesmo. O primeiro aplica-se aos sábios libertos em vida; o segundo, a dos sábios que já abandonaram o corpo. A eliminação de rajas e tamas, deixando somente sattva é a dissolução do esquema da mente: Aí é o sem pecado! Quando sattva se desvanece junto com o corpo subtil, diz-se que a mente perece também.

21 – Sattva é puro e molda a verdadeira natureza da mente; quando rajas e tamas (que moldam o esquema) ficam destruídas (pela prática adequada) perde-se a identidade do término da ”mente”. Por isso, neste estado, os sábios recebem o que lhes chega sem terem solicitado; não pensam no passado nem no futuro; não exultam de alegria ou se lamentam de dor; superam a identidade com a actividade e se convertem na não-violência; presenciam como testemunhas as modificações da mente e dos três estados dos que ficaram libertados a seu tempo quando passam por prārabdha. Não há contradição nisto. Não precisas ter nenhuma dúvida a respeito.

22 – Ao ouvir que todo o período dedicado à actividade é também um estado de paz, podes objectar o seguinte: «A acção não demonstra mudanças nos estados da mente? E com ditas mudanças não se desvanece a paz mental?
O estado do sábio é como uma menina que nunca tenha desejado estremecer de amor por seu amado incluso quando está trabalhando nas tarefas de casa.

23 – Discípulo: Desde modo o sábio liberto em vida, que transcendeu os incidentes do corpo, que perdeu o sentido da actividade e toda a individualidade, se tornou uno com Brahman, pode considerar-se que o que experimenta prārabdha, deva ser também o criador? Mestre, tu que eliminas todo o sofrimento, por favor esclarece este ponto!
Mestre: Escuta estas palavras da grandeza dos sábios quando actuam perfeitamente, disfrutam perfeitamente e renunciam a tudo perfeitamente:

24 – Como um monte de pedra não se move por si mesma nem põe objectos em movimento, e sem dificuldade se orientam pedaços de ferro até ela, tampouco actuo por mim mesmo nem o fazem os outros, e sem dúvida o mundo foi activo antes que eu o tenha sido. Como o sol, sou uma testemunha despreocupada por todas as funções do corpo, dos sentidos, etc., e também o estado de paz que resulta da fusão da mente com Brahman. O possuidor desta firme experiência é um perfeito criador.

25 – O que disfruta perfeitamente é o que comparte tudo o que lhe chega no seu caminho sem discriminar o saboroso do que não é, do limpo do sujo, do saudável do enfermo, como um fogo ardente que consome tudo o que acontece no seu caminho. O homem cuja mente é um cristal puro, que não se vê afectado pelas fases transitórias, pequenas ou grandes, boas ou más, para ele ou para os outros, é o perfeito renunciante. Um sábio libertado é estritamente um exemplo que encarna estas três virtudes (unidas).

26 Discípulo: Como se pode considerar que a tarefa de um sábio está acabada se mediante prārabdha vive num corpo, actuando e ensinando do que é conveniente às outras pessoas desejosas de libertação? Mestre, tu que eliminaste a causa do meu sofrimento, responde-me, por favor!

27 – Mestre: As ocupações das pessoas são de três tipos: as que pertencem à vida presente e aquelas que pertencem ao futuro são somente para os ignorantes, possuídos pelo desejo de prazer, pelo sentido da propriedade e ao apego ao corpo. Só os que aspiram à libertação buscam aprender a Verdade, etc. Acaso fica algo para obter mediante a aprendizagem da verdade e outras acções semelhantes para uma pessoa que é toda perfeição.

28 – Discípulo: Oh jóia excelsa entre os Mestres! Ouve-me. É correcto que possam praticar sozinhos a verdadeira sabedoria os que têm desejado deliberadamente os prazeres da vida aqui e no plano seguinte? Podem acaso os que se afastaram das actividades mundanas e dos rituais para pisar o caminho da libertação voltar de novo aos velhos métodos?
Não são a escuta, a razão e a meditação necessários para que a mente seja firme? Diz-me a verdade!

29 – Mestre: Sábio filho meu! Os que não sabem devem aprender a Verdade (tal como o ensinam as escrituras e os Mestres); os que estão nas mãos do conhecimento incorrecto devem praticar a meditação. Pode haver algo desejável para os que se tenham convertido em Existência-Consciência-Perfeição real e etérica?

30 – Discípulo: Senhor, ouve-me! O homem sábio pode dizer como o ignorante: «Eu fiz; Eu vi; Eu comi» e «Eu fui» Dizes que estão livres de conhecimento incorrecto. Pode a realização de Brahman admitir este tipo de expressões? Por favor, haja luz neste ponto.

31 – Mestre: Uma pessoa que desperta de um sonho fala das suas experiências no sonho. Da mesma maneira, o sábio que tenha alcançado a auto-realização, apesar de usar a linguagem do ignorante, não está apegado ao seu ego. Um homem que se lança nas chamas em vésperas de converter-se a um deus imortal fala apenas como um homem até que o seu corpo seja reduzido a cinzas. Assim mesmo, o sábio livre do ego parece actuar como os demais até que abandona o corpo.

32 – Discípulo: Se é assim Mestre, embora os objectos sejam irreais, as transacções (associadas com eles) não deveriam causar dor? Podem comprovar acaso o gozo do conhecimento? Somente se pode sentir este gozo se estão ausentes. Não é necessário concentrar-se só num ponto? E se a pessoa pratica esta concentração, pode-se dizer que tenha acabado a sua tarefa?

33 – Mestre: Filho auto-realizado! As actividades terminam quando se acaba prārabdha. Não é a prática do samādhi uma obra mundana uma actividade da mente? Ao ser uno com o Ser transcendental, pode fazer-se alguma coisa que se distinga Dele? Mesmo aquele que pratica samādhi, não se pode dizer que está estabelecido no Ser.

34 – Discípulo: Mestre supremo. Como é que alguns dos que estão estabelecidos no Ser, e não têm nada mais que fazer, praticam meditações para dominar a mente?
Mestre: Ainda que se diga que os sábios libertados em vida parecem activos de muitas maneiras em função do seu prārabdha.

35 – Bem meu filho, escuta o seguinte. As actividades de um sábio somente servem para a evolução do mundo. Não têm o propósito de perder nem ganhar nada. O Todo-Poderoso, que é o único que é o depositário da graça do mundo, não está afectado por o mérito ou o demérito da criação, etc.

36 – Discípulo: Mestre tu que és sem forma (a nível transcendental), actuas como Īsvara (a nível cósmico) e tens a aparência de forma humana (aqui)! Falas como se um jñāni e Īsvara sejam o mesmo. Como pode ser isso?
Mestre: Sim. Isvara e o jñāni são o mesmo porque estão libertos do “eu” e do “meu”. O jñāni em si mesmo Īsvara, a totalidade dos jīvas e também do cosmos.

37 – Discípulo: Senhor, se como dizes o jñāni são todos os jīvas a um tempo quando está libertado, como podem os demais seguir atados? Se os jīvas são diversos, o jñāni não pode ser todos eles. Mestre, tu que tudo sabes! Por favor, esclarece-me esta pergunta em pormenor.

38 e 39 – Mestre: O Ser que se manifesta como o “eu-eu” em tudo, é perfeito e indivisível. Porém, os jīvas são tão diversos, como existem limitações criadas pelo ego. Olha como a lua que deleita o mundo é uma, contudo suas imagens reflectidas são tão numerosas como existem tanques charcos, depósitos, cisternas e vasos de água. Quando se destrói um destes objectos, já não se reflecte a imagem da lua, mas fica integrado de novo no elemento original, a saber, a lua. Não pode ser de outro modo com as outras imagens reflectidas. Da mesma maneira, o jīva cujas limitações ficam destruídas se recolhe á sua fonte, o Ser, e os outros não.

40 – Discípulo: Como pode ser um jñāni o mesmo que Īsvara, que é Brahma, Vishnu e Shiva, os Senhores da criação e destruição do universo? Podem adivinhar os pensamentos dos outros, conhecer o passado, o presente e o futuro e são imanentes em tudo. Mestre de imensas austeridades! Não encontro nem sequer um rasto destas qualidades num jñāni.

41 – Mestre: A água dum depósito e uma luz potente ajudam a todo um povo, contudo uma jarra de água e uma lamparina acesa na mesa são uteis somente para um círculo familiar ou lugar. Meu filho, companheiro dos sábios! Īsvara e o jñāni não diferem em seu jñāna(1). Sem dúvida, associado com as limitações de Māyā, classifica-se de superior ou inferior.
(1) (A sabedoria, a realização da asserção “Eu sou Brahman).
Traduzido para o inglês por Sri Ramanananda Saraswathi
   


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