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O Tirano interior

de Ajahn Sucitto

em 21 Set 2023

  Quando finalmente encontrei uma forma de meditar ao invés de tentar meditar, ela veio através de uma expansão da minha consciência. Eu sabia que a minha mente e abordagem tinham de se ampliar; eu não poderia continuar a funcionar a partir de uma atitude purista e crítica. Por isso, uma das coisas nas quais trabalhei foi aumentar a minha esfera de atenção, sintonizando-me com a sensação do corpo. O que eu quero dizer com isto é a sensação "interna" do corpo, não a sensação que advém de contacto. Por exemplo, quando estamos de pé e sabemos se estamos direitos ou tortos, isso é uma sensação do corpo. Quando sentimos tensão, ou relaxamento, isso é uma sensação do corpo. Não está focada num ponto em particular, é uma referência do todo; e está ligada às emoções. Quando sentimos acolhimento ou rejeição, dá-se conjuntamente uma sensação no corpo. Quando sentimos medo ou irritação, isso também se traduz numa sensação no corpo. Se trouxermos à mente imagens associadas com maldade, podemos sentir certas energias a mudar na mente. Se sentirmos que temos de nos defender ou provar que somos suficientemente bons, o corpo torna-se tenso. Esta noção do corpo é afeto a estímulos e responde aos mesmos. E podemos ter a certeza que meditação baseada nas suas aflições e tensões nunca vai levar à paz. Pelo contrário, vai ser marcada por tenção e contradição, na qual a capacidade de cada um para compaixão ou bem-estar diminui; chega a tal ponto que ficamos tão dormentes que nem sequer notamos a perda.

A Inteligência incorporada: corpo, coração e mente
Sintonizar-nos com a sensação do corpo é uma forma de estarmos conscientes do corpo. É essencial incorporar a consciência para conseguirmos lidar com a mente e sentimentos, porque de outra forma apenas nos podemos apoiar no nosso pensamento condicionado – e isso é território do Tirano. Por outras palavras, se a consciência não estiver integrada no corpo, então a dominante cabeça será, por defeito, o provável diretor da nossa prática. Mas, com uma mente incorporada, a análise é baseada directamente no sentimento que a raiva, preocupação ou desejo causam no sistema nervoso. É uma forma muito directa de lidar com o Tirano. No meu próprio caso, o simples facto de tomar conhecimento deste efeito no meu corpo trazia-me uma descontracção imediata; não um colapso depressivo, mas descontracção, especialmente na cara, ombros, barriga e mãos. Em vez de julgar ou queixar, a consciência incorporada permite que o stress desapareça através de uma suavização, alargamento e libertação.

Para despertar a inteligência incorporada temos de sintonizar, estabilizar e libertar a sensação do corpo. Para tal estabelecemos uma posição direita e estável e ligamo-nos à intenção correta. Depois, trazemos o coração ao corpo com a questão: "Como é que está a minha sensação do corpo agora? Parece correcta? Sinto-me estável aqui?" Esta questão vem de uma intenção correcta, e por isso desperta a inteligência do coração. O relaxamento pode ser proporcionado ao andar devagar, ficar de pé ou sentar "como se num local ameno e resguardado" – o que funcionar melhor. Depois: "O onde é que há equilíbrio? Será que o meu corpo consegue descontrair as partes que não precisam estar tensas?" Depois, quando o corpo tiver descontraído, acalmado e a sensação for mais vasta, torna-se possível, e é útil, focar na respiração. Mas se começarmos com a ideia: "Foca-te na respiração, e não te deixes distrair!", o mais provável é que ainda não tenhamos libertado as tensões residuais no corpo, e iremos gerar mais stress.

Esta técnica permitiu-me perceber e incluir as inteligências do corpo, cabeça e coração. Para mim esta experiência foi transformativa e ao mesmo tempo comum e óbvia. Ao conhecer no meu corpo, o quão boa era a sensação de ter um coração caloroso, pude estabelecer bondade em mim. Depois, fui capaz de desenvolver o coração ao recordar momentos em que havia sido testemunha da generosidade, bondade ou simpatia de outros. Não tinham de ser momentos de grande carga emocional, simplesmente a decência comum que as pessoas manifestam todos os dias. É algo muito natural, mas para mim isto representou o retorno do mundo fantasmagórico de objetos imaginados para o mundo real de indivíduos com sentimentos. E isto permitiu-me ‘sentar-me’ (meditar) nesse mundo real durante o tempo necessário até que eu sentisse que podia partilhar esse espaço com outros: trazer outras pessoas à mente e partilhar a bondade, compaixão, perdão e apreciação com elas.

A consciencialização no corpo traz-nos ao mundo real, e torna possível reconhecermos as nossas virtudes. O Tirano tem um enorme problema em fazê-lo! Mas apesar de ele estar constantemente a fazer-me crer que sou uma pessoa horrível, eu pude lenta e deliberadamente recordar e elevar o coração: "Hoje não matei nenhuma criatura. Hoje não roubei nada. Hoje não abusei sexualmente de ninguém. Hoje... bem, podia ter dito coisas bem piores! Mas restringi as coisas más que queria dizer. Podia ter sido mesquinho e dito coisas más, mas não o fiz. Isso foi bom."
Eu imagino que tais reflexões sejam possíveis para todos nós, embora não sejam lá muito boas para o ego. Mas nada disto tem como objetivo criar um Eu a partir de acções. A beleza está em reconhecer acções que provenham e apontem para a intenção correta. Esta intenção não tem origem em pensamentos; é uma inclinação do coração e não um ideal, mas para a despertar podemos usar pensamentos simples. Isto é um uso benéfico da cabeça-inteligência.

Excerto do livro - O Tirano interior
Tradução de João Brinco

   


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